“Pessoas cúmplices ou envolvidas no terrorismo de extrema-direita destacaram-se na sociedade e não gostam que se investigue. Passou-se uma esponja e ficou tudo limpinho”

“Pessoas cúmplices ou envolvidas no terrorismo de extrema-direita destacaram-se na sociedade e não gostam que se investigue. Passou-se uma esponja e ficou tudo limpinho”

O tempo e as brumas da democracia cerraram a memória do Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP). Mas também do Exército de Libertação de Portugal (ELP), do Plano Maria da Fonte e do grupo bombista nortenho, grupos e siglas do emaranhado do terrorismo de extrema-direita apoiado, no pós-revolução, pela Igreja Católica, agências de espionagem internacionais, grandes capitalistas, ex-combatentes da Guerra Colonial, antigos agentes da PIDE/DGS e mercenários de toda a espécie. Fernando Cavaleiro Ângelo (Cabo Verde, 1970) discorda do termo “rede” para definir a organização, formação e atividades destes movimentos, mas resgata a lembrança desta época com nova documentação e relatos inéditos, centrando a narrativa no MDLP, liderado pelo antigo Presidente da República, António de Spínola.

As Bombas que Aterrorizaram Portugal – Os Bastidores do Terrorismo Contrarrevolucionário no Pós-25 de Abril (Casa das Letras, 328 págs., €19,90) é a mais recente investigação deste oficial da Marinha no ativo que desempenhou, durante mais de 15 anos, diversas funções na área das informações militares. Enquanto autor e investigador, desbravou terreno literário a propósito dos “Flechas”, a tropa secreta da PIDE em Angola, contou a história do envolvimento secreto de Portugal na guerra civil da Nigéria e revelou bastidores da queda da DINFO, o serviço secreto militar que funcionou entre 1974 e 1997. Agora, diz que o capítulo do terrorismo de extrema-direita não está encerrado. Pelo contrário.

Assume que o terrorismo de extrema-direita teve pouco de ideológico e muito de máfia. O que levou a que fosse assim?
Defendo essa tese, até por comparação com os grupos de extrema-esquerda que se seguiram, que eram diferentes. Estes movimentos de extrema-direita, formados após o 28 de setembro de 1974, mas sobretudo a partir do 11 de março de 1975, reuniam militares que tinham experiência da guerra do Ultramar, no caso do MDLP, e ligações à antiga PIDE/DGS, no que diz respeito ao ELP. A organização era muito frágil e apoiaram-se numa rede bombista do Norte composta por mercenários, sobretudo apoiados pelo MDLP. Eram basicamente uma máfia, elementos de uma rede noturna do Porto e de Braga, com promiscuidades com a Igreja Católica. Alguns operacionais do MDLP que estiveram em Espanha no “Ninho” [nome de código dado ao aquartelamento improvisado do movimento em território espanhol] acusavam a cúpula de viver em hotéis faustosos e com qualidade de vida, com dinheiro proveniente de grupos empresariais e capitalistas, sobretudo do Norte do País, que queriam conter a vaga comunista e evitar que o PCP tomasse o poder.

O anticomunismo era guarda-chuva para atividades criminosas?
Sim, mas é preciso dizer que o PCP estava bem organizado, tinha muitos anos de experiência, enquanto alguns dos outros partidos e movimentos nasceram após a revolução, um bocado ad hoc ou género manta de retalhos. A estratégia obedeceu à matriz de Moscovo e da Internacional Comunista. O PCP infiltrou-se na Imprensa estatal e privada, nas estruturas militares e na Comissão de Extinção da PIDE-DGS. Mário Soares avisou o Conselho da Revolução (CR) de que os comunistas usavam a informação privilegiada a que tinham acesso para os seus objetivos. Mas, para o terrorismo de extrema-direita, o anticomunismo era apenas o guarda-chuva ideológico que servia para encobrir negócios ilícitos: fuga de capitais, tráfico de armas, etc…

O que distingue os terrorismos de extrema-direita e de extrema-esquerda?
O período de atividade do terrorismo de extrema-direita foi mais reduzido. A agressividade e a organização são completamente diferentes das Forças Populares 25 de Abril (FP-25). Não se trata de luta armada: a atividade destes movimentos enquadra-se, de forma pura e dura, na definição de terrorismo da ONU e da maioria dos países. Mas não se pode falar em rede de extrema-direita, pelo menos com estrutura e formação à imagem das FP-25. O ELP é um grupo pequeno, muitas vezes usava os mesmos mercenários do MDLP, eram pagos à peça… O comandante Alpoim Calvão, o homem que representava o músculo do MDLP, fez a academia, conhecia camaradas do meio militar e o movimento tem uma matriz mais militar, de elite. Mas o objetivo que proclamava deixou de ter fundamento depois do 25 de Novembro de 1975. É claro que temos de ter em conta a época e o facto de o País, saído da ditadura, se sentir, de repente, um pássaro fora da gaiola e não saber para onde voar. Mas isso não justifica a violência, a agressão e as mortes. A extrema-direita era banditismo puro e duro. O pessoal da DINFO dizia que, por vezes, não se sabia se a bomba colocada debaixo de um carro era pelo facto de o alvo ser comunista ou por razões particulares.

Quem beneficiou do caos e da violência da extrema-direita?
O PS e o PPD/PSD. Os EUA tiveram um papel que não conseguimos provar para lá dos telegramas e de outra documentação, mas apoiaram esses partidos, que conquistaram a maioria dos votos nas eleições de 25 de abril de 1975 para a Assembleia Constituinte, mas não conseguiam governar o País, sentiam-se esmagados. Nos relatórios dos serviços de informação fica-se com a ideia de que, a dada altura, os EUA mudam de rumo: deixam a tónica de apoio aos grupos de extrema-direita, como tinham feito na América do Sul, e, para não inflamar mais a situação política, centram apoios em pessoas mais moderadas ou conservadoras e elementos do CR que podiam fazer regressar os militares aos quartéis, como defendeu Ramalho Eanes.

Ou seja: a CIA, no início, ter-se-á inclinado para um apoio discreto ao extremismo de direita, mas rapidamente percebeu que a estratégia tinha de ser outra. E quem estava mais à mão era o PS…
Da leitura dos relatórios fica-se com essa ideia. Grupos e movimentos internacionais de extrema-direita, patrocinados pela CIA através da rede Stay Behind, estavam a postos para conter uma rápida e agressiva expansão dos países do Pacto de Varsóvia, caso ocorresse. Não há provas do apoio da CIA ao terrorismo de extrema-direita em Portugal, mas não tenho dúvidas de que também aconteceu. Depois, os EUA retificaram a atitude. Franceses e alemães também. Mas o País era sobretudo fulcral para os norte-americanos.

Não faz sentido trazer de novo o estigma da PIDE-DGS a pretexto desse caso [SIS/TAP]. Esse tipo de desinformação alimenta o populismo. E, se o monstro crescer, não sabemos onde irá parar

Alega-se com frequência que o 25 de Novembro de 1975 normalizou o processo democrático. Mas a violência e os atentados ocorreram até meados de 1976, inclusive com mortes (padre Max, Maria de Lurdes, Rosinda Teixeira, embaixada de Cuba). Como explica isso?
O comandante Alpoim Calvão dizia que até ao 25 de Novembro se responsabilizava por todas as bombas colocadas pelo MDLP, mas houve párias e mercenários que continuaram a atuar, não por uma causa ou ideologia, mas para manter as autoridades distraídas do tráfico de armas e de outros negócios ilícitos. O 25 de Novembro foi o pontapé de saída, mas as eleições de 25 de abril de 1976 é que acabaram por normalizar o processo democrático. O CR tem, nessa altura, uma matriz já mais conservadora. Consegue acalmar as hostes e garantir o pluralismo.

O MDLP acreditou na eliminação do PCP. O industrial e dirigente Joaquim Ferreira Torres, assassinado em 1979 quando ameaçou “abrir o livro” em tribunal, dizia que o movimento foi traído no 25 de Novembro, pois teria garantias do CR – nomeadamente de Canto e Castro e Vítor Alves – de que o PCP seria ilegalizado…
Creio que isso foi uma fantasia alimentada por eles. Há sempre quem fique insatisfeito com as decisões tomadas, que acabam por conflituar com o poder e as agendas próprias que imaginavam alcançar. O PCP nunca poderia ser erradicado, só uma visão extremista imaginaria isso. O que se pretendia é que os comunistas não tivessem a hegemonia do período gonçalvista.

Porque escreve que foi passada uma esponja em relação ao terrorismo de extrema-direita?
Pessoas cúmplices ou ativamente envolvidas no terrorismo de extrema-direita começaram a destacar-se na sociedade e não gostam que se investiguem estas questões. Por isso passou-se uma esponja para ficar tudo limpinho. Houve muita gente envolvida, mas só poucos operacionais foram condenados num processo judicial cheio de anulações e adiamentos. Quase meio século depois, ainda não sabemos lidar com o estigma do passado. Não quero deixar esse legado aos meus filhos. Nós só podemos lidar com o passado quando ele está clarinho, não há outra forma. Fiz o mestrado em Inglaterra e frequentei os arquivos. E uma coisa que admiro nos ingleses é o amor que eles têm pela sua Cultura e pela sua História. Aqui, quando vou aos arquivos, vejo uma grande maioria de estrangeiros. Mas nós também temos de estudar o que a esponja ainda não limpou e trazer isso a público.

Com que ideia ficou do acesso aos arquivos e ao que está disponível para investigar temas como este?
Há pouca coisa nos arquivos. Em relação ao que existe, o acesso online melhorou, mas ainda mexemos em muitos papéis originais. Em Inglaterra é impensável. Há um caminho a percorrer. Mesmo nós, militares, ainda temos uma mentalidade que nos leva a destruir tudo. Houve muitos arquivos destruídos, além dos que foram para a ex-URSS, ainda hoje um enigma. Dois oficiais da DINFO foram a Moscovo tentar recuperar alguma coisa, mas a missão revelou-se inglória. Aqui temos muita tendência para destruir documentação classificada. Mas essa documentação é histórica e devíamos fazer o que todos os países fazem: apagar o que tem de ser apagado, para não melindrar uma atividade ou determinada pessoa, mas dando à comunidade a possibilidade de ter uma ideia do que se passou. Ou, pelo menos, uma aproximação à realidade.

Diz que “a Caixa de Pandora tinha de permanecer fechada” para impedir que se soubesse o que se passava na sombra do terrorismo de extrema-direita. Ainda há muito por descobrir?
Sem dúvida. É de inteira justiça abrir essa “caixa”. É um capítulo por explorar, haverá ainda muito para recolher. Poderá gerar melindres, se calhar alguns não querem que os familiares saibam o que andaram a fazer, mas, 50 anos depois, não causará problemas de maior. Na DINFO, havia muita informação sobre as FP-25, mas do anterior Serviço de Deteção e Coordenação da Informação (SDCI), moldado à imagem do KGB e liderado pelo comandante Almada Contreiras, pouco terá sobrado sobre o terrorismo de extrema-direita. Segundo os relatos que me chegaram, parte importante da documentação terá sido destruída na noite do 25 de Novembro.

Este tipo de terrorismo interno pode ocorrer de novo?
O nível de risco é muito reduzido, mas nunca podemos dizer nunca. Na Europa, há relatos e sinais de terrorismo de extrema-direita, embora sem este grau de violência. Mas temos serviços e forças de segurança habilitadas para antecipar esse tipo de ameaças.

Por falar em serviços de segurança: como vê o caso SIS/TAP?
Pronunciar-me sobre isso fere a minha deontologia, mas, 50 anos depois, não faz sentido trazer de novo o estigma da PIDE-DGS a pretexto desse caso. A polícia política é algo muito lá atrás, obedeceu a um regime e a contingências próprias. Esse tipo de desinformação alimenta o populismo. E, se o monstro crescer, não sabemos onde irá parar.

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