Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, investigadora gastronómica brasileira, de créditos firmados em perto de uma dezena de livros e na sua condição de membro da Academia Pernambucana de Letras, é quase portuguesa, tantas as vezes que por cá passa e fica. Nesta ocasião, a do lançamento do seu último livro em Portugal, A Mesa de Deus: Os Alimentos da Bíblia (Quetzal, 336 págs., €19,90), fez-se acompanhar do marido, também ele escritor e membro da Academia, dos três filhos e dos quatro netos. Todos estiveram no Grémio Literário, no Chiado, a ouvi-la falar de uma pesquisa que, depois da conversa inicial com Tolentino de Mendonça, a absorveu por dez anos, lhe deu conhecimentos teológicos que não tinha, apesar de ser católica praticante, e uma forma diferente de estar na cozinha.
O livro que acaba de lançar em Portugal nasceu de uma ideia de José Tolentino Mendonça, atual cardeal do Vaticano. Como surgiu essa amizade?
Há mais de uma década, Tolentino foi a Pernambuco, de onde sou natural, para um seminário sobre Fernando Pessoa. O meu marido [o escritor José Paulo Cavalcanti] fez um livro sobre ele e participou dessa conferência. Quando acabou, Tolentino disse-lhe que, quando viesse a Portugal, fosse à capelinha do Rato, onde todos os domingos ele celebrava a missa. “Não sou católico, mas a minha mulher é, e eu vou lá com ela”, respondeu-lhe. Ainda bem, porque foi uma homilia que envolveu toda a gente, ele fala divinamente bem. Quando acabou a missa, convidou-nos para ir às Vicentinas, a casa de chá de Santa Isabel, que era uma maravilha, na Rua de São Bento. Então, numa conversa sobre gastronomias, nasceu a ideia do livro, porque ele falou acerca dos alimentos da Bíblia e eu não sabia absolutamente nada do assunto.
Isso foi há dez anos?
Comecei logo ali a pesquisar, sem nenhuma intenção de fazer o livro. No início, fiquei muito assustada, porque não tinha formação teológica, nem nunca tinha lido a Bíblia. A primeira coisa que fiz foi tirar dúvidas com teólogos importantes e pedir-lhes que me indicassem livros para me ajudar a interpretar o que ia lendo.
E o resultado, trata-se de um livro sobre religião ou gastronomia?
É um livro sobre gastronomia. A Bíblia não tem nenhuma receita, mas intui-se que, usando aquelas ervas, aqueles temperos, aquelas especiarias, as técnicas que eles conheciam, pode fazer-se determinado prato.
De que forma, a partir da leitura da Bíblia, percebeu como eram as refeições na altura?
Está tudo lá descrito, das casas mais simples às mais abastadas. Todos comiam em mesas muito baixinhas, no chão, encostados em almofadas. Como ainda não existiam talheres, alimentavam-se com as mãos. No início, veio a faca e cada um andava com a sua, espetava-a no alimento e assim punha a comida na boca. Depois, muito depois, é que apareceu a colher, mas isso já não está na Bíblia – garfo, faca e colher só se juntaram no século XVIII. Catarina de Médicis foi casar a França e levou um garfo, o que foi um escândalo. A Igreja Católica abominou, dizendo que aquilo era uma coisa do diabo e que não se devia usar.
“O prazer de comer vem de Deus”, disse o Papa Francisco. Depois desta década dedicada à Bíblia e aos seus alimentos, concorda?
Concordo plenamente! É uma coisa divina. O Papa Francisco é um sábio e um glutão – aprecia a boa mesa. Em Pernambuco, há a expressão ‘essa comida, a gente come de joelhos’, que quer dizer que a refeição é considerada sagrada, como se estivéssemos no altar e nos ajoelhássemos para comer. A própria comida é uma coisa muito espiritual.
Tem o hábito de agradecer pela comida que chega à mesa?
Lembro-me de o fazer na casa dos meus pais e avós: quando estávamos todos em volta da mesa, rezava-se. A pressa modificou algumas tradições. As mulheres estão muito ocupadas, trabalham fora de casa, há hábitos que não se conseguem manter.
O pão, muito presente na Bíblia, é o alimento inicial, cheio de simbolismo. O que se comia na altura era um pão ázimo, sem fermento…
A tradução de Belém é “casa do pão”. Jesus era o pão da vida. Em todas as reproduções da Última Ceia, há pão e vinho. O fermento foi descoberto no Egito, por isso já existia no período da Bíblia, só que foi proibido em casas judias, sobretudo na época da Páscoa, pois considerava-se que alterava a essência do alimento. Durante muito tempo, tratava-se apenas do grão triturado, misturado com água e assado em pedras quentes. O principal utensílio de uma casa era a mó, nada mais do que duas pedras sobrepostas que moíam os grãos. As mulheres faziam pão de centeio, cevada, espelta ou trigo. Só mais tarde é que se evoluiu, quando os fogões vieram para dentro de casa e passaram a ser utilizados, em todas as refeições, para se cozinhar.
O vinho, tal como o pão, estava presente em todas as mesas. A técnica de produção era a mesma?
É a mesma técnica de fermentação. A primeira referência ao vinho é com Noé. Diz-se que, quando acabou o dilúvio, mandou plantar uma vinha. E conta-se que nunca perdoou ao filho, que o encontrou nu, numa tenda, embriagado. É a primeira bebedeira da Humanidade. A partir daí, a Bíblia tem muitas regras em relação ao seu consumo.
Tais como?
Por exemplo, escreveram para se ter cuidado com o vinho, porque ele “morde como a cobra e fere”. “Não beba vinho junto de mulher casada”, “seja moderado a tomar um vinho” ou “fale pouco e escute durante as refeições” são outros exemplos de regras de etiqueta.
Qual era a utilização do azeite?
Estava presente em todas as celebrações religiosas, mas também era usado para acender lanternas e como remédio para a pele e para o cabelo. Existiam ânforas em casa só para armazenar o azeite que era usado na alimentação, como tempero. No começo, atirava-se a carne diretamente para o fogo, mas depois os hábitos gastronómicos evoluíram e começou-se a temperar os alimentos em vasilhas, onde se colocavam carnes, verduras e temperos. Assim nasceram os caldos, que foram, durante muito tempo, a base da alimentação de todos os homens. Só mais tarde veio a técnica de fritura.
Fala de pão, vinho, ervas aromáticas e azeite. Esse conjunto de alimentos faz lembrar os princípios da Dieta Mediterrânica…
A Terra Prometida, que depois foi dividida em dois reinos, o de Israel e o de Judá, estava situada em volta do Mediterrâneo, onde cresciam todas as grandes culturas. Havia grande quantidade de verduras, de frutas, muito azeite e leite.
A cozinha pernambucana tem muito da portuguesa. Temos hábitos iguais aos vossos, como, por exemplo, a mesa farta, a família toda junta, a alegria em volta da comida
Como uma mulher licenciada em Psicologia passa a interessar-se pela história dos alimentos, a ponto de fazer disso seu modo de vida?
Começou em 1978, por acaso, quando estava em casa a tratar do meu filho, doente com hepatite. Passei muito tempo a ver televisão… Um dia, apareceu uma senhora num programa de culinária a dar uma receita de sarapatel, aconselhando que se acrescentassem natas no final. Fiquei muito indignada, porque em Pernambuco sempre se fez a mesma receita. Como vem uma pessoa de São Paulo e manda pôr uma lata de natas? Peguei na minha revolta e comecei a pesquisar.
A que conclusão chegou acerca das natas?
Que o sarapatel não era uma receita pernambucana, mas sim uma receita portuguesa. O português levou-a para todas as suas colónias e em cada lugar ela foi ganhando características próprias. Mas, em Pernambuco, fazemos a receita da mesma maneira que os portugueses nos ensinaram. Achei tão fantástico…
… Que nunca mais parou de investigar?
Sendo que na época não havia internet, nem livros de gastronomia em qualquer lugar, como hoje. Deu muito trabalho: pesquisei loucamente sobre todos os pratos, sobre todas as comidas típicas. Encantei-me e comecei a escrever numa revista de cultura chamada Continente, numa coluna com o título Sabores Pernambucanos. Ao fim de muitos anos a escrever essas crónicas, saiu o meu primeiro livro, A História dos Sabores Pernambucanos. Até hoje, nunca mais parei de escrever sobre o assunto.
O que mais caracteriza a gastronomia pernambucana?
Tivemos influências dos africanos, dos índios e dos portugueses. Isso é mais interessante do que possa parecer, porque, por exemplo, a Baía e arredores têm influência maior dos africanos; quando vamos mais para o Norte, já são os indígenas a marcarem as características da culinária.
Pernambuco conseguiu ficar com as coisas boas de cada um?
É uma cozinha mais harmoniosa. Durante muito tempo, o estado de Pernambuco era considerado o maior produtor mundial de açúcar. Então chegaram os portugueses – mas não para viver. Duarte Coelho [governador de Pernambuco no século XVI] foi com a família para morar lá. As senhoras portuguesas levaram então as suas cozinhas; no início, também os ingredientes, mas depois começaram a adaptar as receitas aos produtos que lá existiam. A cozinha pernambucana herdou muito da portuguesa – é uma sorte. Inclusive temos hábitos iguais aos vossos, como, por exemplo, a mesa farta, a família toda junta, a alegria em volta da comida.
Esses hábitos não são comuns ao resto do Brasil?
É muito típico da nossa região. Qualquer casa, por mais simples que seja, faz questão de bem receber. Às vezes, pode ser apenas uma lata vazia, em que se põem as flores, no meio da mesa. É tudo muito bem cuidado e isso nós aprendemos com os portugueses, que levaram inclusive as loiças e os talheres. A doçaria portuguesa também foi adaptada: o bolo de rolo, que é o principal doce pernambucano, é uma adaptação de uma receita portuguesa. A massa é a do colchão de noiva, só que trocámos o recheio de amêndoa – porque não havia – por um recheio de goiaba.
Esse bolo é uma delícia… O açúcar sempre foi o maior pecado?
Na altura da Bíblia, ninguém conhecia o açúcar, mas usavam o mel. Quando surgiu, era tão caro que se vendia em farmácias. Os portugueses foram atraídos para o Brasil à procura de um lugar ideal para a cultura do açúcar. Pernambuco, como já disse, foi o maior produtor mundial, durante os séculos XVI e XVII, e esse açúcar ia depois para todas as vossas colónias. Os holandeses também foram para lá, porque cobiçavam esse produto, e queimaram muitos engenhos dos portugueses e expulsaram-nos para poder ter o domínio do comércio. Mas não conseguiram.
A nossa doçaria é considerada muito doce. Concorda?
É natural. Esse açúcar que nós produzíamos vinha para cá e era usado fartamente nos conventos, que funcionavam como verdadeiros laboratórios gastronómicos. Adoro os vossos doces conventuais e toda a culinária portuguesa. Penso que é o lugar onde se come melhor no mundo. Aqui, os peixes são mais vivos, mais gostosos. A carne é muito saborosa, os cordeiros, o porco… Os portugueses prestam muito atenção à essência dos produtos e nós, em Pernambuco, também temos essa preocupação.
Esta investigação mudou a sua forma de estar na cozinha e de cozinhar?
De cozinhar não, mas mudou a visão da minha própria religião – hoje, Jesus é uma pessoa muito maior do que era quando comecei a fazer este trabalho. O alimento para mim sempre teve muita importância, na minha casa tudo gira em torno da comida. Mas agora compreendo onde está a origem de tudo: foi naquela região que nasceram os hábitos que existem até hoje e a maneira de se preparar muitos pratos. É inevitável ir para a cozinha, ou sentar-me em volta da mesa, e não pensar naquele período.