O centro das cidades sempre foi o seu “destino natural”. Ainda que as cidades onde se instala possam variar na mesma medida dos desafios profissionais que o apaixonam. O anterior foi o cargo de curador de Arquitetura Contemporânea no MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. O atual é a posição de diretor do novo Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), um projeto da Fundação EDP.
A inauguração do edifício, situado junto ao Museu da Eletricidade, em Lisboa, será a 5 de outubro, com uma maratona cultural de 12 horas aberta à comunidade.
Pedro Gadanho, 47 anos, cresceu no Restelo, em Lisboa, estudou na Faculdade de Arquitetura de Universidade do Porto, mas também passou por cidades como Barcelona, Londres ou Milão. Uma conversa com vista para o rio, no seu escritório instalado na histórica Central Tejo.
Diz que a arquitetura portuguesa, antiga e contemporânea, tem um papel fundamental no turismo. O segredo está nessa conjugação entre passado e presente?
Estamos tão habituados a olhar para Lisboa que perdemos a noção do quão diferente ela é de outras cidades. A arquitetura portuguesa, que teve o seu auge nos séculos XVII e XVIII, quando é vista por alguém de fora, tem um encanto e uma beleza extraordinárias. Há uma identidade muito própria que foi mantida ao longo do tempo, talvez até devido à pobreza do País. Lisboa tem a oportunidade de conjugar um património estabilizado de alta qualidade com novas arquiteturas. O património continua a ser construído todos os dias, não termina no passado.
Parece existir uma certa nostalgia em torno da ideia de “vida de bairro”…
Eu não lhe chamaria nostalgia… Há um grande interesse em envolver as comunidades nos projetos das cidades. É uma tendência que se contrapôs à globalização crescente nos finais do séc. XX. A identidade local ressurgiu como algo que dialogava e se contrapunha ao movimento da globalização. Os artistas também não foram indiferentes a isso. Têm cada vez mais projetos com a comunidade, assim como as instituições artísticas e museológicas.
Há algum anacronismo na ideia da “vida de bairro”?
Eventualmente, haverá uma transformação daquilo que era a vida de bairro. Começou a utilizar-se mais o termo comunidade, em vez de bairro, para associar aquilo que é a identidade de um grupo de pessoas que vivem numa determinada localização. Isso denota que a vida de bairro já não passa só pela vida de café, passa por usar outro tipo de equipamentos, como o museu ou espaço de exposições local, onde a comunidade se pode juntar para outro tipo de conversas e outro tipo de bairro.
O que é que o bairrista do séc. XXI quer?
Quando pensamos em áreas que se tornaram exclusivamente residenciais, creio que quererá um pouco daquilo que se associa à vida do centro da cidade, ou seja, espaços mais cosmopolitas onde as pessoas se podem encontrar. Ainda me lembro de na minha infância as Casas do Povo terem uma atividade cultural intensa, hoje em dia os equipamentos atualizaram-se. Como as galerias que começaram a surgir em Marvila e que animaram aquela parte da cidade com outro tipo de atividades. Encontram-se novas funções que substituem as tradicionais.
Um bairro também deve ser uma ferramenta de combate às desigualdades sociais?
Evidentemente. É precisamente ao nível do bairro que, muitas vezes, existem laços de sustentabilidade social que garantem uma menor desigualdade, que tende a crescer e a desumanizar as cidades. A proximidade entre as pessoas é essencial para que não se caia em formas de desigualdade gritantes.
A arte também pode desempenhar um papel no contexto do combate às desigualdades?
A arte, como eu a entendo, está relacionada com a reflexão crítica sobre a condição do presente. Só através dessa capacidade de levantar o debate, suscitar a dúvida, questionar o quotidiano a arte pode ter esse papel de destabilizar aquilo que são ideias adquiridas, obrigando-nos a refletir. Até por oposição à televisão e à tendência da massificação ou adormecimento que ela pode causar.
Já viveu no Porto e em Lisboa, identifica grandes diferenças entre os bairros ou há mais traços comuns?
Há mais traços comuns, sobretudo quando falamos dos bairros populares. Claro que há características próprias, que estão relacionadas com o desenvolvimento histórico. Nos núcleos populares, sentem-se, ainda, restos de tradições puramente locais. Há um misto, é inevitável, entre as características mais nacionais e as mais específicas. Mas não creio que haja diferenças assim tão assinaláveis, apesar de se falar muito dos bairrismos.
Mas há bairrismos muito fortes.
No fundo, as pessoas identificam-se sempre com o que conhecem melhor e defendem-no por uma espécie de necessidade psicológica, afirmando a mais-valia do local que consideram seu. Notei isso não só no Porto ou em Lisboa mas também em Nova Iorque. As pessoas diziam-me sempre que o seu bairro era o melhor da cidade. [Risos.]
É muito diferente o que as pessoas valorizam num bairro do Porto ou de Nova Iorque?
Como Nova Iorque é uma cidade muito maior, as pessoas valorizam mais os serviços que têm à disposição do que as relações interpessoais. Se calhar, também estamos a caminhar para esse modelo, em que as pessoas apreciam o bairro pelos serviços que oferece, mais do que pelas relações de vizinhança.
Os bairros têm problemas transversais?
Temos estado a falar de uma condição idealizada de bairro: central, com acessibilidades e um lastro histórico fundamentado que, no fundo, escapam a alguns dos problemas dos bairros criados em zonas de periferia. Não conheço bem os problemas desses bairros periféricos, mas é importante falar deles porque têm problemas associados à distância relativamente à cidade de referência. Os problemas são mais subtis quando saímos do centro da cidade. Nas periferias das cidades existem outro tipo de problemas, como o facto de não existir forma de gerar identidade dentro de unidades territoriais que corresponderiam ao bairro tradicional.
Vive na zona da Sé, um bom sítio para fazer vida de bairro.
Sim, existe a pastelaria do Sr. Zé e, ao mesmo tempo, o turismo cruza-se com essa vivência mais tradicional. Os vizinhos conhecem-se. Há uma mistura relativamente equilibrada de pessoas de diferentes estratos e ambições sociais, o que eu costumo chamar de aspeto bom da gentrificação [chegada de residentes de estratos socioeconómicos mais elevados do que a população do local], por oposição a tornar a cidade quase exclusivamente dedicada a um certo setor social. A gentrificação é boa no início, mas tem de haver formas de a parar de modo a que não inverta completamente o ciclo, passando de uma população muito enraizada para outra totalmente nova. Há um momento em que há uma mistura de várias épocas e vontades que é fundamental para que a vida do bairro se renove.
É bairrista?
Só não sou bairrista porque já vivi em muitos bairros. [Risos.] Apreciei todos eles por igual.
Consegue antecipar alguma tendência relativamente ao futuro dos bairros?
O tema de uma das maiores exposições que fiz no MoMA era exatamente a evolução das megalópoles e o modo como caminhavam para processos de desumanização e de grande desigualdade social. Identificámos uma série de problemas no futuro das cidades que teriam de ser resolvidos com um misto de planeamento top-down [de cima para baixo] e de iniciativas bottom-up [de baixo para cima], ou seja, de iniciativas participativas, da comunidade, com a ajuda de arquitetos, artistas, designers… Essa lição, para mim, traduz aquilo que poderá ser um futuro mais saudável das cidades.
Há algum exemplo internacional que seja particularmente interessante relativamente ao futuro dos bairros?
Berlim foi uma cidade em que a importância da relação com as diversas comunidades foi muito importante. Neste momento, já está a passar por um excesso de gentrificação, com os preços das rendas a subir e outros fatores que acabam por alterar esse equilíbrio que tornou Berlim muito atrativa, para quem vinha de fora. Os artistas andam sempre à procura desse misto de qualidade de vida e oportunidades interessantes que possam proporcionar novas experiências.
Lisboa pode ser a nova Berlim.
Porquê?
Ainda temos rendas baixas relativamente à maior parte das capitais europeias, há possibilidades de investimento e crescimento, temos qualidade de vida e o clima torna a cidade extremamente atrativa para quem começa a estar cansado das grandes cidades. Esse movimento já começou, só que a maior parte dos lisboetas ainda não notou porque só dá atenção ao aspeto mais superficial das vagas de turismo, que estão a chegar atraídas pelas mesmas qualidades.
Também foi a qualidade de vida que contribuiu para o seu regresso a Portugal. Há mais qualidade de vida em Lisboa do que em Nova Iorque?
Ou do que em qualquer grande cidade. As grandes cidades têm uma pressão tal que faz com que a vida quotidiana seja muito complicada. Por isso é que as cidades de escala média são atrativas para muita gente atualmente. Dentro dessa escala média, o facto de Lisboa ser uma capital europeia tem uma influência decisiva.
Um museu também pode contribuir para a identidade de um local?
O MAAT pretende afirmar a arte contemporânea, essencialmente a arte contemporânea, como algo importante para a vida das pessoas. O público fixou-se na noção de que a arte é só para contemplação estética – mais, que é uma contemplação estética que só alguns compreendem – eu sou defensor da ideia de que a arte é uma forma de reflexão. Ao observarmos o trabalho dos artistas, se percebermos o que está por trás das obras – é muito importante o papel pedagógico do museu para explicar o que se passa no seu interior – as pessoas não deixarão de se sentir tocadas, ou até incomodadas, e com isso serão levadas a pensar sobre a sua condição presente.
Qual é que gostaria que fosse o impacto do MAAT na cidade de Lisboa?
Gostava que ajudasse o maior número possível de pessoas a ultrapassar a depressão e o negativismo dos últimos anos.
É ambicioso.
É ambicioso. [Risos.] Espero que seja parte de um fenómeno maior em que as pessoas sintam que a cidade é boa para viver, que tem uma oferta cultural muito grande para o tamanho que tem, e que atrai o olhar e a atenção das pessoas de fora, fazendo-nos sentir mais orgulhosos do sítio onde vivemos. Espero que as pessoas vejam no MAAT um sítio de encontro e um lugar para gozar algumas horas ao lado do rio, a encontrar coisas que vão desafiar a sua imaginação e questionar o status quo e aquilo que possam ser as coisas menos agradáveis do dia a dia.
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