Quem nunca se sentiu ansioso é porque não está vivo. Na verdade, sem esse mecanismo de alerta ancestral, a espécie humana não teria sobrevivido. No livro 300 Mil Anos de Ansiedade (Lua de Papel, 256 págs., €16,90), o diretor clínico do Centro PIN – Partners in Neuroscience troca por miúdos um tema complexo, com evidências científicas, ilustrações e cartoons. A ideia é que o leitor fique a conhecer a biologia da “dona ansiedade”, as alterações hormonais, os circuitos neuronais e os fatores ambientais e genéticos responsáveis por ficarmos com “os nervos à flor da pele”, um fenómeno que parece tomar, cada vez mais, conta dos nossos dias. O docente da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa tem uma explicação para isso: os mecanismos que ajudaram os nossos antepassados levam-nos a responder aos desafios quotidianos da sociedade atual como se fossem perigos letais, o que os torna desajustados. Mas hoje existem soluções que não passavam de ficção para as gerações anteriores e basta pedir ajuda para tirar partido delas.
O que o levou a lançar este livro, havendo já tantos sobre o tema?
Quis escrever uma obra com rigor científico, mas em linguagem acessível e com um toque de humor e leveza. Não é de autoajuda nem tem uma lógica motivacional do tipo “tu consegues”, mas dedico três capítulos aos tratamentos disponíveis e aos estilos de vida que ajudam a prevenir e a gerir a ansiedade.
A que se deve o título escolhido?
A ansiedade sempre existiu. A seleção natural fez com que sobrevivessem os mais aptos a fugir da fome, dos predadores e a lutar contra ameaças, passando os genes à descendência. A diferença, face ao que sucedia há 300 mil anos – a duração do Homo sapiens sapiens, como revelou a revista Nature, em 2018 –, tudo mudou: sofremos de stresse crónico, bem mais prejudicial para a saúde do que o stresse agudo.
De nada serviram as soluções que criámos para minimizar perigos?
O cérebro evoluiu muito, mas só estamos adaptados a lidar com o stresse agudo em situações temporárias como a perda do emprego ou a doença de um familiar. A organização social que temos é revestida de stresse crónico: de um lado, as preocupações com a saúde, os casamentos, os divórcios, os despedimentos, os ordenados baixos, as contas para pagar e, do outro, as filas do trânsito, o registo biométrico no emprego, a incapacidade de separar o trabalho híbrido da vida pessoal. São pressões psicológicas que fazem disparar o mecanismo de alerta e impactam no corpo como uma doença física ou uma infeção, propiciando doença mental do espetro da ansiedade e da depressão.
O que faz com que uns sejam mais vulneráveis do que outros?
Cada indivíduo reage aos acontecimentos de forma diferente, em função dos aspetos genéticos e biológicos e, ainda, da personalidade, que resulta da relação com os pais e a família e do que acontece durante o crescimento, que são fatores ambientais. Os mecanismos de coping resultantes da combinação destes fatores podem originar um perfil disfuncional, mesmo quando os acontecimentos não são nefastos.
Quando é que a ansiedade se torna patológica?
Os sintomas são sempre os mesmos: ativação fisiológica e psíquica, estado de alerta, preocupação, medo, sudorese, tremores, palpitações e o contexto é que varia. Ansiedade normal, toda a gente tem, mas é ajustada, proporcional, tem duração limitada e passa. A patológica é mais intensa, duradoura e desproporcional em relação ao que a causou.
Como se explicam os ataques de pânico e as fobias?
Um ataque de pânico pode surgir espontaneamente numa fase de vida complicada, tem curta duração e é muito intenso ao ponto de a pessoa sentir que vai morrer ou enlouquecer, mas só é doença, ou perturbação de pânico, quando se desenvolve o medo de os ter novamente. A fobia não é tão intensa e surge sempre que se está, ou se imagina estar, em contacto com um objeto específico e têm uma relação com a evolução da espécie. A claustrofobia, ou medo de sítios fechados, remonta ao tempo em que se temia ficar encurralado numa gruta sem conseguir fugir. O mesmo para a fobia ao sangue ou a injeções: ancestralmente é mau sinal. A psicoterapia é a solução para ambos os casos.
Porque não se recorre à realidade virtual para tratar fobias, como noutros países?
É algo que é investigado, mas pouco utilizado. No PIN, estamos a fazer uma parceria com a Universidade Lusófona para desenvolver tratamentos baseados na realidade virtual para as perturbações da ansiedade.
Segundo o Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental, são poucos os que conseguem obter ajuda psicológica. Quem procura sempre encontra, ou talvez não?
Por mais mentalmente saudável que se seja, pode-se ter uma perturbação psiquiátrica ou psicológica, mas uma percentagem elevada de pessoas não procura ajuda ou fá-lo tardiamente, por medo ou estigma, achando que ir ao psicólogo é para os fracos e pessoas que não estão boas da cabeça ou por resistir a tomar medicamentos.
Não estamos, ainda, conscientes das questões de saúde mental?
Serão precisas mais décadas para mudar ideias que estão culturalmente muito enraizadas. As novas gerações normalizam mais o tema da perturbação mental. Porém, não se deve cair no risco de pensar que “é OK não estar OK” e que todos podem viver com isso. Há pessoas que precisam de acompanhamento psicológico e, eventualmente, de medicação. O Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental, que tem alguns anos, diz que uma em cada quatro pessoas vai ter uma perturbação de ansiedade. Hoje, podem ser mais ainda.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, a prevalência da ansiedade no mundo é de 25%. A “culpa” é só dos efeitos da pandemia?
Esse trabalho, da Lancet, mostra claramente um aumento da prevalência da depressão e da ansiedade. Elas devem-se, em parte, à agudização súbita de fatores de stresse pré-existentes, aos quais se somaram preocupações sobre o futuro: como vai ser a vida dos nossos filhos? As infâncias estão prejudicadas? E as adolescências, perdidas?
As angústias dos jovens têm alguma relação com as dos pais?
Há um duplo efeito na forma como a ansiedade se transmite de geração em geração: pais ansiosos transmitem os genes aos filhos e ensinam-lhes estratégias ansiosas. O que a descendência faz com isso depende do peso dos fatores genéticos e ambientais. Existem pessoas com graves perturbações de ansiedade, mas sem grandes problemas de vida e outras que, não tendo grande suscetibilidade biológica, se deparam com problemas sucessivos e stresse crónico, o que afeta muito o funcionamento cerebral.
“Está tudo na cabeça.” Somos reféns da nossa imaginação?
Prefiro viver numa casa confortável do que na savana, a ser perseguido por leões, mas o meu cérebro pode não achar o mesmo! A evolução cerebral deu-nos uma grande capacidade de memória e de antecipação, mas também a possibilidade de imaginar cenários de risco que não existem, com o impacto físico e psicológico de um acontecimento real. Sofrer um divórcio ou imaginar que alguém vai morrer pode ter o mesmo efeito.
Houve avanços farmacológicos, mas critica-se o excesso de prescrições. Quer comentar?
Os primeiros medicamentos efetivos na psiquiatria datam dos anos 1950 e 1960 e tinham muitos efeitos secundários, mas isso ficou gravado na memória da população. A indústria farmacêutica evoluiu e devolveu a normalidade a muita gente. Os antidepressivos com indicação para tratar a ansiedade têm poucos efeitos adversos e não causam dependência, já as benzodiazepinas precisam de uma dose cada vez maior para se obter o mesmo efeito, mas não há nenhum fármaco que alivie a ansiedade grave, de imediato, de forma ultraeficaz e praticamente sem efeitos adversos. Se uma pessoa tiver ataques de pânico sucessivos, é desumano não medicá-la. Os fármacos regulam a orquestra de neurotransmissores e, depois, faz-se um desmame. A psicoterapia ajuda a lidar melhor com os acontecimentos no futuro. Ambos se complementam e nenhum substitui o outro.
Até que ponto os canabinoides são úteis para reduzir a ansiedade?
Fico preocupado. É frequente ser abordado sobre isso, pacientes que dizem ser preferível fumar erva a tomar medicação, mas os estudos mostram que o consumo prolongado de canábis agrava os sintomas da ansiedade. O THC (a substância que dá a “moca”) está associado ao aumento do risco de sintomas e primeiros episódios psicóticos. O CBD (canabidiol) está a ser estudado para uma possível eficácia no tratamento da ansiedade, não tem, ainda, resultados positivos, portanto não o recomendo. De resto, as doses de CBD vendidas nas lojas são “homeopáticas”, não se comparam às dos estudos internacionais. Quem diz que se sente melhor está a ser vítima do efeito placebo.
O que faz se lhe pedem ajuda para alguém que resiste a procurá-la?
Isso acontece, mas na ausência de critérios para fazer um diagnóstico de perturbação de ansiedade, não se vai dar medicação a alguém que lida com uma pessoa ansiosa. Aí, sensibilizo quem me procura para os benefícios de procurar ajuda e recorrer à intervenção psicológica.
Contudo, há quem queira e não possa pagar. O que fazer?
Faz-se o possível. É verdade que a capacidade de adesão está limitada pelas condições socioeconómicas, pois o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem vindo a deteriorar-se. O acesso à psiquiatria não é difícil, o problema é não haver uma distribuição geográfica homogénea da oferta. O tempo de espera para consultas de psiquiatria está a aumentar e os tempos entre consultas são cada vez mais prolongados, prejudicando a qualidade do acompanhamento, mas o acesso à psicoterapia é pior. A montante, há muita gente sem médico de família, a porta de entrada para estas consultas.
São justas as queixas sobre a falta de cuidados personalizados e de não se ouvirem os doentes?
Na generalidade, acredito que os profissionais de saúde do SNS fazem o seu melhor, apesar de exaustos e dos constrangimentos que enfrentam. A sociedade que construímos é predominantemente boa e acredito que os avanços tecnológicos não vão substituir o humanismo. O ser humano precisa do contacto com outros, é isso que lhe dá saúde mental.
Em casa de ferreiro, espeto de pau. De que forma os profissionais de saúde mental lidam com a própria saúde mental?
O stresse tem sido intenso e há estudos recentes sobre burnout que o mostram. Lidamos com pessoas que sofrem, procuramos dar-lhes uma palavra de esperança e seguimos as melhores recomendações e evidências científicas, mas não podemos garantir o sucesso do tratamento, por mais elevadas que sejam as probabilidades de sucesso. Esta incerteza tem efeitos psicológicos e também somos humanos: podemos ter sintomas depressivos e ansiosos e precisar de ajuda.
Como tem sido consigo?
Eu tenho vários casos de doença mental na minha família de origem, o que me fez interessar pela psiquiatria e as neurociências. Além disso, sou casado com uma psiquiatra – foi ela, a Catarina Costa, que fez os cartoons do meu livro – e nunca senti o meu estado mental alterado em situações de vida transitórias que tive. Felizmente, até agora nunca foi necessário procurar ajuda profissional, amanhã não sei. Adoro o meu trabalho e estou confiante de que a minha mulher me dirá se eu tiver sintomas que requeiram atenção clínica!