Na sua secretária, o busto de Camilo Castelo Branco: ambos nasceram no mesmo dia, na mesma cidade e tiveram um glaucoma. A diferença é que Luís Fernandes, ou João Habitualmente, como é conhecido no universo literário, não pôs termo à vida e reinventou-se após ficar cego, em 2000. Professor na Universidade do Porto há mais de três décadas e membro da Comissão de Ética da Ordem dos Psicólogos desde 2015, concilia o gosto pela Ciência e o ensino com os prazeres da literatura. “Se fizesse outra coisa na vida, seria jornalismo”, adianta aquele que também foi cronista no Comércio do Porto e no Público. Após um percurso académico centrado no estudo da toxicodependência em contexto urbano, o ex-maratonista amador encontrou na prática da massagem um passatempo que lhe permitiu fazer caminho numa direção nova, mais holística. Aos 59 anos, o autor de As Lentas Lições da Vida – Ensaios Rápidos sobre as Relações entre o Corpo e a Mente (Contraponto, 240 págs., €16,60) propõe que se restaure o lugar do corpo nas Ciências Psicológicas e desafia-nos a ter uma melhor relação com a nossa corporalidade
O tema que nos traz em As Lentas Lições da Vida difere do do seu trabalho académico, ligado à comunidade. Continua a fazê-lo?
Este livro é fora da minha linha de montagem, ligada ao comportamento desviante. Até aos anos 1990, fui sobretudo um etnógrafo. Quando ceguei, percebi que não podia continuar a fazer trabalho de campo em bairros sociais (viveu num para fazer a tese de doutoramento, publicada em livro, O Sítio das Drogas) e passei a trabalhar com os olhos dos outros. Um dos meus orientandos, doutorado na área da Criminologia, em Lovaina, na Bélgica, propôs um centro de Ciências do Comportamento Desviante e assim nasceu a Psicologia da Justiça e o trabalho na inserção social
O que distingue o invisual do cego?
O invisual nunca viu, o seu cérebro não tem um arquivo de imagens. Eu vi durante 30 anos, tenho memórias visuais, sonho com imagens a cores. Vivo no mundo dos normovisuais e, quando conheço uma pessoa nova, se ela me fizer lembrar alguém, atribuo-lhe uma cara
Foi quando apareceu o João Habitualmente, o seu pseudónimo literário?
Esse pseudónimo anda comigo desde os 20 anos! A minha mãe era professora primária e deu-me uma educação muito convencional. Eu temia que ela visse a minha escrita, cheia de palavrões. É uma personagem, foi ficando. Tratam-me assim nos ambientes literários do Porto e começa agora a ter visibilidade, é o meu lado jovem
E o Lopes Massagista, que vê o mundo através das mãos? Tem que ver com o homem das Ciências Psicológicas que não gosta de ver o corpo reduzido ao sistema nervoso?
Começou por ser uma brincadeira para amigos, porque eu sou Lopes Fernandes. Este reducionismo é uma consequência de um cisma das origens da Psicologia, nas últimas décadas do século XIX. Para a Psicologia se impor como ciência, precisava de um correlato orgânico para assentar os processos psicológicos, que são imateriais. Nos anos 1980, acreditou–se que a genética explicaria condutas e patologias e, nos anos 1990, tentou-se materializar processos cognitivos e emocionais com recurso a ressonâncias magnéticas. Agora, a investigação neuropsicológica satisfaz-se a produzir evidência de processos que a Psicanálise descreveu: Freud e [Wilhelm] Reich já tinham essa evidência clínica. A redução da psicologia ao sistema nervoso prende-se com uma ilusão de estatuto científico
O desafio do século XXI é admitir que “a cabeça também é corpo”, sem estar só agarrada a ele?
Temos uma sociedade racionalista e vivemos “na cabeça”. Valoriza-se a parte consciente, egoica, centrada na inteligência, na cognição e nas adaptações a coisas novas, aos ecrãs. Os processos emocionais e afetivos vão ficando lá para baixo, reprimidos, as pessoas dizem não ter tempo para estar com amigos, namorar, repousar e sonhar. O problema das dores cervicais e torácicas têm que ver com a tensão entre o pescoço e o resto do corpo. Se andamos sobrecarregados ou com medo retemos a respiração, como sucede quando apanhamos um susto. Isto aprende-se na infância e traduz-se em tensões crónicas no peito e nas costas. Alexander Lowen, fundador da Bioenergética, falava na “síndrome do enforcado”: há pessoas que andam sem os pés bem assentes no chão, como se tivessem um garrote no pescoço. Vivem apenas na cabeça, no racional, que compromete os fluxos energéticos, e ficam com as mãos e os pés frios
Porém, as investigações sobre o intestino referem-se a ele como o segundo cérebro.
É muito curioso que essas investigações continuem a não interessar à Psicologia mainstream. O cérebro está ligado ao intestino através do nervo vago, o maior do corpo. Esta superautoestrada de informação dá suporte à Psicologia Biodinâmica, um modelo de psicoterapias corporais iniciado nos anos 1970 e 1980 pela investigadora norueguesa Gerda Boysen. Com o estetoscópio, ela captou ruídos intestinais à medida que fazia massagem. Na altura, acharam um disparate, mas ela tinha dados clínicos, validados depois pelas ciências das materialidades. O cérebro troca informações com o sistema nervoso neurovegetativo e a digestão das emoções faz-se no intestino, quase sem passar pelo circuito consciente do cérebro: são as dores de barriga ou o cólon irritado sem saber porquê
Estamos no plano da psicossomática, portanto.
A psicossomática continua a associar processos psicológicos à doença – por exemplo, uma gastrite – numa lógica causal, quando se trata de co-ocorrências: uma parte da digestão da emoção é feita no cérebro e a outra no plano orgânico: reprimem-se conteúdos angustiantes tensionando músculos de forma crónica, a energia desloca-se para o corpo e deixa a parte mental em paz
Foi preciso o neurocientista António Damásio abordar o tema.
Ele e o neurologista Oliver Sacks, dois cientistas que conseguiram fazer chegar a mensagem
Como lida com o seu corpo e, já agora, de que modo surgiu o interesse pela massagem?
Eu fazia atletismo, corridas de fundo sem serem de competição, que tive de abandonar. O interesse pela massagem começou logo aí: de vez em quando, ia ao massagista porque andava mal, com dores de pernas e era muito magro. Sempre tive muito gosto pelo desporto e tenho dois filhos desportistas: um é futebolista e o outro faz remo. Cá em casa a questão do corpo foi sempre cultivada, como um aliado natural, também nas suas facetas afetivas e desejantes. Aí subscrevo a mensagem reichiana: “Não há revolução sem a revolução sexual.
Num filme inspirado na obra de Sacks [À Primeira Vista], um massagista que perde a visão leva a cliente a experimentar as suas emoções pelo toque.
Há trabalhos de psicanalistas que mostram como a pele é o primeiro órgão da interação do recém-nascido e como podem ser devastadoras as consequências da privação do toque. A prática continuada da massagem permite restaurar afetos arquivados da primeira infância
Fica por terra a ideia de que “no princípio era o Verbo”.
Nunca tinha pensado nisso! Nesse sentido, a Bíblia começa mal. Aliás, no meu livro, digo que vivemos uma cultura verbocêntrica. No Ocidente, temos uma tradição longa de afastamento do corpo devido a questões morais, por vê-lo como lugar de vícios e pecado. O corpo libertou-se, mas de forma superficial e é sujeito a novas tiranias e fontes de estigma: não se pode ser gordo nem descuidar a imagem, vigoram os regimes da passerelle, do pódio e da marquesa, na indústria da estética, do body building e da medicina.
No Ocidente, temos uma tradição longa de afastamento do corpo devido a questões morais. O corpo libertou-se, mas de forma superficial e é sujeito a novas tiranias: não se pode ser gordo, vigoram os regimes da passerelle, do pódio e da marquesa, na indústria da estética, do body building e da medicina
Há quem não goste de ser tocado nem de receber massagens. É uma defesa?
O corpo conta uma história. Talvez porque, numa aprendizagem precoce, uterina, de relação com o outro, houve experiências más. Ou porque se cresceu numa família evitante, em que as pessoas não se tocavam e o toque não era natural. Quando decidi estudar massagem, em 2011, comecei a exercê-la como hóbi, numa ótica de bem-estar e de recuperação física. Descobri que era possível restaurar essa história através da ligação que se estabelecia com aspetos de natureza psicológica. As pessoas ganhavam confiança para falar comigo, embora não se tratando de uma psicoterapia, e algumas largaram os antidepressivos
A Ciência não vê com bons olhos a ideia do corpo dotado de uma energia própria, ou ânimo?
É mesmo isso que se passa, dado vivermos numa ortodoxia empírica feroz. O livro pretende credibilizar os conceitos de energia e da ligação mente-corpo, que ainda são desvirtuados e alvo de preconceito. Se não tivéssemos energia, não tínhamos a temperatura que temos, e logo agora, que a medem em qualquer lado, por causa da pandemia! Ironicamente, aceita-se o trabalho do físico Einstein, sobre as relações entre massa e energia de que resultou a célebre fórmula [E=mc²], mas, se se tratar de psicoterapeutas corporais, são apontados como espiritualistas que não dispõem de evidências científicas
Voltando ao filme inspirado num caso clínico de Oliver Sacks: os avanços da medicina devolvem a visão ao massagista, mas ele não se adapta. E se fosse consigo?
Francamente, gostava muito de voltar a ver. Desde logo, ia apanhar um susto quando me olhasse ao espelho, porque já não sou a imagem que tenho de mim, guardo a que tinha há 20 anos, e se calhar também ia apanhar um susto com a minha mulher! Mas ia gostar de voltar a ter a autonomia do movimento, de correr. Embora faça caminhada e natação – agora não, porque as piscinas estão fechadas –, voltaria a ter mais atividade física
O seu livro é lançado numa altura em que regressam as restrições para controlar a pandemia. Qual o impacto do “voltar para casa” na relação com o corpo?
A experiência do confinamento foi muito dolorosa, e não só para quem o espaço em casa era insuficiente, potenciando conflitos, mas sobretudo para aqueles que viviam soterrados em estímulos, do trabalho aos muitos eventos à escolha, lá fora. Quando a hiperestimulação cessou, tiveram de olhar por eles abaixo e ficaram nus diante de si próprios, sem saberem como lidar: quem sou eu, o que ando aqui a fazer e como consigo entreter-me
Poderia ser uma oportunidade para enraizar-se no seu corpo e sentir os pés no chão. Ou nem por isso?
Se nunca o fizeram antes, é difícil fazê-lo sozinhos. Não tendo sido educados para uma corporalidade, é pouco provável, por exemplo, desenvolverem um treino físico regular, simplesmente por tal não fazer parte do seu repertório. Este livro representa a possibilidade de um investigador da vida académica chegar a um público mais vasto. Não basta publicar em circuitos especializados que fluem pouco para fora da universidade. No meu caso, quis fazê-lo em regime de ensaio livre, combinando a linguagem mais estrita da Ciência com outras, mais abertas, como a da literatura. O último ensaio do livro faz esse exercício, que enriquece a Ciência e o pensamento dos cientistas.