Numa sociedade em aceleração, os territórios são apenas mentais. Blanche Du Bois não compreende que o seu desapareceu há muito, muito tempo nos escombros da Guerra da Secessão Americana. Stanley Kowalski não entende que o dele, o de um homem com nome estrangeiro integrado e assimilado pelo sonho americano, ainda não existe. Podiam ser um cego a guiar outro cedo, mas são apenas dois míseros gatos selvagens em luta homicida. Com este guião, criado por Tennessee Williams no pós IIª Guerra Mundial mas já tão clássico como Shakespeare, Diogo Infante volta à encenação, no Teatro Nacional Dona Maria II (de que é diretor artístico desde 2008), trazendo consigo Alexandra Lencastre, que regressa aos palcos após um interregno de 13 anos, Albano Jerónimo, André Patrício, Estêvão Antunes, José Neves, Lúcia Moniz, Marques d’Arede, Paula Mora, Pedro Laginha e Sofia Correia.Fá-lo sem arrogância, mas também sem medo nem hesitações. Como escreve no texto que inclui no dossier de imprensa da peça, “constato que me sinto invariavelmente atraído por peça que foram adaptadas ao cinema”. Mesmo que essa adaptação tenha a dimensão dos grandes mitos, com realização de Elia Kazan e um confronto letal entre Vivien Leigh e Marlon Brando. O que fazer com tais fantasmas? “Não revi o filme – afirma o encenador ao
JL – e recomendei aos atores que não se sentissem constrangidos ou limitados por ele. Mesmo que algumas imagens, sons e ambientes perdurem na nossa memória e acabem sempre por influenciar.” Diogo (que, em 1998, já encenara outra peça do mesmo autor,
Jardim Zoológico de Cristal, com Carmen Dolores no principal papel) concentrou-se na organicidade do texto dramático e nas diferentes leituras que este pode suscitar, 60 anos depois de escrito: “Mantive a época em que decorre a ação, respeitei o texto ao máximo, mas há códigos sociais e comportamentais que são totalmente diferentes. Quando estreou na Broadway, a peça foi alvo de censura, aliás como o filme, em que desaparece, por exemplo, a alusão à homossexualidade do marido morto de Blanche. Hoje, podemos usar tudo o que o autor escreveu e a leitura da narrativa será também muito mais rápida do que foi nos anos 40.”Nesta coreografia da morte e do desejo, os atores são confrontados com personagens que esticam a corda da violência para além de todos os limites da urbanidade. Tennessee Williams não acreditava em meios tons: escrevia sobre pessoas em carne viva, a quem uma situação dramática aproximava perigosamente da selva. Gatos em telhado de zinco quente, metidos num elétrico imundo que conduz do Desejo aos Cemitérios. Uma mexicana que anuncia, na noite asfixiante, “Flores…flores para los muertos” e os acordes de uma velha polka, que voltam sempre como uma mnemónica sinistra. “A peça obriga-nos a chegar a extremos de vulnerabilidade, o que forçosamente nos incomoda”, admite Albano Jerónimo, que veste a pele de Stanley Kowalski. “Estamos a lidar com delimitação de territórios e dependências. A Blanche humilha e é humilhada, o Stanley também. Ela com os seus códigos de conduta de grande dama do Sul, pertencente a uma aristocracia decadente e snob, mas muito dependente do macho, que inveja à irmã. Ele com a sua rudeza e com uma fisicidade que subjuga tudo à sua passagem”. E Alexandra Lencastre, regressando ao teatro no corpo e alma desta mulher que “sempre dependeu da bondade de estranhos”? “Há três anos que o Diogo vem insistindo para que voltasse com esta peça. E fi-lo porque este texto é importante, mas também porque o encenador é ele, de quem sou amiga há muitos anos e porque sabe preservar imenso os atores que dirige”. Admite estar a saborear com prazer cada instante deste regresso: “Não é fácil. A televisão é como napalm, queima tudo: o bom e o mau do nosso trabalho. Mas o teatro exige-nos um outro nível de entrega, se calhar ainda maior quando estamos ainda na fase de ensaios, a construir a personagem dentro de nós.” Sobre Blanche, misto de Scarlett O’Hara e gueixa, em queda vertiginosa desde os seus sonhos de requinte e graça, diz “não ter respostas, apenas muitas perguntas”: “Este texto leva-me simplesmente a refletir sobre o que fazemos com as nossas circunstâncias”. Este elétrico atravessa todas as noites (exceto às segundas) o palco do Teatro Dona Maria II, até 31 de outubro. Tem como destino a nossa inquietação.
A corda depois de esticada
Um clássico contemporâneo que não se via em Portugal há 20 anos, uma atriz (Alexandra Lencastre) que não fazia teatro há 13 e o "fantasma" de Brando. São ingredientes mais do que suficientes para tornar
Um Elétrico chamado Desejo, que estreia hoje, 9, em Lisboa, com encenação de Diogo Infante, um dos acontecimentos da
rentrée