À mesa chegam felosas e pardais fritos, estaladiços, que se comem de um trago só. A seguir, sardinha crua marinada com morangos. Entretanto, provámos as já célebres pétalas de toucinho. E não provámos a “vieira do montado em cama de broa de milho”, uma simulação à base de medula óssea. Lá dentro, na cozinha, José Júlio Vintém, 39 anos, tem uma mão de ovelha a cozinhar há mais de cinco horas. Estamos no seu restaurante, o Tombalobos, para onde fomos levados num fim de tarde solarengo, em Portalegre, pelo jornalista e escritor Rui Cardoso Martins, 44 anos (vencedor em 2010 do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, com Deixem Passar o Homem Invisível). Ficamos com vontade de voltar ali, lugar de surpresas. Rui, há mais de 20 anos a viver em Lisboa, adora as experiências de Vintém, e incluiu-o num conto que escreveu recentemente, Estômago Animal.
“Não ligues ao que se diz. A província é uma roda-viva, é muito tarada e cheia de maravilhas. É o contrário do mar em dia de tempestade, a pasmaceira é só na espuma da onda, lá no fundo tudo mexe, entre os peixes”, escreveu Rui no seu notável romance de estreia, E Se Eu Gostasse Muito de Morrer (2006) onde Portalegre ecoa em cada página.
Pasmaceira. É uma boa palavra para descrever a cidade neste sábado de Páscoa. Vazia, deserta. Morta. Pelo menos à superfície. Descemos a Rua Direita, que por acaso se chama Rua 5 de Outubro e não é direita. Na que foi a mais comercial das ruas de Portalegre, muitas lojas fecharam, têm um ar triste, abandonado, números de telefone de agências imobiliárias à frente. Rui caminha com o seu amigo Falcão, que inspirou a personagem principal desse primeiro romance. Pára surpreendido à frente das montras vazias da Casa Nun’Álvares. “Isto também fechou?!”. Era uma livraria. “Lembro-me de ver aqui o meu livro, nesta montra…”, recorda, entristecido.
Falcão foi, naquela rua, protagonista real de uma das cenas mais hilariantes (talvez não seja a palavra certa…) de E Se Eu Gostasse Muito de Morrer. Ao fim de uma noite de copos – e bebe-se muito por aqui – descia a rua, quando deparou com um sugestivo caixão aberto. Deitou-se nele, “para experimentar”, e… adormeceu. O caixão estava ali para ser ocupado, claro, e quando um recém-viúvo ali chegou com a sua mulher morta nos braços, nem queria acreditar. A cena meteu polícia, um pedido de desculpas, um elogio atabalhoado à qualidade do caixão…
Não se vê ninguém. Até que aparece Eduardo Relvas Bilé. Apresenta-se: “Eu sou o São Martinho de Portalegre”, e retira da carteira duas fotos-calendário para o provar, onde podemos vê-lo, com a sua bigodaça branca, vestido de São Martinho à frente de um grande alambique e numa adega. “Sou poeta popular, e sou bombeiro voluntário…” Diz-nos alguma quadras e desaparece, pelas ruas desertas.
Lá ao fundo, chegamos ao plátano, o maior da Europa. “É tão largo que parece um daqueles bichos do Dalí, que só se aguentam no ar com bengalinhas nas banhas”, escreveu Rui. Ali à frente, mostra-nos o edíficio onde nasceu, da Misericórdia, antigo hospital. E recorda o dia distante em que, numa cirurgia que já não se usa, lhe arrancaram ali as amígdalas pela boca, a sangue frio. “Ali ao lado fui escuteiro, e aquilo é a morgue. Já viste? Escuteiro numa morgue…”.
A morte percorre o romance – a cidade. A desgraçada ironia do coveiro que decide pôr fim à própria vida dá-lhe o mote. Nessa mesma tarde, José Júlio Vintém, no Tombalobos, dará conta de mais um suicídio recente na cidade: “Subiu ao sótão e enforcou-se”.
Vamos beber mais um copo. A maior parte dos cafés e bares estão fechados. O “escritório”, ou “gabinete”, que por acaso não se chama nem uma coisa nem outra, está aberto. E tem vida lá dentro. Na parede, uma televisão mostra imagens, em direto, de uma tourada. Na coluna, mesmo ao lado, ouve-se: “Quase golo, foi quase golo!”. Passam-se coisas estranhas em Portalegre. Ou extraordinárias.
Fez-se tarde. “Queres uns chavões para escrever?”, pergunta-me, já com pressa, para ir ter com os dois filhos, que ficaram na quinta dos avós, pais do Rui, na serra, lá onde cresce cicuta nas margens de uma ribeira. “Eh pá, chavões, chavões, não quero…”, respondo. “Mas são meus, podes escrever” E dita:
– “Sou um optimista e não sei porquê”.
– “Se deus existe é má pessoa; eu, com tantos poderes, tinha outra atitude”.
São bons chavões, admito, posso escrevê-los.
Antes, tinha dito e repetido outro chavão, de modo suficientemente autêntico para acreditarmos que é assunto sério – como a literatura, esse “modo de ver a única realidade”. Olha à volta, para Portalegre, a planície alentejana a estender-se de um lado, a serra a anunciar as beiras de outro. E diz: “Isto é o meu sangue”.