“Uma das razões para a China ser menos perigosa do que a União Soviética, pelo menos teoricamente, deve-se ao facto de não querer exportar a sua ideologia”

“Uma das razões para a China ser menos perigosa do que a União Soviética, pelo menos teoricamente, deve-se ao facto de não querer exportar a sua ideologia”

Durante mais de um quarto de século, ao serviço da BBC, da Sky News e de jornais como o Daily Telegraph e o Times, esteve nos cinco cantos do mundo. Em 2013, depois de perder um amigo – e colega de trabalho – no Egito, decidiu mudar de vida e de profissão. Em vez de reportagens, passou a escrever livros e tornou-se uma autoridade na análise geopolítica. A sua primeira obra, Os Prisioneiros da Geografia, publicada há seis anos, vendeu mais de dois milhões de exemplares e, esta semana, no mercado português, é lançada a sequela O Poder da Geografia – Dez Mapas que Revelam o Futuro do Mundo (Edições Dessassossego). Conversa com um livre-pensador que alerta para uma “era cada vez mais caótica”, mas que se diz otimista sobre quase tudo – das mudanças climáticas à militarização do Espaço.

Este novo livro tem vários detalhes em que recorda os seus tempos de repórter. Tem saudades do jornalismo?
Às vezes tenho, mas não são assim tantas. Ainda bem que parei, já fiz 60 anos [risos]. A minha experiência jornalística ajuda-me a escrever de forma aceitável.

Seis anos depois do seu primeiro best-seller, o mundo está ainda mais disfuncional. Acredita que a geografia teve algum papel nesse sentido?
Sem dúvida, está bem pior e assim deve continuar por mais algum tempo. Os nacionalismos, os conflitos, as mudanças climáticas, a pobreza, creio que são tendências que ainda estão numa trajetória ascendente. Já estamos conscientes das vantagens e desvantagens da globalização, a própria Covid-19 acelerou essa perceção. A pandemia demonstrou a necessidade de diversificarmos as nossas cadeias de abastecimento. Continuo a acreditar que a geografia é um fator importante em quase tudo o que acontece.

Este novo livro é constituído por dez capítulos, cada um representando um país ou uma região. A sua ideia inicial era retratar os principais pontos quentes do planeta, caso do mar do Sul da China?
Em termos geopolíticos, todos sabemos que o Indo-Pacífico se tornou o centro do mundo e que o mar do Sul da China é uma zona de grandes tensões entre os Estados Unidos da América e a República Popular da China. No entanto, não temos de partir do princípio de que haverá um embate militar. A existir um tal conflito iria arrastar muitos outros intervenientes, não só chineses e norte-americanos: Japão, Austrália, Reino Unido, Canadá, Holanda… Estes países participaram, no início deste mês, em manobras navais no mar do Japão. E, claro, a questão de Taiwan.

Nesta obra parece apostar numa contextualização menos determinista, em que a História, a política, a religião e o ambiente desempenham um papel tão importante como a geografia…
[Silêncio.]. Como assim?

Em que as suas análises não parecem estar tão condicionadas por uma grelha estritamente geopolítica. Ao dizer que foi menos determinista não estou a querer criticá-lo…
Esse argumento às vezes funciona como um insulto, mas percebo que não seja essa a sua intenção. Em Prisioneiros da Geografia creio que o escrevi umas seis vezes: a geografia não é uma fatalidade, pode não determinar tudo o que nos acontece, mas é um fator decisivo – a par da História, da cultura, das ideias, das elites, dos povos. Não pode ser desvalorizada, nem esquecida.

Consegue dar um exemplo dessa sua tentativa de abordagem, em que parte da geografia para depois recorrer também ao contributo de outras áreas do saber?
Foi o que tentei fazer com o capítulo sobre Espanha.

Permita-me que volte à questão de Taiwan. Acredita na tese de que a ilha será palco de um conflito militar nos próximos anos?
Vivemos tempos perigosos. Vários analistas – alguns deles militares – afirmam que a China terá capacidade para invadir Taiwan até 2026. Mas isso não significa que o faça. Podemos até argumentar que, ao invocar-se de forma insistente esse cenário, estamos a fazer com que eles [os chineses] o façam mais depressa do que gostariam. Basta vermos o que aconteceu com o AUKUS [o novo acordo político-militar celebrado, no final de setembro, pelos EUA, Austrália e Reino Unido]. A situação tornou-se extremamente complexa e volátil. Volto a referir os exercícios navais da semana passada entre os EUA e respetivos aliados. Tratou-se de algo muito importante. Pela primeira vez, desde a Segunda Guerra Mundial, um porta-aviões japonês assistiu à aterragem e descolagem de um caça – neste caso, da força-aérea norte-americana. A China é a primeira a sentir estas alianças cada vez mais poderosas e alargadas, daí ter feito alusão à possibilidade de se sentir pressionada para invadir mais depressa. Há esse perigo. Estamos a convidar a China a invadir uma democracia como Taiwan? De um lado, temos esta estratégia de contenção; do outro, a China analisa como pode levar a cabo um assalto anfíbio terrivelmente complicado. Taiwan é como um ouriço que tem de se defender com armas ocidentais, enquanto Pequim e o Partido Comunista ponderam uma decisão crítica que lhes pode ser muito desfavorável – se os EUA defenderam a ilha e os chineses perderem. Imaginemos o que seria milhões de chineses a dizerem: “O partido conduziu-nos para uma derrota.”

Seria o fim da carreira política do Presidente Xi Jinping? 
Sim, claro. É uma aposta de altíssimo risco. E dela pode depender o futuro do regime e, quem sabe, da ordem global.

Ainda a propósito desta nova guerra fria oriental, quem pode beneficiar com a crise do AUKUS? Pode ser a França e a União Europeia?
Aparentemente, a Austrália é quem mais beneficia com a estratégia de Joe Biden, enquanto a França parece ter sofrido um rude golpe para a sua indústria de defesa e para o seu orgulho nacional. O mais inacreditável é que os franceses, como resposta ao AUKUS, acabam de celebrar um excelente acordo com a Grécia [venda de três fragatas de guerra, no valor de cinco mil milhões de euros]. O AUKUS pode acelerar a autonomia estratégica [face aos EUA] que Emmanuel Macron e alguns outros países europeus defendem. Pode ser um grande passo nesse sentido.

Taiwan é como um ouriço que tem de se defender com armas ocidentais, enquanto Pequim e o Partido Comunista ponderam tomar uma decisão crítica que lhes pode ser muito desfavorável

De certeza que Emmanuel Macron, Joe Biden e Xi Jinping reconhecem a importância da geografia, mas qual deles sabe ler melhor um mapa-múndi?
[Risos.] Qualquer um deles o sabe fazer. Talvez Joe Biden e a sua equipa tenham vantagem na interpretação dos sinais da geografia e da História. Eles têm a experiência de conhecer muito bem os diferentes oceanos e de projetar forças simultâneamente em vários pontos do globo. Sabem comportar-se como os sapos que, nos charcos, pulam de nenúfar em nenúfar – seja nas baías de Tóquio e de Nápoles, seja nas bases de Incirlink [Turquia] e de Guantánamo [Cuba]. 

Uma vez que no seu livro fala também dos líderes providenciais e autocráticos, permita-nos outro desafio. Entre Xi Jinping, Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan, qual deles pode ter uma agenda neo-imperialista ditada pela geografia?
O Presidente turco aproveita-se da memória coletiva do Império Otomano, cujo colapso ocorreu apenas há um século. É nesse contexto que encaixa a teoria da Pátria Azul [doutrina desenvolvida pelos almirantes turcos para expandir a influência do país no Mediterrâneo] e o sonho de recuperar alguns territórios. Quanto a Putin, creio que se trata de puro nacionalismo, não me parece que tenha qualquer tipo de ambição que possamos classificar como neo-soviética. No meu entender, ele é motivado pelas históricas ameaças à Rússia. Parece que, instintivamente, acaba por recorrer à força, porque a sedução não faz parte do seu léxico e da sua cultura política. Talvez isso justifique a agressividade de Putin, ele olha para o mapa e pensa na História. Com Xi Jinping, o caso é diferente. Quando falamos da China, referimo-nos sobretudo ao grupo étnico que representa 85% da população – os Han. As outras minorias fazem parte do império Han, que conquistou e colonizou a Manchúria, a Mongólia, o Tibete, Xinjiang. Ou seja, existe um neoimperialismo que pouco tem que ver com o sentido clássico. A China não quer ocupar territórios pelo mundo e persuadir as pessoas a adotarem o seu modo de vida. O que pretende fazer, tanto quanto possível, é dominar economicamente. Mais do que neo-imperialismo, é capitalismo à moda chinesa.

Seja como for, a China quer ser a potência dominante, o centro do mundo…
Uma das razões para a China ser menos perigosa do que a União Soviética, pelo menos teoricamente, deve-se ao facto de não querer exportar a sua ideologia. Na Guerra Fria, os soviéticos exportavam as suas ideias e queriam que toda a gente aceitasse as ordens de Moscovo. Pequim só quer exportar os seus produtos.

Agora o seu país. Consegue achar piada ao “Reino Unido Global” (“Global Britain”) e à “Singapura do Tamisa” de que fala o primeiro-ministro, Boris Johnson?
Quando se é um político populista, dá sempre jeito ter expressões de algibeira. A maioria dos britânicos nem questiona o significado desses conceitos nebulosos… Há possibilidade de o Reino Unido se juntar à Parceria Transpacífico [acordo de livre comércio promovido inicialmente pela administração Obama para contrariar a ascensão económica da China e agora conhecido como TPP11, ao qual Pequim também pediu para aderir), de nos tornarmos uma nação do Pacífico. Acredito que podemos continuar a ser uma das dez maiores economias do mundo. Como vimos com o AUKUS, a nova arquitetura do século XXI está em construção e o Reino Unido tem de definir o seu papel.

Este Reino Unido Global pode rever a sua relação com Portugal, o seu mais antigo aliado?
[Risos.] É verdade, temos a mais antiga aliança político-militar do mundo, formalizada há quase seis séculos e meio. Não sei se os portugueses têm consciência disso, mas os britânicos não fazem a mínima ideia – ou então acham que os nossos aliados mais antigos são os norte-americanos. Não posso falar pelos outros, mas julgo que boa parte dos meus compatriotas adora Portugal, não pela aliança Luso-Britânica mas por aquilo que conhece – as comunidades portuguesas que residem aqui, o Algarve, a comida, o vinho…

E quanto às prioridades de Lisboa e de Londres? Com o Brexit, podem vir a colidir?
Não sei o que responder. Talvez possamos interrogar-nos sobre o futuro da NATO e a autonomia estratégica da União Europeia. Imaginemos algo improvável. Os EUA reduzem drasticamente a sua presença militar no continente, a Rússia decide violar as fronteiras dos Bálticos, o artigo V da Aliança Atlântica é ativado e uma força europeia de defesa é chamada a intervir. O Governo Portugal tem de tomar uma decisão rápida. Será que os portugueses estão dispostos a lutar e a defender Vilnius [capital da Lituânia]?

O último capítulo do seu livro é dedicado ao Espaço e recorre ao humor para descrever alguns cenários mais ou menos fantasiosos. Acredita mesmo que poderemos alojar-nos, já em 2031, naquilo a que chama a “International Musk Spacetel [um hotel espacial detido por Elon Musk, o excêntrico proprietário da SpaceX e da Tesla]”?
Ora é mais do que plausível. Na semana passada, vimos o capitão Kirk [personagem de ficção científica da saga Star Trek, protagonizada pelo ator canadiano William Shatner] ir para o Espaço! Se em 2021 é possível fazer isso com uma estrela de cinema de 90 anos, claro que, dentro de uma década, Elon Musk pode ter um hotel espacial.

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