A tragédia provocada pelos sismos que atingiram a Turquia e a Síria, no passado dia 6 de fevereiro, registando acima de 6000 edifícios colapsados e mais de 40 000 mortos, desencadeou uma discussão pública sobre o risco sísmico, medidas a tomar, e responsabilidade civil e criminal no setor da construção.
Um sismo é um fenómeno natural resultante de uma súbita libertação de energia no interior da terra, particularmente em zonas de falhas geológicas, onde ocorrem roturas, provocando vibrações que se transmitem, de forma mais ou menos intensa, às áreas circundantes. No caso de Portugal destacam-se as zonas de falhas situadas a sul do Algarve e no vale inferior do Tejo, aumentando assim a vulnerabilidade do sul do país, e assinalam-se os sismos ocorridos em 1531, 1755, 1909, 1969 e 1980, sendo o de 1755 o mais marcante, pela sua magnitude e impacto.
Em Portugal, embora a probabilidade de ocorrência de sismos fortes seja reduzida face a países como a Turquia, o risco sísmico (ponderação entre a probabilidade e o impacto), em particular na região de Lisboa, é relativamente elevado, pelo impacto negativo esperado, que pode ascender a 30% do PIB, sobretudo devido ao estado do edificado. Neste contexto, é sabido que a ocorrência de um sismo catastrófico equiparável ao de 1755, que arrasou Lisboa e provocou dezenas de milhares de mortes, é provável vir a acontecer, só não se sabe quando.
De facto, o problema não são os sismos em si, mas a capacidade dos edifícios e infraestruturas para resistir a um sismo. Estima-se que mais de metade dos edifícios no nosso país não estarão devidamente preparados, incluindo casos de emergência e socorro (e.g. hospitais e quartéis de bombeiros), seja pelos insuficientes requisitos da legislação em vigor à data da sua construção ou reabilitação, seja pelas intervenções amadoras, muitas vezes ilegais e desconhecidas, que foram sofrendo ao longo do tempo.
Ao nível nacional existe legislação anti-sísmica desde 1958, por sua vez revista em 1983, encontrando-se atualmente em vigor, de forma exclusiva apenas desde 2022 (segundo o despacho normativo nº 21/2019), o regulamento europeu denominado de Eurocódigo 8. Adicionalmente, a partir de 2019 (segundo a portaria nº 302/2019), passou a ser obrigatória a verificação da segurança sísmica para certas obras de ampliação, alteração ou reconstrução. Uma forma aproximada e expedita de avaliar a vulnerabilidade sísmica das estruturas passa por comparar a sua data de construção (ou reabilitação, caso aplicável) com estes anos de referência, sabendo que o grau de exigência tem aumentado ao longo do tempo.
O regime regulamentar poderia, contudo, ser mais eficaz, não fossem os atuais desafios da indústria da construção, focados em custos e prazos, que tendem a desvalorizar o projeto (arquitetura e engenharias) e a transferir a responsabilidade para os empreiteiros. Estes, por sua vez, frequentemente condicionados pela estratégia do preço mais baixo, podem procurar compensar prejuízos ou incrementar ganhos com trabalhos a mais e redução de custos em materiais e mão-de-obra, comprometendo a qualidade pretendida.
Neste sentido, não só a contratação das competências e capacidades necessárias como também a supervisão em projeto e obra se tornam essenciais, não devendo bastar uma simples declaração do projetista ou do empreiteiro dizendo, respetivamente, que o projeto cumpre com a legislação em vigor ou que a obra está em conformidade com o projeto.
Os custos por serviços de projeto, consultoria e fiscalização, incluindo a execução do necessário reforço sísmico, são irrisórios face ao valor global da obra e praticamente nulos quando se analisa o ciclo de vida do ativo, mas implicam um elevadíssimo retorno do investimento, considerando poupanças e ganhos de qualidade em fases de obra e de utilização, mais ainda ao mitigar potenciais impactos económicos aquando da ocorrência de um ou mais sismos durante o período de vida útil da construção.
A saber ainda que os casos de negligência para com regras legais, regulamentares ou técnicas, que causem perigo para a vida ou integridade física de outrem, ou seja, mesmo sem a necessidade de ocorrência de acidente, além de eventuais perdas de reputação e de outras penalizações, segundo o código penal (decreto-lei nº 48/95), podem implicar pena de prisão até 8 anos.
As medidas anti-sísmicas a tomar podem dividir-se ao nível do ativo construído, das empresas e do governo.
Ao nível do ativo construído, destaca-se a importância de o dono de obra investir, o mais cedo possível, em serviços de projeto, consultoria e fiscalização, assegurando, posteriormente, a contratação da obra pelo preço justo, sabendo que isso significará mais segurança e um melhor value for money (relação custo-benefício) no médio e longo prazo. Deve também ser promovida a chamada revisão de projeto, ou seja, a validação prévia do projeto a ser executado em obra por uma terceira entidade idónea e qualificada, prevendo contratualmente incentivos ou penalizações em função do resultado da análise.
Ao nível das empresas do setor, deve ser promovida a colaboração com as universidades, congregando experiência e conhecimento e favorecendo assim a implementação de soluções inovadoras como o “isolamento de base”, para atenuar o efeito dos sismos sobre as estruturas, em particular as de maior importância em caso de emergência (e.g. hospitais), e como o “Building Information Modelling (BIM)”, para facilitar o cadastro detalhado do património e a realização de simulações de segurança, recorrendo a novas tecnologias digitais.
De suma importância, ao nível do governo, elencam-se iniciativas como a revisão do Código dos Contratos Públicos (CCP), por exemplo, ao nível da revisão de projeto, cuja obrigatoriedade, pelo menos para obras de maior complexidade e orçamento relevante, desde 2012 (decreto-lei nº 149/2012), está condicionada à entrada em vigor de um regime próprio, que ainda não existe; e ao nível do BIM, ainda inexistente no CCP, para favorecer o registo completo e fidedigno, em formato digital 3D, das construções em cada município. O adequado registo do património facilitaria ações como o mapeamento da vulnerabilidade sísmica das cidades, processo que aliás já se encontra em curso para Lisboa, ao abrigo do programa ReSist, que pretende promover a resiliência sísmica do parque edificado privado e municipal e infraestruturas urbanas municipais.
Adicionalmente, à semelhança dos incêndios, poderia criar-se um Regime Jurídico de Segurança contra Sismos, que explicitamente definiria responsabilidades, desde os autores e coordenadores de projeto, quanto à conceção, aos empreiteiros, diretores de obra e de fiscalização, quanto à conformidade da execução, abrangendo ainda proprietários, administradores e gestores de edifícios, quanto à manutenção das condições adequadas em fase de utilização. Poderiam também ser obrigatórias determinadas medidas de autoproteção (e.g. planos de prevenção e de emergência e registos de segurança), incluindo, dependendo do risco sísmico, formações específicas, simulacros e inspeções com dada periodicidade. A não conformidade com os requisitos legais em vigor, sem prejuízo da elegível responsabilidade civil e criminal, implicaria processos contra-ordenacionais com coimas até às dezenas de milhares de euros, e sanções acessórias como a interdição do exercício da atividade profissional (e.g. para autores de projeto e diretores de obra) ou mesmo da utilização do edifício (e.g. para todos os habitantes, por incumprimentos do lado de um ou mais proprietários).
Outra questão a salientar é a dos seguros, sabendo que o seguro contra sismos não é obrigatório por lei e que apenas 15% das habitações em Portugal têm este tipo de cobertura, urge ultrapassar esta realidade e criar um fundo sísmico nacional, à semelhança do que já foi feito em países como Turquia, Espanha e Nova Zelândia.
De modo a promover a regeneração urbana e a necessária proteção sísmica, devem ser definidos e estabilizados benefícios fiscais, subsídios e auxílios estatais, assim como prémios de seguros contra sismos, uma vez definidos como obrigatórios, de valor dependente da vulnerabilidade sísmica das construções.
A sensibilização da população, proporcionando mais e melhor informação, é um fator crítico para responder à problemática do risco sísmico, ao nível da prevenção e da própria reação em caso de sismo. Por exemplo, através de resoluções do conselho de ministros (e.g. similar à resolução nº 13/2018, para incêndios), realizar campanhas de divulgação sobre os Planos de Emergência e Proteção Civil, explicando quem faz o quê, onde e como.
O modelo de verificação, manutenção e garantia das condições de segurança contra sismos deve basear-se numa metodologia que inclui as etapas de avaliação, definição, execução, monitorização e controlo, ao longo do tempo. Neste sentido, a administração pública desempenha um papel de regulação e fiscalização fundamental. A não esquecer que a salvaguarda da segurança das pessoas e bens constitui uma função primordial e prioritária do Estado.
Infelizmente, a polémica dos sismos deverá ser novamente esquecida nos próximos meses, em prol de assuntos mais “sexy” como, por exemplo, a sustentabilidade ambiental ou a transformação digital, até à próxima tragédia. Por certo, devemo-nos perguntar: qual é o valor de uma vida?
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.