Quantos neurónios tem um cérebro humano? Durante muito tempo, a resposta foi cem mil milhões. Até que a neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel, 50 anos, desconfiada de uma resposta não apoiada em evidência, decidiu contá-los. Para isso inventou um método que passou por “cozinhar” uma “sopa cerebral”, feita de quatro cérebros dissolvidos. A partir de uma amostra da mistura, contou os núcleos celulares dos neurónios e a conclusão foi a de que, afinal, a realidade não é assim tão redonda: cada cérebro humano tem 86 mil milhões de neurónios. Mas tão importante como o número de neurónios é aquilo que se faz com eles, ou seja, a que tipo de estímulos está o cérebro sujeito. Outra das descobertas feitas por Suzana (que ao fim de quase duas décadas de trabalho de investigação no Brasil, se fartou da insuficiente aposta na Ciência e aceitou um convite para trabalhar na Universidade de Vanderbilt, nos EUA) foi a de que quanto mais neurónios corticais uma espécie tem, mais complexa e flexível é a capacidade cognitiva da mesma, independentemente do tamanho do cérebro, e também que com mais neurónios corticais vem uma vida mais longa – por razões ainda desconhecidas e que Suzana espera vir a descobrir, a partir de um trabalho de colaboração com o ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida.
Não é frustrante trabalhar no estudo do cérebro, tendo em conta que é uma tarefa interminável?
De maneira nenhuma! A graça não é chegar. A graça é ir procurando. É uma das descobertas importantes das neurociências. O prazer não está nos objetos. O prazer está em fazer um esforço e descobrir que este vale a pena. Por isso, [em Ciência] terminamos um projeto e começamos outro. Espero que seja um projeto sem fim, em que termina uma questão e encontramos logo outra. Em geral, a cada pergunta que respondemos, surgem outras dez novas. O que é fascinante! E é justamente esta garantia de que não tem fim que torna a pesquisa científica tão entusiasmante, para quem aprecia esta atividade. Porque é garantido que não vai ter fim.
Capacidades dependem da biologia: temos ou não os sistemas que permitem fazer determinada função. Habilidades dependem do que se faz com essas capacidades, do esforço, do interesse e das oportunidades
Que pergunta a ocupa mais, atualmente?
No momento, estou focada em tentar perceber como é possível que cérebros com o mesmo tamanho tenham números de neurónios diferentes. A pergunta será “como é que não é verdade que a um animal maior corresponda um cérebro maior, com mais neurónios” – já sabemos que não funciona assim. De onde vem a diversidade que encontramos não só relativamente ao número de neurónios que animais diferentes têm, mas também quanto ao cérebro e ao corpo que animais diferentes têm. E ainda tentar perceber como é possível que estas coisas não estejam relacionadas. Porque não estão.
Está a referir-se à variabilidade entre espécies diferentes?
Variabilidade entre espécies e dentro da mesma espécie. No trabalho com o Rui Oliveira [diretor do ISPA], que estamos a começar, partimos de algo que já se sabe. Aliás, que toda a gente que já teve peixes em casa sabe: quando criamos diferentes quantidades de peixes, em aquários do mesmo tamanho, verificamos que se existem muitos animais para um espaço pequeno, estes não crescem, ficam pequenos. Estamos a usar esta manipulação para gerar peixes com uma gama enorme de indivíduos. Tilápias com diferentes tamanhos de corpo e de cérebro e, descobrimos, número de neurónios também. Então a pergunta é: o que determina esta variação? Se todos os animais com cérebro maior têm mais neurónios? A resposta é não. Como é que a resposta é não e quais as relações [entre os vários parâmetros] é fascinante e é o que estamos a tentar perceber.
O que já se sabe a este respeito?
Estamos a descobrir, muito claramente, que tamanho do cérebro e número de neurónios gerados neste cérebro são duas variáveis independentes. O que é muito importante, porque é bastante diferente do que sempre se presumiu: que um cérebro maior é feito de mais neurónios. Não é. São duas coisas separadas. Há algo que determina o tamanho que o cérebro pode ter e algo que determina quantos neurónios vão ser gerados naquele cérebro.
E mais neurónios geram um cérebro mais inteligente ou com mais competências?
Em princípio, sim. Isto é algo que faz sentido entre espécies, quando se compara números muito diferentes de neurónios. Entre indivíduos de uma mesma espécie, aí há outros fatores. Há a variabilidade biológica, mas também há uma questão que é: o que medimos não é tanto a capacidade biológica, são as habilidades. Ou seja, é o que se faz com o que se tem. E aí há uma componente muito importante que é a aprendizagem, o esforço que é feito e as oportunidades que a pessoa tem.
Mas há pessoas que parecem ser objetivamente mais inteligentes ou mais capazes?
Não sei! Há pessoas que se tornam extremamente competentes a fazer alguma coisa, simplesmente porque começaram a fazê-la. Por isso é tão importante fazer a distinção entre capacidade e habilidade. Capacidade depende da biologia: temos os sistemas que permitem fazer determinada função, sim ou não. É capaz de falar, de aprender línguas. Mas as habilidades dependem do que se faz com estas capacidades, que depende de esforço, de interesse, mas também das oportunidades. Por isso, ser igualitário nas oportunidades que se oferece é tão importante para uma sociedade.
Filhos dos mesmos pais, que crescem no mesmo ambiente, tornam-se pessoas muito diferentes.
Entendo esta assunção. Mas é preciso notar que, para começar, o ambiente não é o mesmo porque um é o ambiente do outro. Então se há dois irmãos com personalidades muito diferentes – que é algo que existe – é porque cada um deles cresce num ambiente completamente diferente, porque cada um irá lidar com o outro. Portanto, mesmo dentro de casa, o ambiente de cada um deles será diferente. O cérebro de cada pessoa vai tomando forma de acordo com o que cada um faz. O cérebro vai-se esculpindo ao longo da vida. E isto significa que vai tomando caminhos diferentes. Mesmo em gémeos idênticos, vai ocorrendo esta diferença nos caminhos escolhidos, vão-se acumulando experiências diferentes, habilidades diferentes. Tornam-se pessoas diferentes. Nasceram com a mesma biologia, sim. Mas cada um se torna um indivíduo diferente, com a sua própria história, o seu próprio cérebro que assumiu uma forma particular por causa do caminho escolhido.
A técnica que desenvolveu permitiu acertar o número de neurónios que um cérebro humano tem. Menos 15 mil milhões do que era assumido. O que significa esta diferença?
Um cérebro de babuíno inteiro. Em termos evolutivos, encontrar uma espécie que ganha 14 mil milhões de neurónios é um processo que leva dezenas de milhões de anos. O cérebro humano, em concreto o córtex cerebral humano, ganhou cerca de oito mil milhões de neurónios em dois milhões de anos. O que foi extraordinariamente rápido! Então 14 mil milhões seria o dobro disso. Ou seja, mesmo com a mudança acelerada, levaria quatro milhões de anos a ganhar esta quantidade de neurónios.
O que distingue o nosso cérebro do de outros mamíferos?
Nós temos capacidades que todos os outros mamíferos também têm. As competências do cérebro dependem da forma como os neurónios se organizam, qual o tipo de circuitos estabelecidos. Hoje sabemos que este tipo de circuitos é o mesmo em qualquer tipo de vertebrado. Um cérebro de ave tem o mesmo tipo de circuitos que um cérebro de mamífero.
Quer dizer que uma ave podia falar? Bem, os papagaios falam…
Exato! As aves têm capacidade de falar.
Mas não produzem um discurso, limitam-se a reproduzir o que ouvem.
Hum… não sei. Acho que a capacidade está lá. Apenas não têm ativa a possibilidade de interagir em número suficiente, por tempo suficiente, para desenvolverem a sua própria linguagem. Esta é a diferença, tão importante, entre capacidade e habilidade. Em termos de capacidade, uma arara tem tantos neurónios no córtex cerebral quanto um babuíno. Ou seja, em princípio, se tivessem o mesmo corpo, seriam capazes de fazer as mesmas coisas. A ave, que não tem dedos, não pode usá-los para manipular. Mas ainda pode fazê-lo com os pés e com o bico, e elas fazem isto muito bem. Mas claro que não vão tocar piano. Aliás, o piano é uma invenção nossa. Podemos questionar se as araras também seriam capazes de tocar, bem, um instrumento que conseguissem manipular. O que podemos dizer no momento é que as araras são capazes de fazer muito bem o que fazem, com o que têm, que é o bico e as patas.
O cérebro humano, o córtex cerebral, ganhou cerca de oito mil milhões de neurónios em dois milhões de anos. O que foi extraordinariamente rápido!
Isto quer dizer que outras espécies poderão ainda seguir o caminho da diferenciação feito pelos humanos?
Eu diria que não, por uma razão muito simples. Habilidade é o fundamento da cultura. Nós somos uma espécie que vive tanto, tanto, tempo, em termos de longevidade individual mesmo, que temos capacidade de criar conhecimento e de o transmitir de uma geração para outra. E é assim que se cria cultura. E esta vida longa vem juntamente com o grande número de neurónios que temos. Foi outra coisa que mostrei recentemente, que o tempo máximo de vida de uma espécie de sangue quente varia juntamente com o número de neurónios desta espécie. Aí, faz completo sentido que a espécie humana seja muito longeva porque é a espécie que tem maior número de neurónios no córtex cerebral.
Mas as tartarugas também vivem muito.
Animais de sangue quente. Só se podem comparar maçãs com maçãs. Ainda não publicámos esta parte, mas já verificámos que se compararmos répteis, isto também é válido: quanto mais neurónios, mais tempo de vida a espécie tem. Portanto, se com mais neurónios no córtex cerebral vem mais tempo de vida, isto também permite criar uma cultura. Começa com transformar capacidades em habilidades e depois montar uma cultura com estas habilidades todas.
Um elemento essencial nesta questão é a alimentação. Como demonstrou.
Sim, em concreto o impacto da distribuição de energia pelos neurónios do cérebro, a diferença que faz aumentar o aporte nutricional. Cada cérebro só mantém os neurónios que consegue alimentar. Então a nutrição, neste sentido, é extremamente importante. De uma geração para outra, há o potencial de ir aumentando o tamanho do corpo, do cérebro. Foi isso que fizemos com a domesticação, que é aumentar o aporte de energia, a primeira coisa que se nota é o aumento do tamanho do corpo. A outra é potencialmente o aumento do tamanho do cérebro.
E da longevidade. E têm mais neurónios?
Esta é a expectativa. Mas isso nós ainda não sabemos. Estamos a começar a fazer este trabalho, em ratinhos, que em média vivem dois anos.
Um animal em cativeiro, com todos os nutrientes de que precisa, protegido dos predadores…
Não vai viver eternamente! O tempo de vida disponível de uma espécie e também de um indivíduo depende de quantos neurónios tem no córtex cerebral. Aumentar a longevidade requer transformar este número de neurónios da espécie, o que decorre ao longo do tempo, de milhões de anos, ao longo de gerações. Não é algo que se produza num único indivíduo.
O ser humano está a ficar mais inteligente?
Isto é inútil discutir se não definirmos antes o que é inteligência.
Então, estamos a ficar com mais neurónios?
Não sei, não há como responder a isso.