“A meritocracia é um conto de fadas, a nova moral. Endeusa os vencedores e martiriza quem falha, como se partíssemos todos de condições iguais”

“A meritocracia é um conto de fadas, a nova moral. Endeusa os vencedores e martiriza quem falha, como se partíssemos todos de condições iguais”

Madalena, Elisa, Marta, Cristina, Filipa e Maria são as protagonistas de Elas – Percursos “Inesperados” de Jovens Mulheres das Classes Populares (Tinta da China, 312 págs., €18,90). O livro do sociólogo João Teixeira Lopes abarca novas reflexões sobre a academia e a sociedade, numa altura em que está em marcha a criação de quotas universitárias para alunos carenciados. “A curiosidade transformou-se em conhecimento”, assume o coordenador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto. A experiência mudou-o: “Respeito toda a diversidade, mas só acredito nela se for capaz de comunicar. Tenho 53 anos, sou homem e médio-burguês. Mas, com esforço e treino, também científico, para não ser dominante ou opressor, compreendi estas mulheres e troquei de lugar com elas. Se não acreditasse nisso, não valia a pena ser sociólogo.” Para início de conversa, João Teixeira Lopes descalça-se. “Ajuda-me a pensar melhor”, justifica, sorrindo.

Quem são “elas” do título do livro e porque é inesperado o seu sucesso académico?
Elas foram minhas alunas na licenciatura e mestrado em Sociologia. São de classes populares, mas revelaram níveis de integração académica elevadíssimos. Metódicas e organizadas, embora não muito participativas, tiveram notas ótimas. Desde há vários anos que me aparecerem excelentes alunas dos meios populares e isso despertou-me para esses percursos inesperados e improváveis. Apesar de provenientes de meios sociais desfavorecidos e de socializações com poucos recursos, estas mulheres mostram que é possível ter excelentes resultados escolares.

O contrário também é verdade?
Sim, há gente com imensos recursos de origem que desbarata tudo nos percursos escolares. A escolaridade ajuda a diversificar práticas culturais, mas depois, nos inquéritos, percebemos que os mais escolarizados não leem muito, vão pouco ao teatro ou a exposições e quase não ouvem música clássica. Há que procurar outros ângulos. A resposta maioritária não diz tudo.

Ser mulher aumenta as dificuldades?
Todos os anos, pergunto às alunas e alunos como são a divisão de tarefas em casa e os tempos livres. Elas são sempre mais prejudicadas pela sobrecarga das tarefas domésticas e porque a insegurança corporal e social as obriga a cuidar mais do aspeto e a estar mais cientes da moda. É uma forma de dominação masculina e social, da qual pouco se fala. Ou seja: são duplamente oprimidas. No entanto, têm excelentes resultados académicos. Tenho mais alunas do que alunos, mas não encontro o análogo nos rapazes.

O que foi determinante?
Elas são de famílias em que já é possível discutir com os pais, contra-argumentar ou até criticá-los por serem homofóbicos ou racistas. As relações democratizaram-se. Tal como os progenitores, elas vão tendo mais recursos, embora sempre à custa de imenso trabalho e sacrifício: muitos pais emigram, sofrem acidentes de trabalho e as mães trabalham loucamente. Mas estas jovens já têm um quarto só delas, e isto é fundamental para serem livres, como dizia Virginia Woolf. Apesar de insuficiências e contradições, o Estado Social foi determinante. O sucesso académico delas é fruto de políticas sociais, boas bibliotecas, bolsas, ação social, atividades extracurriculares e professores com tempo para se interessarem e puxarem por elas. E, muito importante, o facto de termos famílias que acreditam na escola…

A geração dos pais nem sempre pôde valorizar a escola…
Considerava-se que não acrescentava nada e impedia os filhos de ter uma profissão. Hoje, a escola é vista como instrumento decisivo de mobilidade social. Mesmo sendo pouco escolarizados ou não podendo explicar-lhes as matérias, os pais fazem os possíveis e impossíveis para que estas alunas tenham livros, explicadores, etc. E até as estimulam a falar da escola e a ter amigos focados na escola.

E elas? Também mudaram as famílias?
Muito. Discutem a pluralidade de orientações sexuais, refrearam juízos racistas e redefiniram o papel da mulher: têm voz, já não baixam os olhos, discutem. A maioria já tem companheiros, vida sexual ativa, os namorados dormem em casa dos pais… Elas conquistaram esse espaço. Embora sem o mesmo à-vontade, a maioria já fala de sexualidade com os pais homens. É uma mudança muito significativa.

Como se explica que continuem a interiorizar o sacrifício, a austeridade e até a renúncia a direitos?
Ainda não superaram isso. Somos vários, contraditórios. “Há multidões dentro de mim”, dizia o Walt Whitman. Elas obrigam-se a ser frugais, austeras e a poupar. Ainda que a coberto do que é sustentável e ecológico, são as primeiras a criticar as mães quando estas, usando uma folga financeira, fazem um consumo mais ostentatório. Depois querem recompensar o esforço dos pais com resultados escolares. Por isso vão aos limites. Sentem não haver margem para falhar. E isso tem consequências no corpo, na saúde mental. Os rapazes vão para a construção civil, emigram, e elas ocupam um espaço onde só a escola amplia as margens da liberdade. Caso contrário, acabarão operárias fabris ou cabeleireiras.

Quem está contra as quotas para alunos carenciados nas universidades são os que querem manter coutadas e feudos. É um discurso defensivo, de quem sente o seu privilégio ameaçado

É justo que a sociedade individualize os falhanços?
Não, mas elas apanharam a força do discurso neoliberal, essa espécie de moral punitiva que as responsabiliza pelos fracassos. Elas começam a pensar-se dentro de contextos e processos sociais, mas interiorizaram a ideia de nunca viver acima das possibilidades. A memória da troika, bem como a ideologia meritocrática associada, condiciona-as.

Onde entra a meritocracia nisto?
A meritocracia é um conto de fadas, a nova moral. Endeusa os vencedores e martiriza quem falha, como se partíssemos todos de condições iguais. É o darwinismo social dos nossos dias. Ao naturalizar-se, a meritocracia é uma espécie de ar que respiramos: coloniza o pensamento e a nossa forma de estar no mundo.

Estas mulheres enfrentaram também preconceitos…
A escritora Arnie Ernaux e a filósofa Chantal Jaquet chamam-lhes “transclasses”, pessoas em trânsito entre classes sociais: estão, em muitos aspetos, distantes do meio de origem, mas ainda não suficientemente integradas no meio académico. Quando chegam, estranham colegas, professores, linguagem, referências. E enfrentam preconceitos: são ridicularizadas ou corrigidas por causa do sotaque de origem. A própria universidade não respeita a pluralidade linguística, impõe uma normativa da fala. Elas vencem porque já têm hábitos e percursos feitos de método, organização e perseverança.

O que já é irreversível?
Sou prudente, até porque tenho o pacto de entrevistá-las de novo daqui a cinco anos, mas considero irreversível a conquista de um papel ativo como mulheres e a rejeição da subalternidade. A formação universitária reforçou isso. O pensamento reflexivo, crítico, a visão mais alargada da sua condição, também é irreversível. E isso permite resistir melhor às imposições ideológicas, ao senso comum e ao preconceito. Também estará adquirida uma certa mobilidade social, mas aí sou ainda mais prudente. Elas têm a noção de que, apesar de serem muito qualificadas, enfrentarão um mercado de trabalho mais precário e sem o retorno merecido. De qualquer modo, terão mais recursos do que os pais para lidar com essa situação. E isso também é irreversível.

E terão sempre “manhas de sobrevivência”, como lhes chama?
Nunca as perderão. Se necessário, serão ainda mais metódicas, organizadas e poupadas. Mas volto à prudência: certas disposições que consideramos adquiridas adormecem em contextos desfavoráveis. Muitos alunos ganham hábitos culturais, mas, no regresso às origens, não têm oferta cultural ou vão para empregos pouco estimulantes ou rotineiros. E perdem hábitos adquiridos. Estas mulheres estão decididas a evitar regressões. Mas nem tudo depende delas.

Concorda com quotas para alunos carenciados nas universidades?
Concordo e satisfaz-me que o Conselho de Reitores as tenha adotado de forma unânime. Até me surpreendeu! É pouco, são 2% das vagas em cada ciclo de estudos, mas os países que aplicaram quotas para enfrentar apartheids raciais, de género ou sociais, conseguiram superá-los parcialmente. Famílias afastadas do universo escolar tiveram, pela primeira vez, acesso a ele. E isso não tem apenas efeito nos alunos: a socialização também se faz dos mais novos para os mais velhos. A medida abrirá horizontes, trará novos temas para discussão e combaterá preconceitos e dogmas. É um instrumento de mobilidade social e de dignificação de uma existência plural.  

Os mais críticos consideram que levará à perda de qualidade do ensino e à diminuição da exigência…
Quem está contra as quotas são os que querem manter coutadas e feudos. Sempre que houve democratização da sociedade, esforços de abertura às mulheres e trabalhadores nas escolas, clubes ou associações mais fechadas, o discurso foi esse. Dizia-se que, quando o voto passasse a ser possível para as mulheres ou os pobres, a democracia degradar-se-ia. É um discurso defensivo, de quem sente o seu privilégio ameaçado.

Que outras políticas urgem para democratizar o Ensino Superior?
Urge aumentar a integração social. A pandemia acentuou a ansiedade e o isolamento social nos alunos e não há respostas, não há deteção precoce, estão ao deus-dará. Nos EUA, ainda há campus com mentores, tutores e mediadores sociais, mas por cá a capilaridade da presença do Estado é inexistente. Se os universitários não tiverem outro tipo de redes sociais, ficam abandonados. Preocupam-me muito os estudantes brasileiros que já vivem aqui há anos. Professores dizem-lhes que não falam português “legítimo” ou desprezam a sua mundividência. Se não forem brancos, são vítimas de racismo e têm dificuldade em conseguir habitação decente. Noto-os fragilizados e vulneráveis. São cada vez mais, e muitos contribuem para a saúde financeira das instituições.

E a academia? Também tem de descer à terra, por assim dizer?
Há dois problemas: a grandiloquência, estéril, e a falta de coincidência entre leis avançadas e práticas atrasadas. Há muito conservadorismo, devíamos ser obrigados a ter formação pedagógica. Nunca tive! Existe a ideia de que a cátedra, o falar bem, com autoridade e performance ritualizada, faz um bom professor. É importante reduzir turmas e o ensino industrializado. A pressão da performance, dos rankings e da bibliometria diminui a qualidade da relação pedagógica.

Assédios, endogamia, abusos. O que os casos recentes revelam sobre a academia e os seus silêncios?
A academia não é uma torre de marfim. O “respeitinho” ainda é muito bonito e o Ensino Superior insere-se numa sociedade profundamente marcada por hierarquias e relações desiguais de poder, tal como nas empresas, igrejas ou na maioria dos partidos! E não é tudo igual, não exageremos na simplificação… Há 30 anos, quando iniciei o percurso docente, os catedráticos eram autênticos senhores feudais. Mas existe ainda um grande fosso entre o topo e a base das carreiras, redes clientelares, seitas epistemológicas e cultos de personalidade, num contexto de precariedade na base e de conformismo generalizado. A universidade é muito pouco rebelde, altamente burocratizada, com o poder demasiado concentrado nas direções, fragmentada pela competição, sem estímulo à participação. Essas caraterísticas favorecem abusos. O extrativismo intelectual é, de longe, o mais frequente e disseminado.

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