“Pedir desculpa por um acontecimento do passado é um ato estritamente político. Embora alguns historiadores admitam momentos para um julgamento moral. Como no caso do Holocausto” 

“Pedir desculpa por um acontecimento do passado é um ato estritamente político. Embora alguns historiadores admitam momentos para um julgamento moral. Como no caso do Holocausto” 

Do podcast “Falando de História”, disponível em várias plataformas, de peridicidade semanal, ao livro Atualizar A História (Edições Desassossego), agora lançado, os jovens historiadores Paulo M. Dias e Roger Lee de Jesus fazem da divulgação histórica, destinada ao grande público, um hóbi pro bono, procurando preencher o que identificaram como uma lacuna, na divulgação histórica. O livro, agora lançado, aborda 28 temas da História de Portugal, tratados por outros tantos investigadores, de diversas gerações. Paulo M. Dias, 29 anos, é licenciado em História, mestre em História Moderna e dos Descobrimentos, e doutorando em História Medieval na Universidade Nova de Lisboa e investigador. Roger Lee de Jesus, 33 anos, também investigador, é licenciado em História, mestre em História Moderna e doutorado na mesma área na Universidade de Coimbra.

Têm algum patrocínio ou apoio para o vosso podcast, “Falando de História”?
Roger Lee de Jesus: Fazemo-lo sem qualquer apoio. Percebemos que havia uma falta de oferta, na divulgação histórica. Pelo menos, com a qualidade que achávamos que tal divulgação merecia. Havia espaço para um programa deste tipo e, com o modelo dos podcast a crescer, achámos que era uma boa forma de o fazer.

Por vezes, dá a ideia de que pretendem desconstruir ideias feitas e acabar com alguns mitos. Estou certo?
RLJ: Infelizmente, grande parte da divulgação histórica não é feita por gente da área. E são autores de fora da área que fazem esse trabalho, nem sempre com o rigor exigível… E isso reflete-se na qualidade da informação. Infelizmente a Academia fechou-se muito sobre si própria.

Aquela “historiazinha” menos rigorosa, muito light, chega facilmente às pessoas. Também é possível atingir o grande público respeitando o rigor científico da investigação?
Paulo M. Dias: Sim, e essa foi a nossa ideia, desde o início. Porque é que tão pouca gente, oriunda do mundo académico, se preocupa em divulgar?

A linguagem da academia é por vezes, muito hermética…
PMD: Exato. Ainda não há a noção de que a divulgação para o grande público faz parte do nosso trabalho académico. Fazer a História uns para os outros não vale a pena…

A historiografia está hoje inquinada por preconceitos ideológicos? Mais ou menos do que no passado?
PMD: Não achamos que, em geral, esteja inquinada ideologicamente. Entre os historiadores, ninguém é 100% imparcial, todos temos as nossas tendências, mas não há grandes correntes dominantes, ao contrário do que acontecia no Estado Novo, com uma historiografia oficial, relacionada com uma manipulação para servir propósitos políticos. Hoje, no mundo académico, há uma liberdade que não houve durante muito tempo.

O livro que coordenaram, e onde também escrevem, intitula-se “Atualizar a História”: a História precisa de ser atualizada?
RLJ: Sim. Começamos o livro a explicar isso mesmo. Nós entendemos a História como o conhecimento histórico. Uma coisa é o que aconteceu no passado, através da reconstituição das fontes, mas sempre sem certeza absoluta de como foi o passado. Atualizar a História não é dizer que a implantação da República não foi no dia 5 de outubro, mas no dia 6… Não. Sabemos que foi no dia 5. Atualizar a História é atualizar o conhecimento sobre aquilo que sabemos dos factos.

Ou seja: em 1640, os conjurados podiam não estar a ser movidos apenas por patriotismo, mas também por um descontentamento relacionado com a carga fiscal… Ou, no caso do 25 de Abril, talvez tudo tenha começado por um interesse corporativo contra uma lei relacionada com promoções no Exército… É isso?
RLJ: Sim, a atualização vai nesse sentido genérico, sendo que os últimos anos têm trazido novas visões sobre os acontecimentos históricos. Atualizar a História, a partir dos temas desenvolvidos em 29 capítulos, é procurar ter uma visão diferente, inovadora e mais atualizada. Cada capítulo e cada autor fornece um contributo para uma nova visão sobre o tema de que está a tratar. Já agora, destes autores que convidámos, apenas um terço tem uma situação estável, os outros investigadores estão precarizados…

Como é que se atualiza o passado?
RLJ: O distanciamento histórico não atualiza a História. O que a atualiza é o trabalho contínuo de investigação. A descoberta de novas fontes, novas metodologias, novas perspectivas. Perspectivas do nosso próprio tempo. E esta ideia de atualizar a História conjunga-se com a ideia de reescrever a História…

Isso é muito polémico… a ideia de reescrever a História…
RLJ: Mas é o que fazemos. Qualquer historiador reescreve, sempre, a História.
PMD: É assim que funciona…

RLJ: É assim que funciona! Qualquer bom livro de História reescreve a História! Não para alterar os factos mas para atualizar o que nós sabemos sobre eles.

Os povos precisam de referências, de construir uma identidade com base nos feitos do passado com que a comunidade se identifica. Mas a História, hoje, tende a desconstruir referências seculares
PMD: Efetivamente, há sempre uma reação a alguns dos nossos podcasts: “Eh, pá, afinal isto não é como eu pensava”… Algumas pessoas reagem bem, por aprenderem alguma coisa, outras reagem mal, por se sentirem, até, ofendidas… Tendo em conta o estágio de desenvolvimento que atingimos, já não existe essa necessidade tão vincada de afirmar a nação com base nalguns mitos ou ideias feitas. Se tivermos uma História rigorosa e séria, ela não nos retira a noção de Pátria e de comunidade. Nem vai fazer com que deixemos de ser quem somos. Pelo contrário. Aliás, a nossa História, mesmo despida de construções e mitos, é extremamente interessante. Os mitos acrescentam camadas desnecessárias de verniz…
RLJ: O ato de olharmos com novas perspetivas pode invocar questões negativas, como a escravatura, mas isso faz parte.

Tomemos esse exemplo: os outros europeus, os árabes, os povos africanos também tiveram escravatura, no mesmo tempo. E isso parece estar a ser branqueado. Porque havíamos de ser diferentes?
RLJ: A questão não é a do branqueamento; tem muito mais a ver com o impacto. Ora, o impacto extravasa a investigação científica da História, e entra nas questões da memória e das identidades nacionais. O impacto que o tráfico transatlântico teve na construção das sociedades do Novo Mundo e o impacto de longa duração na identidade dos povos africanos. Levado isto às últimas consequências, desaguamos na Conferência de Berlim e na divisão das colónias africanas e futuros países a régua e esquadro. O impacto da escravatura praticada pelos europeus faz, aqui, a diferença.
PMD: E depois acaba por ser uma questão de foco. Há uma tendência de os historiadores europeus estudarem os fenómenos em que os europeus estão envolvidos. E é no Ocidente que a investigação está mais desenvolvida…

Aceitam o argumento de que não podemos ver o passado com os olhos do presente?
PMD: Até certo ponto, é inevitável vê-lo com os nossos olhos.
RLJ: É uma regra de ouro do historiador. Não cair no anacronismo. O problema é a diferença entre a teoria e a prática. Por muito que não o queiramos fazer, toda a História é “História contemporânea”, no sentido em que as novas perspectivas refletem o que nós, em 2022, queremos ver sobre a História. Se hoje colocamos determinadas questões é porque hoje as achamos relevantes. Mas foi sempre assim.

Referia-me mais ao julgamento moral que se faz, hoje, sobre o passado, o que leva políticos ou religiosos a pedir desculpa por acontecimentos com os quais nada têm eles, nem nós, a ver…
RLJ: Mas isso são os atos políticos em si. Outra coisa é o trabalho do historiador. Nesse sentido, pedir-se desculpa é um ato político, com uma dimensão estritamente política. Embora não seja um assunto linear, porque há historiadores que defendem que, nalguns momentos, deve haver um julgamento moral do passado. Questões como o Holocausto precisam de um julgamento.
PMD: E muitas vezes as fontes com que trabalhamos estão elas próprias enviesadas e fazem os seus próprios julgamentos…

Sim, o que nos leva a questionar se, por exemplo, Fernão Lopes foi, de facto, um cronista tão isento como a posteridade afirma…
PMD: Exatamente… Fernão Lopes tem uma versão política. Ou mesmo, voltando à questão da escravatura, que era normalizada e tal… Mas temos de reconhecer que ela teve sempre contestação… Não agora, mas no seu próprio tempo… Não era exatamente assim tão normal.

A palavra “Descobrimentos” não é para banir. Temos de saber do que estamos a falar. O “descobrimento” tem um duplo sentido porque é recíproco

A palavra “Descobrimentos” é para banir ou não?
RLJ: Eu diria que não. A palavra tem vários significados. Há a descoberta geográfica, mas depois toda a carga ideológica por detrás. O próprio termo é eurocêntrico e tem por tendência anular (cada vez menos, felizmente) o sujeito que foi “descoberto”. Sobretudo, quando se fala do Novo Mundo ou, vá lá, de sociedades africanas. A Ásia é diferente. Alás, é conhecida aquela anedota em que um nobre, amigo de Vasco da Gama, lhe pergunta, quando este regressa da Índia: “O que é que eles lá desejam [para trocas comerciais]?” E quando Vasco da Gama responde “prata e ouro”, o seu interlocutor comenta: “Ah, então eles é que nos descobriram a nós…”. Mas não é uma palavra para banir.

Mas se certos povos não sabiam, sequer, geograficamente, que lugar ocupavam no planeta, não se terão descoberto, também, a si próprios, nessa época? “Descobrimentos” não será uma expressão que funciona em duplo sentido?
RLJ: Sim, funciona em duplo sentido. Houve uma descoberta mútua, tendo em conta que essas sociedades também entraram em contacto com algo que desconheciam.

E a polémica sobre a denominação de um “Museu das Descobertas”? Faz sentido?
RLJ: Muito mais importante do que o nome, interessa saber qual o conteúdo…

Para um historiador moderno, a adjetivação está interdita? Palavras como “heroísmo”, “glória”, “bravura”, estão proibidas?
PMD: Adjetivação não é algo que usemos muito. Quando existe, é em termos de citação, para contextualizar. Mostrar como uma personagem, por exemplo, era encarada na sua época. Não tem um juízo de valor nosso.

Como encaram o chamado “cancelamento histórico” ligado à destruição de estátuas?
RLJ: As estátuas fazem parte de uma política de memória. Nenhuma estátua é isenta. Uma estátua diz mais sobre o contexto da época em que foi erigida do que sobre o homenageado… O Padrão dos Descobrimentos diz mais sobre os anos 40 dos século XX português do que sobre qualquer das figuras ali representadas…

Mas é aceitável a a destruição, tendo em conta que, por vezes, são um atentado ao Património?
RLJ: O problema é que a maior parte das estátuas ganhavam com uma certa contextualização. Uma placa, a explicar o seu significado, o seu contexto, etc.. O próprio Padrão dos Descobrimentos é utilizado para exposições que contestam a sua própria leitura original, num trabalho pedagógico de mérito.
PMD: Outras, no limite, poderiam até ser removidas, mas depositadas em museus ou até em jardins temáticos.

A partir de que momento é que Portugal tem uma identidade nacional?
PMD: A ideia de nação, tal como a conhecemos, é do século XIX. Mas, muito anteriormente, já existe uma identidade autónoma. Logo na Idade Média, há uma afirmação bastante clara, na Crise de 1383-85. A consciência nacional é um fenómeno que se vai afirmando paulatinamente, num longo processo histórico.

Os portugueses têm, mesmo, um papel inicial na globalização?
RLJ: Há um certo abuso da palavra “globalização” para definir a expansão portuguesa. Mas, de facto, há um contributo decisivo para as trocas, a nível mundial. O caso alimentar e das plantas tem um impacto brutal e vários historiadores se têm debruçado, com teses interessantíssimas, sobre o tema. Agora, comparar as caravelas às naves espaciais do nosso tempo é que não tem pés nem cabeça…

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