À VISÃO, Inês Lynce fala sobre o problema do acesso das raparigas às áreas STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics) e tenta desconstruir os mitos em torno de alguns assuntos do momento: Inteligência Artificial, algoritmos, chatbots, ChatGPT…
Disse recentemente que as ciências computacionais não mudaram assim muito desde que começou a trabalhar, em 1998, o que, para um leigo, é uma afirmação surpreendente. Porque é que isto acontece?
Porque a base do que agora temos já lá estava. Tudo isto também tem muito a ver com a formação que damos aos alunos. O nosso objetivo não é propriamente ensinar o último grito da moda, porque o último grito da moda vai passar de moda, claro. O nosso objetivo é expô-los a uma série de paradigmas diversificados para que eles depois tenham capacidade de se adaptar. Mas o que é que aconteceu em relação à informática e, sobretudo, em relação à Inteligência Artificial?
E sobretudo porque é que a perceção que temos é exatamente a oposta, de que tudo mudou?
Faz sentido as pessoas terem essa perceção, tudo encaixa… A verdade é que os fundamentos do que estamos a ver agora se situam em 1956, quando começou a Inteligência Artificial e o machine learning, a aprendizagem automática. Atenção: não estou a dizer que usamos as mesmas coisas que foram desenvolvidas na altura, estou a dizer que a base estava lá.
Então, o que se alterou radicalmente?
Mudou o poder computacional, ou seja, o que vem do hardware. Podemos ter o mesmo programa de computador, mas agora o desempenho é, simplesmente, muito superior, porque o hardware é muito mais rápido, e isso é relevante. Outra coisa que mudou foi a quantidade de dados disponíveis, o que está associado a tudo o que é internet, que também apareceu nessa altura, mas não com a projeção que atualmente tem. Há muitos dados a circular, há capacidade para os armazenar e há também capacidade de processar essa informação.
Os chatbots também já existiam?
Sim. O Eliza, que foi o primeiro chatbot, fazia um misto de psicologia/psiquiatria. Pegava na resposta que lhe era dada, para continuar a conversa, e por isso dizemos que a semente já lá estava. O que podemos contrapor é que não era o ChatGPT, pois certamente que não era… O ChatGPT foi treinado com dados que não existiam, tem uma capacidade de processamento que também não existia, e isto muda muito. Metaforicamente, podemos afirmar que as peças do puzzle já lá estavam, o que era preciso fazer era encaixá-las.
Em relação à Inteligência Artificial, parece que não há meio-termo: ora se tem uma visão apocalíptica sobre essa realidade ou se tem uma visão deslumbrada acerca de todas as suas potencialidades.
Mais uma vez: o filme da Inteligência Artificial é antigo e sempre foi semiapocalíptico, já naquela altura se levantavam questões. Só o nome… Só o nome já levantava questões.
Sobretudo porque pretendia confundir-se com a inteligência humana?
O objetivo era mesmo esse. Penso que o nome é cativante, fica na memória. Mas acho que uma parte da visão apocalíptica vem da ignorância. Assim como quem conhece tem mais tendência para o deslumbramento… No outro dia, quando houve o apagão da cloud da Microsoft, provocado por um upgrade, brincámos entre nós como sempre costumamos fazer e perguntámos: “Quem foi o engenheiro?” Ou seja, acredito que aquilo que para quem conhece é uma coisa mínima, que se resolve com facilidade, quase uma linha de código, para uma pessoa que não saiba de programação ou de informática possa ser um bocadinho assustador.
Há aí trabalho a fazer, em termos de comunicação e divulgação?
Penso que aí há muito trabalho a fazer. Não só na questão da Inteligência Artificial, mas na cultura científica em geral. É preciso saber transmitir informação às pessoas. Penso que, nas gerações mais novas, esta questão já está a mudar: quando fiz o doutoramento, no princípio da carreira, ninguém queria saber disso e, agora, vejo pessoas de grande craveira científica a ir às escolas, para falar com os miúdos. Temos de nos esforçar, temos de desmistificar. Estou a dizer isto tudo, mas há um setor que é novo: o dos algoritmos inteligentes, que são derivados de machine learning.
É preciso explicá-los?
Sim, tem de se fazer um esforço para explicar porque é que se chegou àquele resultado. De resto, a Comissão Europeia tem tido esta tónica: como é que se chegou àquelas conclusões?
Porque existe uma certa opacidade?
Sim, porque existe uma certa opacidade e porque, basicamente, o que esses algoritmos fazem é irem iterando até se aperfeiçoarem. Há uma área muito engraçada que se chama Aprendizagem de Reforço, que é um pouco como se fosse a experiência de Pavlov de treino de animais, de dar uma recompensa. Por causa da Open AI, costumo mostrar aos meus alunos um vídeo fabuloso que consiste apenas no treino para um jogo de escondidas, Hide and Seek. A única coisa que é preciso fazer é dar a informação da recompensa quando corre bem e, por isso, basta fazer correr o jogo inúmeras vezes de forma a treinar o algoritmo para dizer qual é o comportamento apropriado. Como isto é apenas um jogo, é indiferente, mas se forem aspetos críticos, é preciso fazer um esforço.
Está a falar do ponto de vista ético ou do ponto de vista da legislação?
Do ponto de vista da Comissão Europeia, que financia projetos de Inteligência Artificial Explicável. É preciso ter uma explicação para dizer: para fazer determinada cirurgia, as pessoas que têm esta idade ou esta condição têm prioridade sobre aquelas. Isto pode não ser nada simples e aquilo de que precisamos é, justamente, uma explicação tão simples quanto possível, mas que não seja uma explicação baseada nas milhares de interações que o algoritmo já teve. Há trabalho nesse sentido e acho que lá chegaremos. Só que aqui é como se a prática fosse à frente da teoria: existem áreas em que, por exemplo, pode haver um medicamento que funciona muito bem para uma doença, quando foi feito para outra, e agora temos de perceber porque é que funciona. Sobre Inteligência Artificial, dizem-me: é perigosíssimo. É como tudo na vida, se alguém quiser fazer uso da tecnologia para um mau fim, até uma calculadora é perigosíssima, não é?
O que é que, nessa matéria, se pode esperar de legislação europeia?
Na Europa, temos uma cultura que, de certa maneira, faz toda a gente querer viver na Europa (e, nesse aspeto, em Portugal, também estamos muito bem). Temos a tendência para pensar que, na Europa, estamos limitados do ponto de vista tecnológico, mas no fundo isso é apenas o outro lado da moeda da qualidade de vida que temos. Lembro-me de, não há muito tempo, numa conferência de Inteligência Artificial sobre aquilo que designamos por visão por computador e reconhecimento fácil, só havia contribuições de chineses. Pudera, na Europa, temos proteção de dados e não andam a usar as nossas caras! Portanto, a Europa tende a ser mais conservadora; os regimes totalitários são menos, já sabemos; e os EUA acabam por balancear entre um lado e o outro, porque lá o capitalismo também tem um peso muito forte…
Então, onde pode a Europa fazer a diferença?
É sempre um jogo de equilíbrios e vê-se como, na Europa, estamos a ferro e fogo com as Googles e as Microsoft… Em alguns assuntos, já perdemos a carruagem, e isso já é nítido há vários anos: mais vale incorporar a tecnologia dos outros e partir. Mas, por exemplo, a Europa tem uma História muito rica e podemos fazer uso desses dados históricos. Desde que seja regulamentado, desde que os dados sejam anonimizados, é perfeitamente possível, por hipótese, pensar em termos de saúde, o que noutros locais não se consegue fazer, porque não existem cuidados de saúde com tanta qualidade.
Em seu entender, o que determina mais o percurso de uma pessoa: o gosto por aquilo que se faz ou a persistência?
A persistência, na investigação é preciso muita persistência. Porque acaba por ser um trabalho muito solitário, muito dependente da aceitação dos pares, do processo de publicação científica. Além disso, o ambiente onde se está também é importantíssimo. Desse ponto de vista, nos EUA, é muito diferente, completam-nos e têm umas redes fabulosas. Gostar do que se faz? Diria que sim, que é importante, mas todos temos altos e baixos e há uma altura em que gostamos mais… Há outra coisa que eu também vejo como um privilégio: dar aulas.
Prefere dar aulas a fazer investigação?
Fazer investigação é muito duro e, quanto mais formal e mais abstrata for a área onde se trabalha, mais difícil é ver o impacto do que fazemos. Se calhar, no princípio da carreira, não via as coisas assim, mas agora vejo: dar aulas tem uma recompensa imediata, que é estarmos a ensinar as pessoas que temos à nossa frente. Vou envelhecendo e percebendo que dar aulas a pessoas com 18, 20 anos me dá uma certa juventude [Risos]. Tenho muito gosto em acompanhá-los e depois seguir o percurso deles.
E a forma de ensinar também se mantém, como diz acerca das ciências computacionais?
Está em curso uma mudança do sistema de ensino. Os alunos, agora, aprendem muito mais sozinhos. O que é que eu acho que nunca se vai perder? Estamos quase a regressar à Antiguidade Clássica: a relação de um para um.
Provocação: não é possível arranjar um chatbot para fazer isso?
Até pode ser, sim. Não vejo mal, por exemplo, que se pergunte a um chatbot que perguntas é que se fazem numa entrevista de emprego. Não vejo mal, desde que depois a pessoa tenha sentido crítico e dali possa fazer alguma triagem. No outro dia, uma colega pediu-me os slides que apresento nas aulas para fazer um exame com um chatbot. Olhei para o resultado e concluí que os meus exames são muito melhores [Risos]. Mas não terei problemas nenhuns no dia em que tiver ali um chatbot que dá algumas perguntas capazes e eu depois olhe e diga: “Esta faz sentido, esta não faz sentido, esta como está não gosto, mas vou adaptá-la.” É só uma questão de usar as ferramentas que temos à disposição.
Pode até aliviá-la de tarefas mais monótonas, pesadas e menos interessantes?
Sim, claro. Quando se começa a dar aulas, entra-se em pânico com a hipótese de os alunos nos perguntarem qualquer coisa que não sabemos. Depois, aprendemos a lidar com essa situação, o pior que pode acontecer é respondermos: “Olha, não sei, vou ver, tenho de confirmar e digo-te na próxima aula.” Aquela ideia antiga da “matéria dada” tem de desaparecer, os alunos já não têm a mesma paciência. Existe uma bibliografia, dizemos qual é a matéria, podem existir umas aulas, sobretudo motivacionais, para que eles fiquem com vontade de saber. Não estou, obviamente, a falar das crianças mais novas… Mas, a este nível, acho que as aulas servem sobretudo para motivar, os alunos aprendem autonomamente e depois vêm com perguntas, se for o caso. Cada vez mais, eles vão aprender sozinhos e isso não é necessariamente mau, desde que haja um acompanhamento, que sejam guiados e orientados.
É a primeira mulher a dirigir o INESC-ID. Faz sentido continuar a salientar as lideranças femininas?
Nesta área, faz todo o sentido, porque se trata de uma área muito complicada. Não tenho, atenção, nada a apontar aos meus colegas. O problema é que as pessoas se habituam, eu própria me habituo, estou muitas vezes em reuniões só com homens e nem reparo. As minhas duas filhas andaram no infantário do Técnico e, um dia, vinha com elas e passámos por um coffee break de uma conferência ou assim. Uma delas perguntou: “Mãe, porque é que aqui são todos homens?”
Para si é, mais ou menos, uma inevitabilidade?
É, e aquilo pesou-me. Ela teria aí uns 4, 5 anos e, mais ou menos na mesma altura, também me perguntou se podia ser Presidente da República. Pensei: “Ai, diabo, quer dizer que ela associa aquela função a um homem.”
O que está relacionado com a questão da confiança.
Parece-me que noutras áreas, na Gestão, na Medicina ou no Direito, isto não é tanto assim. Mas nas engenharias e na Engenharia Informática, não se vê uma curva claramente ascendente. Não está a piorar, mas também não está a melhorar. O que me faz pensar que é preciso começar a trabalhar muitos anos antes. Daí a importância de comunicar Ciência, vai reverter para o bem de todos. Há trabalho feito, mas julgo que ainda não conseguimos dar a volta. E, depois, também existe a ideia de tornar, como direi, os cursos mais femininos…
O que é que isso quer dizer, ajustar as matérias?
Tal e qual, e eu acho que aí quase como fazer um downgrade.
Um estudo recente da professora Anália Torres sobre igualdade de género nas instituições de Ensino Superior revela que Portugal tem até um número elevado de mulheres com graus avançados de formação, mas que essa participação baixa muitíssimo nos lugares de gestão. Sabendo o que sabe, isto surpreende-a?
Não, na base da Engenharia Informática, em Portugal, há poucas mulheres. E, depois, ainda existe um peso brutal da maternidade, que as retrai… Por isso, é importante pôr mulheres em lugares de destaque, para desmistificar.
Os tão falados role models?
Sim, claro. Normalmente, tenho mais alunas do que alunos, o que inverte logo a situação, que é a de haver uma maioria de alunos do sexo masculino. Elas identificam-se mais e, por isso, vêm ter comigo. Não é que eu seja melhor ou pior, mas é importante elas verem, as pessoas verem fazer coisas como dar esta entrevista ou participar em painéis. Também assim se dá o exemplo.
O que está a dizer é que as próprias mulheres têm de fazer um esforço?
Sim, têm de conseguir ter palco para que isso abra caminho para outras, depois, também terem. Não terá de ser sempre assim, apenas até se atingir um equilíbrio razoável. Não julgo que tudo tenha sempre de ser 50/50, haverá sempre profissões em que a prevalência é o masculino ou o feminino. O problema não é esse, o problema é o que continuamos a sentir atualmente: que existem preconceitos e isso é que não devia haver. Ou seja, se uma pessoa gosta daquilo, será aquilo que irá fazer. Ainda não chegámos lá e, por esse motivo, eu digo que estou a trabalhar para a geração das minhas filhas não ter este trabalho…