O discurso pausado e a postura atenta e serena causam impacto. Num primeiro momento, não se diria que ali estava uma ex-militar sueca que foi campeã mundial de tiro de precisão. “Neste nível, o que faz a diferença é o pensamento, não a técnica”, assinala Christina Bengtsson, 49 anos, autora do livro The Art of Focus 10.9 (número alusivo à pontuação máxima na modalidade), que esteve em Lisboa para participar como oradora da 10ª Conferência Grande Liderança Feminina, em Lisboa, a convite do site Executiva. Fomos ao encontro da primeira mulher a liderar o Gabinete de Ligação Europeu do Conseil International du Sports Militaire, que se dedica a fazer palestras pelo mundo (a TEDx Talk, em Gotemburgo, há seis anos, tem mais de 1,6 milhões de visualizações) com uma missão: divulgar as vantagens da clareza mental e resgatar a concentração, uma competência ameaçada na sociedade atual. Na conversa com a VISÃO, fala sobre si e dos seus planos. Olhemos, então, pela sua mira.
A folha do colar que usa na foto do seu site evoca aquela em que centrou a sua atenção antes do disparo que lhe deu o título de campeã do mundo?
Não uso colares e outros acessórios, mas esse pendente teve a intenção de mostrar que uma mente focada está completamente clara e não precisa de nada. A folha a cair, que refiro no início do livro, representa o valor do foco e da simplicidade que ele requer. Escolhi um ponto onde centrar a atenção, libertei-me de pensamentos distrativos e conectei-me com o meu centro. A força interna, descontraída e disciplinada, que eu já tinha é a essência do foco, numa perspetiva de curto prazo.
É difícil estar concentrado. E a aceleração em que vivemos não ajuda. Podemos mudar isso?
Perguntam-me, com frequência, como me tornei a melhor e fui campeã mundial, para fazerem como eu e serem melhores do que os outros. Esta filosofia está ultrapassada, pois dificulta a capacidade de estar focado no momento e de aceder a uma dimensão mais profunda do desempenho, com as melhores qualidades que se tem.
Quando decidiu que queria ser muito boa numa só coisa e, no caso, atiradora de precisão?
Comecei tarde, aos 23 anos, já era adulta, mas tinha autoestima e autoconfiança, que vieram antes. Nasci numa família de agricultores, com um pai forte e uma mãe que tinha uma grande sensibilidade. Cresci numa quinta por onde passaram várias gerações, o que me deu raízes e o sentimento de ter os pés na terra. Aprendi a ter empatia e respeito pelos outros, incluindo os de outras espécies, e tinha um porco como amigo. Era forte, corria rápido e até competia com um cavalo, no caminho para a paragem do autocarro da escola! Um dia, pensei que podia usar estas competências e, não havendo muitas oportunidades naquele lugar, o desporto surgiu como a escolha óbvia. Ainda guardo as notas que escrevi na altura, em tom solene: “Bengtsson, vais ser campeã em tiro de precisão, mas não é só para ter uma medalha ao pescoço, é pelo desenvolvimento pessoal.” O desporto foi o meio para chegar à perícia mental, uma dimensão mais ampla da vida.
A adaptação aos treinos, em condições duras, e sendo a única mulher na equipa nacional sueca de tiro militar, foi como imaginava?
Sabia que seria um desafio. Foi difícil ao ponto de me questionar se deveria recuar na decisão. Enquanto me levavam para a base militar, os meus pais decidiram contar-me que o meu porquinho tinha morrido. Chorei e senti que deixava para trás a segurança da quinta para seguir a minha paixão. As primeiras semanas no mato custaram. Era a única mulher e sentia-me posta de lado. Quando eles ficavam cansados, apoiava-os com uma atitude empática, não escondia a vulnerabilidade por estar longe de casa, falava do medo de não ser suficientemente boa, de não estar à altura do desafio e conquistei o respeito e a amizade deles. Mais tarde, dei-me conta de que se pode chegar a um cargo de topo de forma demasiado rápida, mas sentir-se pequeno por dentro e lutar muito contra isso, sobretudo no masculino. Descobri, ainda, que a maioria das pessoas tem necessidade de ser ouvida e vista, na sua essência, o que facilita a aceitação.
Fez 25 mil horas de treino em tiro de precisão. Sentiu necessidade de fazer pausas de tanto foco e disciplina? Tinha escapes?
Havia alturas em que ficava farta. Repetia-me, a minha concentração estava em baixa e, mesmo se tinha um bom desempenho, sentia que não estava a aprender nada. Numa Páscoa, quando todos estavam a celebrar, cedi a um impulso e fui comprar um bolo e um fato de galinha. Entrei no clube militar, que estava vazio, vesti-o e voltei à prática, rindo por dentro só de imaginar que podiam entrar ali e ver a atual campeã nacional mascarada de galinha! A minha mente encheu-se de endorfinas e ficou mais aguçada, pois tinha de concentrar-me ainda mais e explorar a técnica de forma a que o bico da indumentária não interferisse no processo. Isso criou espaço para a excelência.
Quanto mais ficamos reféns da indústria da atenção, menos tempo sobra para a reflexão e as conexões na vida real. As tecnológicas sabem captar a nossa atenção e oferecem gratificação imediata, criando fenómenos de polarização e de fragmentação
No livro mostra o gráfico dos seus altos e baixos em 15 anos de competição. É mais difícil lidar com o fracasso após ser-se número 1?
A ideia foi seguir a lógica das métricas, à semelhança das linhas do tempo das redes sociais. Assinalei as estrelas e tudo o que aconteceu pelo meio e raramente se vê. O que retirei disto? Subir ao pódio e sair dele teve um profundo impacto em mim: é-se campeã num dia e o seguinte é um dia normal. Não sou melhor do que os outros e, talvez por saber isso, sempre que falhei nunca me perdi. Podemos dedicar atenção e esforço para atingir metas que realmente importam, mas se nos perdermos pelo caminho, já nos distraímos, porque temos de nos encontrar.
Cito o título de uma publicação sua, nas redes sociais: “Tem medo de ser esquecido na corrida pela atenção? Não tenha – em vez disso, trate o foco com respeito.” Pode explicar?
Quanto mais ficamos reféns da indústria da atenção, menos tempo sobra para a reflexão e as conexões na vida real. As tecnológicas sabem captar a nossa atenção e oferecem gratificação imediata, criando fenómenos de polarização e de fragmentação. Quando saí da carreira militar e deixei a competição, onde o foco e a concentração eram respeitados, percebi que as adições comportamentais e a redução progressiva da capacidade de atenção eram a norma e que as soluções rápidas – apps para estruturar melhor o dia ou detox digitais – não vão à raiz desta tendência universal. Com frequência, pedem-me ajuda para ter mais foco, com a intenção de serem mais eficientes, produtivos e alcançar metas de forma mais rápida. Porém, isso é só uma parte do foco e há que dar um passo atrás para recuperá-lo, a um nível mais profundo.
De que forma?
Fazer uma coisa de cada vez e não ceder ao impulso de responder àquilo que surge no momento é o caminho para o verdadeiro sucesso, que requer precisão, disciplina e persistência. Quanto mais se sobe na hierarquia, maior a complexidade. Uso o tiro de precisão como metáfora para ilustrar o foco de forma simples: quando se desconhece o foco de curto prazo, um pré-requisito para o de longo prazo, não se tem a noção daquilo que se procura nem se está apto a parar e avaliar se é boa ideia aceitar um pedido ou dizer não.
Como se gere a relação com a caixa de email, por exemplo?
A solução rápida seria colocar o telemóvel numa caixa para não o ver. Não funciona. Será melhor, antes de abrir o computador e dirigir a atenção para os ícones no ecrã, proteger-se, dar-se alguns segundos e refletir sobre si – “quem sou eu hoje?” – e o propósito da meta que definir nesse dia. Recentemente, o ex-responsável de tecnologia de informação de uma grande empresa sueca dizia-me: “As pessoas até reservam espaço no calendário de trabalho para irem buscar os filhos à escola, senão são bombardeadas com reuniões nesse período e, depois, ainda têm centenas de mails à espera.” Do ponto de vista do funcionamento cerebral, responder a uma parte dos mails cria bem-estar, mas é, de facto, a melhor opção? Quando arranjam tempo para refletir sobre o que realmente importa e porquê?
Como lida com essas questões na vida familiar?
O meu marido teve um acidente grave duas semanas antes de o nosso filho nascer. Depois descobrimos que ele era autista. Era impossível dar vazão a tantas solicitações e precisei de criar espaço e decidir o que não fazer. Custou-me deixar de responder aos estímulos que alimentam a motivação e lidar com o tédio, mas o cérebro de uma criança requer muita presença. Os pais têm de aprender a simplesmente estar. O meu filho, agora com 11 anos, vem da escola às 14h30. Se não estou fora, trabalho menos e fico em casa. O melhor presente que podemos dar a alguém é tempo e atenção. Muitas mulheres sentem culpa por estarem pouco tempo com os filhos, o que também é uma fonte de distração. Mas se se envolverem emocionalmente no tempo que estão com eles, sem pensar “será suficiente?” ou “não acabei aquela tarefa por estar aqui”, fazem um favor ao cérebro, isentando-o de preocupações e de outros sentimentos negativos.
O segredo está em “des-priorizar”, como diz no seu livro?
Tenho uma expressão melhor: pôr de lado a ideia de priorizar, uma vez que as listas, sejam do que fazer ou não fazer, ficam na nossa mente. Não vale a pena ir por aí. Em vez de procurar o que nos falta, temos de aprender a ver as coisas de que não precisamos e fazer uma coisa de cada vez. Com a capacidade de atenção, ligada à memória de trabalho a diminuir, como mostra a neurociência, se não nos lembramos daquilo em que estamos focados, já nos afastamos do alvo.
Em bom português, damos um tiro no pé!
Adoro estas expressões idiomáticas! São antigas, mas funcionam! [Risos.] O foco de curto prazo requer uma presença no aqui e agora. Lembra-se da imagem da folha, que referi há pouco? Só assim se consegue ter a mente clara, liberta de distrações e de preocupações, para que aquilo que já se é capaz de fazer seja realmente excelente. Só que, em vez de nos concentrarmos no momento, preenchemo-lo com estímulos externos, como as redes sociais. Aquilo com que alimentamos o presente converte-se no nosso passado e, quando se enche a memória de trabalho com dados irrelevantes, essa será a base para fazer previsões do futuro.
Enquanto líder do pensamento, tem sugestões para mudar tal cenário?
Já me chamaram ícone do foco, deusa do foco, versão feminina do James Bond! Acho piada, mas isso diz muito sobre como vivemos. Há um grande anseio por clareza, profundidade e franqueza, e noto que as pessoas ficam felizes se virem alguém que seja um modelo, um exemplo a seguir. Eu podia ser uma guru que publica vídeos curtos sobre foco no YouTube e no Instagram, mas prefiro adotar uma linha mais estratégica e ser porta-voz de um movimento global sem fins lucrativos – o Reclaiming Focus –, que tem por missão trabalhar em conjunto com organizações relevantes nas áreas da Filosofia, Neurociência, História, Psicologia, Sociologia, Cultura e Arte, criar uma teoria focada de mudança e implementá-la no mundo corporativo.
Quer deixar uma nota final?
Centrando a atenção na crise climática, percebemos que estamos a explorar os recursos do planeta para lá do aceitável. O princípio aplica-se, também, às nossas mentes. Responder coletivamente aos desafios futuros implica proteger – e revelar – o nosso potencial cognitivo e emocional, porque as novas gerações terão de pensar por si mesmas, com foco de longo prazo.