As contas de Irene Alves fazem-se à medida da história do bairro onde nasceu. “Vivi 43 anos no bairro antigo e já estou há 41 no novo”, contabiliza. Ao todo, são 84 anos de vida nos emblemáticos bairros operários da Companhia União Fabril (CUF) e Quimigal, reservados aos trabalhadores da empresa. O progressivo afastamento de um passado industrial também se manifesta na denominação dos lugares. Hoje fala-se, cada vez mais, em Bairro de Santa Bárbara.
Irene Alves tem dificuldade em encontrar memórias que não estejam associadas à história do bairro, que se tornou também na história da sua vida. “Lembro-me bem de ser garota e do sr. Martinho da “despensa” se meter comigo a perguntar-me quando casava”, recorda, com um sorriso jovial, na sala de estar da sua casa, na Rua Liebig (por ali todos os arruamentos têm nomes de cientistas). A “despensa” era um dos principais atrativos para quem sonhava trabalhar na empresa: “Vendia tudo a preço de custo, mas só os operários lá podiam comprar”, explica Irene, que usufruía deste privilégio por os pais trabalharem na CUF. Inicialmente, resumia-se às mercearias, mas no início dos anos 1960 transformou-se em supermercado e vendia artigos tanto a pronto como a prestações, desde que o valor não ultrapassasse 10% do salário líquido do trabalhador.
Habituada a ver, ao lado de casa, hordas de operários a entrarem e a saírem da fábrica (no final dos anos 1960 chegou a haver ali 12 mil trabalhadores), Irene Alves costumava esperar que os portões se abrissem para as mulheres do setor têxtil saírem e, com carrinhos de linhas nos sapatos para parecer mais alta, fingia que também estava a terminar o turno. “Coisas de miúda”, desvaloriza, envergonhada. Alguns anos depois, chegou a sua vez de aprender a ser tecedeira. Tinha 14 anos quando começou a trabalhar na fábrica.
Fundada em 1908 por Alfredo da Silva, a CUF tinha a indústria química na base do seu império, mas a atividade foi-se diversificando por áreas tão diferentes como a metalomecânica, os pesticidas ou os têxteis. No início dos anos 1970, aquele que era o maior conglomerado industrial da Península Ibérica, pesava 5% do PIB nacional. Depois do 25 de Abril, a empresa seria nacionalizada, dando origem (em 1977) à Quimigal.
Juventude bairrista
“Naquele tempo, só havia uma coisa a que tinha horror”, confessa Irene Alves, “quando por algum motivo faltávamos ao trabalho, no dia seguinte tínhamos de ir para a coxia e o encarregado decidia para onde nos mandava. Parecia que estava a escolher o gado no mercado. Ainda hoje tenho pesadelos com isso”, admite. Já na vida do bairro, tudo lhe agradava: “Na vizinhança só havia pessoas boas. Éramos como uma família.”
No final da década de 1950, o Bairro Velho (demolido há mais de 25 anos) e o Bairro Novo tinham cerca de 580 casas e somavam à volta de 2200 residentes. Hoje, resistem menos de uma centena de habitações e as famílias não passam de uma dezena. A maior parte das residências foi transformada em escritórios ou alberga serviços. Quase sem trânsito, as ruas tranquilas do bairro, com casas de piso térreo pintadas de branco, lembram uma aldeia, onde não falta a roupa estendida ao sol ou as tardes passadas a aproveitar a brisa à soleira da porta. Inês Alves, 20 anos, deixou-se encantar por esta rotina com facilidade: “Assim que cá cheguei, achei logo muita graça ver os velhotes sentados na rua”, conta a estudante de Biotecnologia. Originária de Santarém, partilha uma das casas da Rua Laws com outras duas colegas da Escola Superior de Tecnologia do Barreiro (ESTB), do Instituto Politécnico de Setúbal, há quase dois anos. Um protocolo entre a ESTB, a Baía do Tejo (entidade que gere a área onde está instalado o bairro) e a Rumo (uma IPSS da área da inserção profissional) transformou várias casas em residências para estudantes, que vieram trazer nova vida ao bairro. “Logo no primeiro dia, os vizinhos ofereceram ajuda para o que precisasse e, no segundo, eu já lhes estava a pedir sal”, conta a recém-convertida à vida de bairro. A instalação da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça na antiga escola primária, há dois anos, também trouxe mais juventude. Invariavelmente, os residentes lamentam a partida de um grupo de estudantes angolanos que ficou instalado no bairro há quatro anos para estudar em Portugal. “Eram todos muito educados. Perguntavam sempre se podiam estender roupa na minha corda e chegaram a cozinhar na minha casa. Há duas semanas, alguns vieram cá só porque tinham saudades”, conta, orgulhosa, Maria Isabel Nascimento, 77 anos, antes de fazer uma viagem ao passado: “Agora estamos todos velhos, mas vivia aqui muita juventude e andavam sempre a brincar na rua”, recorda, com saudade. Também os seus três filhos estudaram na escola primária, ali a dois passos de casa.
Bairros para casados
Apesar de nunca ter vivido no bairro, António Camarão, 53 anos, era uma das crianças que habitualmente o frequentavam – os avós e o pai trabalharam na CUF. Ainda hoje sente o cheiro do posto médico, mais um dos benefícios garantidos aos trabalhadores e às suas famílias. “Havia um lago à entrada com peixes vermelhos, decorado com um busto do Alfredo da Silva. Nós, miúdos, mergulhávamos lá os dedos para os peixes nos virem morder”, recorda, com o olhar perdido no velho edifício decrépito que aguarda a demolição. António Camarão, atualmente técnico da Câmara Municipal do Barreiro, destaca os cuidados de saúde assegurados pela empresa como uma das principais inovações na proteção social empresarial da época. “Tínhamos médico a toda a hora. Era uma maravilha!”, haveria de recordar, mais tarde, Prazeres Nascimento, que passou quarenta dos seus 83 anos a trabalhar nos teares da CUF. A filha bem a quer levar para a sua casa, mas a ligação que a une ao bairro é inquebrável: “Quero viver aqui até ao final da vida”, afirma, categórica. Prazeres admite que só não esperou muito tempo para ter uma casa no bairro porque o cunhado tinha “contactos” nos escritórios. António Nunes, 71 anos, também se lembra de não ser fácil conseguir casa. As rendas eram irrisórias (ainda hoje os residentes pagam €1,5 por mês), mas os critérios de Manoel de Mello, que sucedeu a Alfredo da Silva após a sua morte, em 1942, eram apertados. O facto de o avô e o pai de António Nunes terem sido trabalhadores da empresa terá contribuído para o ajudar, sobretudo porque não cumpria uma das normas habitualmente exigidas às famílias que se candidatavam a uma casa: ser casado pela Igreja. As janelas da sua residência têm vista para um dos antigos ex- libris do bairro, o mítico cinema-ginásio, hoje Casa da Cultura, onde chegou a ajudar na projeção dos filmes.
Havia muitas benesses que tornavam o bairro desejável. “Quem é que não queria uma filha casada com um funcionário da CUF?”, questiona António Camarão. Afinal, tinham direito a creche e a escola primária, refeitórios, campo de futebol (diz-se que a relva não crescia por causa da poluição…) e até a um Centro de Formação Feminino, que ensinava gestão doméstica às operárias…
O mundo numa rua
“Fazíamos a vida toda aqui”, recorda Gertrudes Conceição, 74 anos, em tempos uma das cozinheiras de um dos cinco refeitórios da CUF (havia, ainda, a messe dos engenheiros). Os netos, de 9 e 10 anos, já se converteram às tardes de rua, mas estão mais interessados em jogar às cartas do que em ouvir conversas sobre a história do bairro que frequentam, sobretudo, nas férias.
“O que o País não tem, a CUF cria”, era o lema da empresa. Uma máxima que também era válida no bairro. “O que se tentava criar era o mundo CUF. Para quê sair do bairro se se tinha aqui tudo?”, explica António Camarão. Afinal, “a filantropia e o paternalismo andam de mãos dadas”, continua o antigo arqueólogo naval. Nuno Pires Soares, 58 anos, investigador na área de geografia urbana no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, da Universidade Nova de Lisboa, refere que os bairros operários criados por empresas eram, também, “uma forma de controlo”. E destaca a sua estrutura hierarquizada. Basta pensar que as casas dos quadros de topo da empresa instalados no bairro eram verdadeiras mansões quando comparadas com as dos operários.
“Cá o ganhas, cá o gastas”, era outro dos princípios que norteava o quotidiano dos residentes do bairro, que também seria palco de lutas operárias. “Tentavam atribuir as casas aos funcionários mais dóceis, mas às vezes enganavam-se”, conta José Abreu, 73 anos, antigo membro da Comissão de Trabalhadores da Quimigal. Apesar de não viver no bairro, conhecia vários camaradas que lá residiam. Maria Isabel Nascimento lembra-se de o marido ser chamado por ter propaganda do PCP com ele. “Lutavam sobretudo para ganharmos mais dinheiro, porque não era fácil, para quem tivesse filhos, gerir a casa”, defende.
Longe das lutas operárias, a memória mais viva que Carlos Ramos, 38 anos, tem do bairro é o antigo cinema. Cresceu no Barreiro e, há oito anos, tornou-se um dos dinamizadores da zona através do estúdio de música que instalou na Rua da CUF. Uma parceria com a Baía do Tejo permite que o espaço esteja disponível gratuitamente para os jovens da Margem Sul, até aos 25 anos, que ali queiram ir “fazer barulho”. As atividades que já desenvolveu com os alunos da Escola Bento Jesus Caraça levam-no a avançar com a hipótese de o bairro se tornar um cluster ligado à cultura e à arte. “Seria uma forma engraçada de dar uma nova identidade ao bairro”, acredita o gestor cultural. O também músico sente que o bairro está numa fase de transição e que as atenções começam a voltar-se para ele. “Não sei onde irá parar, mas sei que já está a caminhar”, acredita. Venham de lá os operários da mudança.
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