É só depois de terminar o direto para a página de Facebook da VISÃO que João Viola quebra. Aguentara-se estoico, sem uma tremura na voz, no cruzamento que tanta gente tentou alcançar em junho. Durante vários minutos, explicou a direção que o fogo tomou até galgar o vale e chegar ali acima, e no final aproveitou para lembrar que quatro meses depois a ajuda é bem vinda até para as aves. “Não há insetos, não há nada aqui. Se antes isto era o deserto verde, porque tínhamos muitas árvores e poucas pessoas, agora é o deserto negro.” Mas, uma vez terminado o direto, apoiou-se na placa que indica a direção para o Nodeirinho e chorou.
Há um mês e meio, João pegou nas suas tintas e pincéis e pintou esta placa. Do lado esquerdo, ao pé do ene maiúsculo, juntou o amarelo, o laranja e o vermelho das chamas; à direita, há céu azul e o verde de uma árvore. Não é uma obra de arte como as que enchem a sua casa desde os anos 70, mas é um pequeno arco-íris que lhe valeu chatices na Câmara de Pedrógão Grande onde trabalha como jardineiro.
Seria bonito se pudesse pintar todas as outras placas que o fogo apagou com a mesma limpeza com que ameaçou varrer várias aldeias do mapa (e que continuam ilegíveis quatro meses e meio depois), mas é ilegal. Ficou só esta, simbólica, a poucos metros do local onde naquele dia lhe morreu um primo, de sapatos colados ao alcatrão, e uma menina de 4 anos que não chegou a conseguir sair do carro. “A avó gritava ‘Não quero morrer, não quero morrer’. Os seus gritos chegaram lá a baixo à aldeia, as pessoas que se refugiaram no tanque de água ouviram tudo, dizem que foi horrível. Nem sei como é que elas não quiseram receber apoio psicológico.”
João Viola está a receber apoio desde o início, mas só agora começou a chorar com frequência. Há quinze dias, meteu uma baixa psiquiátrica porque “não estava a aguentar a pressão”, diz a mulher, Dina Duarte, vice-presidente da Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG). E não é o único a ir-se a baixo tanto tempo depois. “A psiquiatra que está a acompanhar a comunidade avisou que o luto iria levar 6 a 12 meses, mas agora que já estávamos a fazer quatro meses voltámos ao zero com os incêndios de 15 de outubro. Voltámos outra vez a sentir o medo, a revolta, a perda. Foi um regresso ao passado e se calhar numa escala ainda maior.”
Aos 61 anos, o truque de João tem sido sobretudo ocupar-se a ajudar os outros. Ajuda a distribuir os bens doados e faz terapia com taças tibetanas. Pinta sem parar desde a escola primária, mas agora parece que bloqueou. Tirando o retrato de Marcelo Rebelo de Sousa, que fez para a AVIPG lhe oferecer, pouco mais pintou. “Ver tudo ainda queimado não me inspira”, diz. “Há quinze dias, fui com o nascer do Sol à borda da EN236 e fotografei um sobreiro com as nuvens de fumo dos incêndios por detrás. Depois, no ateliê, pintei um quadro que dei ao meu psicólogo.”
No Outeiro do Nodeirinho, onde ele e Dina moram, basta saírem à rua para depararem com os escombros de uma casa que estava desabitada, e se descerem uns metros encontram mais umas quantas ardidas. “Foram reconstruídas uma, duas, nem pensar as tais 70 de que se falou.” A deles só escapou por causa “de uma maluquice”, diz João, que há uns tempos decidiu colocar um telhado de chapa porque as telhas apodreciam muito com a humidade. Graças ao telhado, as chamas lamberam tudo à volta mas não chegaram a entrar; como a casa é de madeira, teria ido num fósforo como tantas outras.
No dia 17 de junho, João e Dina estavam em Castanheira de Pêra, em casa de uns amigos ingleses. João ainda tentou ir ao Outeiro porque tinha deixado as janelas abertas, mas já não passou na estrada. “À noite, quando um bombeiro me disse ‘Esqueça a casa que isso desapareceu tudo do mapa’, chorei nas horas.”
Nas traseiras, o galo Osório, as galinhas e a gansa morreram asfixiados. Eram todos animais de estimação, com vários anos de vida, e safou-se o ganso porque a fêmea estava a tapar-lhe a saída do galinheiro – nunca saiu do choco. A vegetação foi-se, até a acácia que João plantara há quarenta anos acabou por ser arrancada pelo vento. Para não a esquecer, esculpiu dois bancos toscos, um para ele, outro para a mulher.
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