É uma frase muitas vezes repetida e uma certeza de qualquer amante das crónicas passadas: “A História é escrita pelos vencedores.” Esta certeza não implica apenas o engrandecimento das conquistas dos vitoriosos. Em muitos casos, em demasiados casos, também representa uma destruição do mundo dos adversários ou de tudo o que floresceu antes. Isso é particularmente visível no mundo antigo, campo de investigação de Catherine Nixey. Em Heresia, o seu segundo livro, a chegar às livrarias em novembro com a chancela da Desassossego, a escritora e jornalista inglesa (The Times, The Financial Times, e agora no The Economist) procura descrever o poder destruidor do cristianismo inicial.
Esse já era o tema do seu primeiro livro, A Chegada das Trevas. Só que nessa investigação eram dois universos que estavam em confronto: o mundo clássico e o cristianismo. Agora, é o próprio cristianismo a lutar consigo mesmo. Nos seus primeiros anos e séculos, a religião cristã era extremamente diversa, absorvendo diferentes práticas e sobretudo relatos da vida de Jesus e dos seus seguidores. Foi uma explosão de criatividade, que chegava a envolver dragões e muitas dúvidas. Mas gradualmente essa diversidade foi sendo autodestruída, posta de lado, transformando a heresia num veneno, quando na sua origem não era mais do que uma escolha pessoal.
É sobre todas estas questões que Catherine Nixey vem a Portugal falar, nesta sexta-feira, 6, no Museu do Oriente, no âmbito do encontro Book 2.0, uma iniciativa da APEL que discutirá o futuro do livro. A sua intervenção é dedicada ao espírito dos clássicos, tão urgente no nosso tempo: aquele que nos leva a duvidar, a questionar e a rir de nós próprios.
Em A Chegada das Trevas mostrou-nos como os cristãos destruíram parte do conhecimento do mundo clássico. Tentou agora em Heresia revelar como os cristãos destruíram a sua própria diversidade religiosa?
Sim, sim. O cristianismo, no início, era uma religião de uma enorme variedade. Os primeiros cristãos nem se chamavam a si próprios cristãos, não sendo claro como se designavam. Se nem sempre é fácil datar as diversas fontes e textos que chegaram até nós, não há dúvida de que havia conceções diferentes e práticas muito distintas umas das outras. E quando falamos em conceções e práticas estamos a falar em questões que hoje são fundamentais e indiscutíveis.
Como por exemplo?
Os relatos escritos ao correr dos séculos sobre a vida de Jesus são os mais variados. Alguns contestam a virgindade da Virgem Maria e a sua conceção divina, outros dizem que Jesus chegou a vender um dos apóstolos para a escravatura. Houve também relatos que sugeriam que Jesus tinha, ele próprio, engravidado Maria com a sua própria semente, o que até faz sentido sendo ele ao mesmo tempo Deus. E depois há os relatos que parecerão ainda mais estranhos ao crente contemporâneo, como aqueles que garantem que a Virgem Maria foi submetida a um teste de gravidez para provar o seu caráter imaculado. Havia, de facto, uma enorme variedade. Mesmo nos textos canónicos há elementos que nos surpreendem. Em relação ao Evangelho de Marcos, hoje há algum consenso relativamente ao acrescento que foi feito sobre ressurreição, uma parte da vida de Jesus que se tornou importantíssima. Não há dúvidas: o cristianismo era muito mais vasto em comparação com o que veio a ser nos séculos posteriores.
Mas podemos falar mesmo numa destruição da variedade para impor uma narrativa?
Acredito que sim, embora o processo tenha sido muito lento. Algumas destas histórias que referi e as muitas outras que apresento no livro permaneceram durante séculos e eram muito populares. Não se pode querer ver no mundo antigo um poder totalitário capaz de controlar todas as narrativas. E escreveram-se imensas histórias, nem todas heréticas. Algumas eram apenas o resultado do entusiasmo dos primeiros seguidores, de mentes apaixonadas ou fanáticas. Alguns desses relatos, que perduram nos séculos, são espantosos, incluindo um português na Etiópia.
Em busca do Prestes João?
Exatamente. Os portugueses viajaram para o outro lado do mundo guiados também por relatos míticos de um reino cristão. Como muitos outros povos que queriam evangelizar, achavam que transportavam o cristianismo certo, em oposição a qualquer outro. Como dizia John Knox, um teólogo escocês, cada um é ortodoxo de si próprio, a heresia está sempre noutro lado.
Tendo sido um processo lento, não podemos falar numa destruição planeada…
Na verdade, as primeiras entidades cristãs tentaram planear, mas falharam porque não conseguiam chegar a todos. Se tivessem uma varinha mágica – e curiosamente Jesus era, no início, frequentemente associado a feiticeiros –, julgo que teriam imposto num ápice a narrativa que mais lhes interessava. Isso acabou por acontecer, mas num processo muito dinâmico. Há muita hostilidade entre grupos com interpretações e narrativas diferentes da vida de Jesus e dos princípios do cristianismo. Essas lutas eram qualquer coisa que desconcertava o espírito grego e romano, muito habituado à multiplicidade de relatos mitológicos e à ideia de que todas as religiões giram em torno de ideias semelhantes.
O que mais espanta no seu livro é a criatividade de alguns relatos…
É, de facto, espantoso, mesmo sabendo que alguns dos evangelhos apócrifos são posteriores aos canónicos e à fixação da Bíblia. Certamente também espantavam os leitores da sua época. Num deles, Jesus era um domador de dragões, tema que hoje está novamente na moda com as séries televisivas… Noutros, a vagina da Virgem faz coisas muito inesperadas, como queimar quem tenta fazer o tal teste da virgindade.
Tem algum relato considerado herético de que goste particularmente?
É difícil não ficar surpreendido com aquele em que Jesus mata pessoas. É uma narrativa muito interessante e até divertida, que nos revela também como é que as pessoas procuravam compreender a vida de Jesus e, em particular, equacionar uma criança com cinco anos e com os poderes de um Deus. Não surpreende que possa haver um acidente ou uma irritação que acaba mal… Este é um ponto importante, porque remete para a questão da divindade, do que ela deveria ser, como era entendida. Os primeiros observadores do cristianismo ficavam muito intrigados com aquilo a que chamavam a inutilidade de Jesus como divindade. “Se era um Deus, como é que acabou crucificado?”, perguntavam. É aí que reside a história cristã. Mas é preciso ter em conta que hoje valorizamos muito o lado intelectual e escrito da religião, os seus fundamentos e dogmas, a sua construção, mas quando se pensa na razão pela qual Jesus se tornou tão popular e diferente na sua época temos de pensar nos cuidados de saúde e na atenção aos pobres que o cristianismo pôs no centro de tudo.
Mas há lugar para a heresia na religião?
Bem, assim que lhe chamamos heresia estamos a tirá-la do lugar que poderia ter na religião. Originalmente “heresia” apenas significava escolha. Era a possibilidade de pegarmos em algo e definirmos as nossas preferências. No mundo antigo, usar o nosso pensamento, mesmo em termos religiosos, era visto como positivo. Nunca tinha uma conotação negativa. Há na tradição grega e romana um gosto por discutir, questionar, ver os outros lados. Só que com a afirmação do cristianismo, as escolhas inerentes às heresias, as visões alternativas, as narrativas divergentes, começam a ser vistas como negativas. A escolha passa a ser encarada como um veneno e a ser atacada. O primeiro alvo é a curiosidade.
Podemos ver este livro, Heresia, como uma continuação de A Chegada das Trevas? Estão intimamente ligados?
Os dois livros formam um díptico, são duas faces da mesma moeda em torno do que o cristianismo fez ao mundo de onde surgiu – destruindo muito do conhecimento legado pelos gregos e os romanos, como eu conto em A Chegada das Trevas – e ao mundo que criou. Hoje em dia esquecemo-nos de tudo o que o cristianismo destruiu porque o fez de uma forma muito eficaz. Não sobreviveram pagãos para contar. E depois o tempo foi passando. O cristianismo foi muito bom em apagar tudo, menos a si próprio. E não precisava de ter sido assim, pois havia entendimentos da religião cristã mais abrangentes e inclusivos, como se diz hoje. A passagem do fim do mundo romano para a Idade Média é um período de grandes transformações.
Há muito que se deixou de ver a Idade Média apenas como uma idade das trevas, mas o seu livro não deixa de dar alguns argumentos a essa visão mais obscura…
Essa é uma discussão antiga e é verdade que a ideia de uma idade das trevas está muito ultrapassada. Curiosamente, é uma visão maniqueísta criada pelos próprios cristãos, já que o termo “idade das trevas” vem do cristianismo. Antes da vinda de Jesus, o mundo vivia numa escuridão. Só mais tarde veio a ser aplicada, por oposição ao Renascimento, à Idade Média. Mas, sim, também discordo de muitas pessoas que sugerem que a Idade Média foi uma época de efervescência intelectual.
Porquê?
Houve certamente atividade intelectual, muito trabalho e reflexão, mas não houve liberdade. Nesse sentido, estava-se confinado e limitado pela quantidade de tempo que se dedicava a ler a Bíblia, a interpretá-la e a conhecer quem a interpretou antes. Isso deixou menos espaço para outras leituras, outros campos do saber. Da mesma forma, as bibliotecas não tinham comparação com as do mundo antigo.
Outrora, como agora, queimar livros e destruir património é o caminho mais rápido para apagar uma civilização?
É o que a História nos tem ensinado. Nesse aspeto, queimar livros teve sempre um enorme impacto nas pessoas, embora o número de livros perdidos nesses espetáculos, muitas vezes encenados, tenha sido pequeno. Mas o medo ficava lá e esse, sim, era muito poderoso. É como se essas queimas de livros, que aconteceram em várias épocas, fossem uma espécie de miniato de terrorismo de longo alcance. Em certos casos, algumas pessoas chegavam a destruir os seus próprios livros com medo de serem acusadas de qualquer desvio.
Frequentemente, como sublinha nos seus livros, o desvio era associado à magia.
Que, no mundo antigo, podia ser qualquer coisa, era uma categoria muito vasta. Por vezes, era associada à matemática, noutras à astronomia, tudo podia ficar sob suspeita. Quando se queimam livros está-se sobretudo a condicionar o pensamento das pessoas. E como diz a famosa citação de Walter Bagehot, ensaísta britânico do século XIX, “podem falar da tirania de Nero e Tibério, mas a verdadeira tirania é a do vosso vizinho. A opinião pública é uma influência penetrante e exige obediência a si mesma; exige que pensemos os pensamentos de outros homens, que falemos as palavras de outros homens, que sigamos os hábitos de outros homens.”
Académicos que se dedicam aos estudos clássicos sentem muitas vezes que ao falar sobre o mundo antigo estão a descrever o mundo contemporâneo. Também tem essa experiência?
Constantemente. Basta dizer que A Chega das Trevas começa em Palmira… Ao mesmo tempo que estava a investigar sobre as destruições e perseguições antigas, o ISIS tomava conta da cidade e de outras zonas da Síria, perseguindo e destruindo… Houve até uma estátua greco-romana em particular, mutilada pelos cristão no século V, que acabou totalmente destruída pelo ISIS. E pelas mesmas razões: condenação da idolatria. Por isso, sim: os paralelismos estão sempre a surgir.
E como vê a afirmação de narrativas únicas e semelhantes em todo o mundo (nacionalismo, discursos de ódio, xenofobia), mesmo com tanta tecnologia e possibilidade de acesso a fontes mais amplas e diversificadas?
Talvez as pessoas sintam que é herético contestar as opiniões dominantes… Referi isso na introdução ao meu novo livro. É como se as pessoas se acomodassem a um grupo, qualquer que ele seja, para depois acreditarem piamente nele. Isso vê-se repetidamente, por convicção ou por medo de começar a pensar de forma diferente. As guerras culturais do nosso tempo são um bom exemplo e não poucas vezes se usa a palavra “heresia” para atacar o lado oposto. A internet e as redes sociais só vieram acentuar estas velhas oposições.
Vem a Portugal, esta semana, para participar no encontro Book 2.0 e a sua intervenção insere-se num painel que vê a educação e os livros como forma de desenvolver o potencial humano. Esse é o caminho para um futuro diferente?
É certamente um dos caminhos, não será o único, pois queremos que o mundo seja livre nas suas escolhas. Mas é imprescindível que as pessoas leiam mais do que coisas rápidas, que se dediquem a um envolvimento lento com o texto que tem resultados completamente diferentes. Ler um livro e retirar dele tudo o que nos pode dar exige tempo e esforço. E dessa entrega só podem resultar coisas boas. É o que todos sentimos quando falamos com pessoas interessantes: por norma, leram muitos livros [risos].
Dentro daquele tema mais vasto, a sua intervenção intitula-se “o espírito dos clássicos”.
Como o define?
Duvidar, questionar e, no seu melhor, brincar. Uma diferença muito acentuada com a entrada do cristianismo em cena é o desaparecimento das piadas e das anedotas. É muito revelador. E se há algum paralelismo com este tempo que eu estudei e o atual é a falta de humor, tão presente em todas as guerras culturais contemporâneas. Fico sempre desconfiada quando se condena o riso. Normalmente, não significa que se condena apenas a opinião de uma pessoa. Há muito mais em jogo, uma vontade de controlar tudo o que se diz e como se diz. É o fim da irreverência e do pensamento livre.
Por falar em humor, é filha de uma ex-freira e de um ex-monge e tem uma abordagem crítica, como se viu nesta entrevista, ao cristianismo. Estranhos são os caminhos do Senhor?
Não há como negá-lo [risos]. Só não tenho a certeza se, por ser filha de quem sou, serei mais santa ou mais diabólica. Certamente mais diabólica [risos].