O primeiro doutorado em Bioética em Portugal dirige, desde setembro, a mais prestigiada organização internacional desta área do saber, centrada em direitos humanos, dos animais e no ambiente. Ex-presidente da Entidade Reguladora da Saúde, o médico Rui Nunes, de 62 anos, integra o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e foi nessa qualidade que, na sexta-feira, 22, esteve na Assembleia da República, uma vez que este comité de bioética é um órgão consultivo do Parlamento “sobre as grandes questões éticas da vida”, como a eutanásia, a interrupção voluntária da gravidez, a procriação medicamente assistida ou a Inteligência Artificial (IA). “Uma área para a qual o nosso país tem de ter um olhar distinto, porque é uma tecnologia muito promissora mas também com grandes desafios do ponto de vista ético, jurídico e social”, diz. Antes de regressar ao Porto, de onde é natural, falou à VISÃO, na casa da democracia.
Numa perspetiva histórica, a IA está ao nível de grandes inovações que transformaram o modo de vida da Humanidade, como a roda, os caminhos de ferro ou a eletricidade?
Está bastante acima disso, porque nós ainda estamos numa fase hiperembrionária da IA. Tem o potencial de alterar profundamente as nossas vidas. Já é muito influente, desde os computadores às aplicações, às compras do supermercado, ao sistema financeiro, até às artes criativas, mas sê-lo-á muito mais. Desenvolveu-se muito depressa e estamos a entrar numa fase em que a IA tem um controlo que não conseguimos explicar.
Por exemplo?
Um médico que vai fazer uma intervenção cirúrgica com um robot dotado de IA. Se médicos, engenheiros e sociedade, em geral, não sabem como a IA toma uma decisão, porque é tão densa e profunda, então como sabemos nós que estamos a ir na direção certa? Se houver uma falha, de quem é a responsabilidade?
Na saúde, é uma oportunidade com riscos?
Trará inúmeros benefícios, isso é claro. Em todas as especialidades, vai ajudar no diagnóstico e nas propostas de tratamento. Mas tem também sérios desafios, porque há este risco de começar a ocupar o espaço dos médicos, através de robots autónomos. Recentemente, um transplante de fígado foi executado integralmente por IA, em Barcelona. Robots que se movem e dominam a linguagem humana são uma evolução sem precedentes. Uma superinteligência artificial pode ter capacidade de moldar o nosso destino coletivo.
Há um ano, uma carta aberta, subscrita por várias personalidades, alertava para a “corrida desenfreada ao desenvolvimento de mentes digitais cada vez mais poderosas, que ninguém, nem mesmo os criadores, consegue entender, prever ou controlar”. Estamos perante um avanço tecnológico de consequências incalculáveis?
Não tenho qualquer dúvida de que estamos. Aliás, o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que vai ser apresentado publicamente, em breve, na Assembleia da República, afirma isso mesmo, que a IA é uma mudança de paradigma imparável. Esse grito de alerta por parte de cientistas e empresários do setor digital não só peca por tardio como é manifestamente ineficaz.
O que está ao alcance fazer?
Aumentar a literacia sobre IA, nas escolas e na sociedade, e reforçar a supervisão jurídica. Há países, como a Coreia do Sul, que estão a fazer programas de formação em IA e novas tecnologias para todas as gerações. Não se compreende porque Portugal ainda não tem um gabinete central que coordene a implementação da IA, quer do ponto de vista tecnológico quer educativo. Há poucos dias, foi aprovada a lei de IA da União Europeia, que deve ser um sinal para o mundo. Mais do que tentar propor moratórias, porque não é possível parar a Ciência – se paramos na Europa, faz-se na Índia ou na China –, deve-se estender o movimento europeu a outros países, nomeadamente às grandes potências, como Estados Unidos da América, China, Índia, Brasil, etc. Pelo menos que os regimes democráticos adotem leis semelhantes, por forma a punir fortemente o que todos consideram inaceitável, como o controlo das emoções humanas através de IA ou o reconhecimento facial sem qualquer supervisão.
O que mais teme na IA?
O que temo é se um dia perdemos a gestão do sistema financeiro, das nossas contas bancárias, do mercado laboral, do sistema de saúde e educativo, se os humanos, por mais inteligentes que sejam, ficam sem condições de controlar toda esta evolução. A supervisão humana é absolutamente central, caso queiramos que a IA sirva a Humanidade e não o contrário.
Em 2012, foi o principal mentor do Testamento Vital. Hoje, existem menos de 40 mil pessoas com registos válidos no sistema informático nacional. Esperava maior adesão?
Nota prévia: uma evolução desta magnitude, no plano dos direitos humanos, vale por si, não é de especial relevância avaliarmos o número efetivo de diretivas antecipadas de vontade ou de testamentos vitais que possam ter sido elaborados. Muitos não estão registados e não são contabilizados. Ainda assim, vou reincidir na proposta para que se torne obrigatório informar os pacientes, no momento da admissão no sistema de saúde, da possibilidade de fazerem um testamento vital.
Se médicos, engenheiros e sociedade, em geral, não sabem como a Inteligência Artificial toma uma decisão, então como sabemos nós que estamos a ir na direção certa? Se houver uma falha, de quem é a responsabilidade?
Porque há mais mulheres do que homens a aderir?
Não há estudo científico empírico credível que possa determinar com rigor, mas penso que há razões de natureza pessoal. Por regra, as mulheres pensam mais nestes aspetos da vida, querem tomar mais precauções e são mais decididas.
A origem do Testamento Vital está ligada ao prolongar da vida sem uma luz de esperança.
Porque em certos casos, nomeadamente terminais, os médicos iam mais além do que alguns doentes desejariam, em virtude da tecnologia altamente sofisticada. Algumas pessoas, para não dizer muitas, entendem que esse excessivo recurso à tecnologia é uma espécie de obstinação terapêutica, tecnicamente designada por distanásia. No fundo, este testamento serve para evitar tratamentos fúteis ou desproporcionados na ótica do doente.
A regulamentação da Lei do Testamento Vital demorou dois anos. A Lei da Eutanásia já foi aprovada há quase um ano e ainda não foi regulamentada. Há dias soube-se que a provedora da Justiça requereu ao Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade da mesma. O que está a falhar?
Na regulamentação da Lei do Testamento Vital, apesar de tudo, foi preciso criar um sistema digital de raiz. Na da eutanásia, não entendo esta demora na regulamentação. Considero extemporâneo abordar de novo a problemática da constitucionalidade, quando o Tribunal Constitucional já se pronunciou favoravelmente e quando a lei já está em vigor.
A lei ficou bem desenhada?
O facto de Portugal ter legislado muitos anos depois de outros países teve vantagens. A nossa lei respeita a vontade de quem está com um sofrimento inultrapassável e evita que a eutanásia voluntária e pontual se torne uma prática indiscriminada, reservando-a a pessoas que mostraram uma vontade firme, reiterada e pensada.
Concorda que, tendo o doente essa faculdade motora, deve ser o próprio a acionar a administração do fármaco, como diz a lei?
É outro mecanismo que a legislação encontrou, que é o exercício da autonomia da vontade, mas tem de haver sempre um médico a supervisionar e a prescrever os fármacos. Quando a pessoa se encontra completamente paralisada, então os médicos ou os enfermeiros podem administrar.
Na Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), despenalizada em 2007 até às dez semanas, vários hospitais do SNS não a executam por objeção de consciência dos médicos que aí exercem. É previsível que o mesmo aconteça em relação à eutanásia?
Nenhum médico pode ser obrigado a praticar um ato contra a sua vontade, mas compete ao objetor de consciência assegurar que são salvaguardados os direitos dos interessados, seja em matéria de IVG, de eutanásia, de procriação medicamente assistida, testamento vital, etc. Estranho ainda existirem hospitais que são objetores de consciência em bloco. No caso da eutanásia, uma vez que médicos e enfermeiros podem administrá-la, o número de potenciais profissionais disponíveis é muito maior.
O que pode um médico objetor de consciência fazer se todos os outros médicos do hospital também o forem?
Pois, esse é que é o problema. Se há serviços em bloco que são objetores, a solução passa pelas administrações hospitalares perceberem essa sensibilidade no momento de recrutarem profissionais, porque, com certeza, ninguém decide ser objetor da manhã para a noite.
Como encarou as declarações de Paulo Núncio, vice-presidente do CDS, que será agora deputado, a sugerir novo referendo sobre o aborto?
Quero crer que se tratou apenas de uma intervenção de natureza eleitoral. Em matérias de vida e de morte, o País não pode andar para a frente e para trás, os portugueses não entenderiam. Temos uma lei avançada. França acabou de colocar no texto constitucional o direito à IVG. Não estou a ver que haja motivos para retrocedermos.
E quanto à procriação medicamente assistida, a legislação é adequada?
Tal como a IA, estas são áreas de rapidíssima evolução tecnológica e, portanto, carecem de evolução legislativa. Hoje discute-se, por exemplo, a criação de gâmetas artificiais, criados in vitro a partir de células estaminais humanas. É evidente que, quando isto for concretizado, vai precisar de regulação jurídica própria. Mas, para o estado do desenvolvimento da procriação medicamente assistida em Portugal, a lei que temos é muito moderna e contempla as principais questões éticas.
Qual é a sua posição sobre a edição genética nos humanos?
Aí tenho algumas restrições éticas. Se for feita para fins terapêuticos que a medicina não alcança, a edição do genoma é um meio de tratamento como outro qualquer. Se for efetuada para melhorar um ser humano que é normal, impondo ao nascituro determinadas características que ele não pediu, como olhos verdes, ser alto, ser homem, ser mulher, ser inteligente ou o que quer que seja, já tenho muitas reservas.
Já que estamos nesta casa, qual o atual estado de saúde da ética na política portuguesa?
Na ética das políticas, a evolução tem sido positiva. Já a ética na política partidária precisava de ser aprofundada, desde logo, por um maior rigor na seleção dos nossos agentes políticos. Tem de haver um compromisso destes junto da sociedade e, por outro lado, a população tem de ser muito mais exigente em relação aos atores políticos.
Vamos ter menos mulheres no Parlamento. Na nova legislatura, de 85 passam a 76. Como estamos a evoluir em matéria de igualdade de género?
Deram-se evoluções muito importantes na lei da paridade, no acesso à saúde e à educação, em determinadas posições económicas e lugares de chefia. Vemos hoje um panorama completamente distinto do que tínhamos há 20 anos. As faculdades de Medicina têm mais de 50% de mulheres. Um exemplo da minha vida profissional na Universidade do Porto: hoje é obrigatório haver paridade de género na constituição de um júri para uma prova de mestrado ou doutoramento. É um mau sinal a involução quanto ao número de deputados na Assembleia da República, mas quero crer que, na constituição do Governo, haverá essa sensibilidade de género.