A apanha da azeitona, a maior e melhor colheita de sempre, era para começar na semana que se iniciava a 16 de outubro. Nesse dia choveu. Mas as poucas gotas caídas do céu apenas serviram para apagar as brasas incandescentes dos cotos das oliveiras centenárias de Luís Falcão de Brito, 50 anos, que se concentram num “pequeno” espaço próximo da aldeia de Travanca de Lagos, em Lagares da Beira. “Há quem, no desespero, apanhe as azeitonas queimadas, que conservaram a gordura. Mas o azeite daí extraído seria mal cheiroso e incomestível. É só fumo”, diz-nos o produtor, também dono do maior lagar da região, onde produz os excelentes Azeites do Cobral, vendidos no mercado nacional e já implantados, também, em países como França, Alemanha e Áustria. Dir-se-ia que os dois hectares, plantados pelo seu bisavô, Acácio Pais de Brito, são um prejuízo relativo para Luís. O velho Acácio, dono de vários lagares da região – e um dos quais, salvo in extremis do fogo pelo Luís e pelo seu trator munido de pulverizador, serve, hoje, bem conservado, espécie de peça de arquelologia industrial, para festas e tertúlias de amigos – foi o fundador de um negócio que cresceu e se implantou. Na verdade, Luís Falcão de Brito tem extensos olivais, muito dos quais novas plantações, espalhados por dezenas de hectares. Para não falar da floresta (que não inclui eucaliptal), uma área de perto de uma centena de hectares de pinhal certificado, bem gerido e limpo, onde se misturam espécies como carvalhos e medronheiros. Ao todo, milhares de árvores de boa madeira e 5 a 7 mil oliveiras de excelente azeite. O que seriam, dois hectares? Pois bem, foram um aperitivo trágico para o que viria por acréscimo: ardeu tudo. Os pinhais, os carvalhos, os medronheiros, as 5 a 7 mil oliveiras e as mais pequenas ervas dos terrenos. Numa ironia que escarnece de cientistas e teóricos, de produtores e especialistas, sobrou-lhe, no meio de um dos pinhais, uma árvore ainda verde: um eucalipto. Um penetra tresmalhado, ali nascido por acaso.
Oliveiras cozidas a vapor
Luís Falcão de Brito sentiu um espécie de adrenalina imediata ao incêndio: a vontade de tudo reconstruir, de tudo replantar, de sair do pesadelo o mais depressa possível. Com o passar dos dias, verificou qiue não é bem assim. E uma semana depois “caiu-lhe a ficha”: “Por cada dia que passa, sinto mais presentes os efeitos diretos do fogo”, desabafa meio perdido entre os bocados de carvão que eram antes árvores seculares. “Ainda não tinha vindo aqui. Só tinha passado na estrada”, confessa-nos, a nós, improváveis testemunhas do impacto que lhe causa esta visão lunar. Já antes visitáramos um dos olivais mais jovens, sete hectares planos e limpos. Muitas árvores não estavam queimadas: simplesmente cozeram. Não foram tocadas por chamas, mas varridas pelas explosões de calor convexo que varreu o terreno. Nunca ninguém viu nada assim. E eu nunca tinha visto azeitonas cozidas, ainda na árvore.
Apesar de tudo, Luís nunca mais parou. O lagar continua a laborar. Mas uma irónica placa de aviso, deslocada no tempo, à entrada do espaço, mandada colocar nas vésperas do incêndio, define um “antes” e um “depois”. Diz a tabuleta, por cima de uma pequena seta: “Fila única”. Fila única para que os camiões e carrinhas possam descarregar, à vez, 24 horas por dia, a azeitona da “maior e melhor colheita” de sempre. Agora, em vez desse esperado movimento cíclico e anual, aparece uma carrinha de vez em quando. O lagar fecha às 19 horas. Azeitona própria, não tem – compra em Trás-os-Montes e no Alentejo e aos pequenos produtores locais a quem sobejou alguma. Das 80 toneladas diárias que devia estar a transformar em azeite, transforma dez.
Percorremos a linha de produção: o descarregamento para um tapete rolante até à escolha e esmagamento. Dos cinco funcionários que ainda ali estão a trabalhar – e deviam ser 12 – um está destacado para eliminar a azeitona que chega queimada. O fio amarelado é encaminhado para cubas, algumas de 20 mil litros, que vão escoando para garrafões e outras embalgens, incluindo a bonita garrafa de metal italiana que faz a imagem de marca da casa. Dentro da sua bata de operacional, Luís Falcão de Brito conduz tudo isto, encavalitado nas estreitas escadas metálicas da estrutura, poupada, à risca, às acendalhas que destruiram o bem cuidado pinhal, agora calcinado, que cerca as instalações.
Meio milhão até ao Natal, ou “morre”
Luís Falcão de Brito é um grande produtor e transformador. Cria riqueza e empregos, ajuda a fixar as populações e contribui para a economia nacional, numa área de excelência, produzindo bens tangíveis e com mercado externo. Dá lucro. Pois bem: apesar de continuar a trabalhar com a ajuda financeira de familiares e amigos, além dos capitais pórpios, se não obtiver um financiamento de 500 mil euros até ao Natal, vai ter de parar. É isso que queremos? Oiçamos o seu caso:
“Preciso desse capital para continuar a produzir. O produto tem colocação garantida e posso pagar qualquer empréstimo desse valor num espaço de seis meses”. Ou seja, nesta fase, Luís nem sequer fala de subsídios ou financiamentos a fundo perdido. Para manter a cabeça à tona, basta meio milhão de euros que pode repor em meio ano.
Mas nem assim os apoios lhe chegam. As suas muitas propriedades, todas produtivas, que se espalham por dois concelhos, nunca foram visitadas por qualquer técnico do Ministério da Agricultura. Os financiamentos prometidos ficam muito aquém dos que são prometidos à indústria e chegarão, se chegarem, depois de intermináveis procedimentos burocráticos. Arderm-lhe 100 hectares de valiosa madeira e mais umas dezenas de outros de excelente azeitona. Foram à vida 300 mil euros, só no olival. Mais 800 a 900 mil noutras perdas, incluindo a floresta. Se contabilizar os prejuízos, para o negócio, no lagar, o rombo vai para milhões de euros. Afinal, só precisa de meio milhão, já. Sem nada pedir a ninguém, está a estudar orçamentos para replantar os olivais imediatamente – até março, para aproveitar o ciclo biológico. Plantada agora, uma oliveira demora seis anos a proporcionar a primeira colheita razoável. O tempo urge.
Entretanto, os fios dourados, quase hipnóticos, continuam a pingar para as cubas e das cubas para os garrafões e para as garrafas. São fios de vida que prendem Luís Falcão de Brito à terra que o viu nascer. Nem todos se podem gabar do mesmo: à despedida, fizemos um desvio e passámos pelo local onde medra o heróico eucalipto sobrevivente. Juraria que também ele está a secar.
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