Nasceu em Macau, em 1957, e as primeiras memórias que tem são de Goa, onde o pai, militar como o avô, era ajudante de campo de Vassalo e Silva (último governador do território). Viveu, depois, em Moçambique e em Angola (até 1975). Conhecemo-lo, hoje, como um convicto europeísta, conselheiro do Presidente da República. Sem essa experiência de vida, Paulo Sande não teria escrito Fui Soldado e Morri (Gradiva, 416 págs., €17,50), o seu romance de estreia, à volta da vida de Leto Silva, militar português desde o início da Guerra Colonial, espectador da Revolução dos Cravos, mercenário passageiro, espécie de anti-herói que vamos acompanhando, no seu labirinto, até aos nossos dias.
O romance Fui Soldado e Morri era uma ideia antiga que foi alimentando ao longo da vida?
Este livro já tem alguns anos. A verdade é que eu já escrevi vários romances, mas não publiquei nenhum. O primeiro, escrevi-o aos 20 e tal anos, foi lido pela Lídia Jorge – ela não se lembrará… –, que me aconselhou a escrever mais. Foi o que eu fiz, fui escrevendo. Tentei uma vez publicar, mas apercebi-me rapidamente de que não tinha a qualidade que eu próprio exigia. Acho que temos de ser rigorosos connosco em tudo o que fazemos na vida. E enganar-me a mim próprio seria o caminho errado. Este livro resulta de várias histórias, algumas estão noutros romances que escrevi antes e aparecem aqui mudadas.
Gosta desse processo de escrita?
Gosto muito, dá-me imenso gozo. E acho que escrever bem é mesmo crucial, é quase uma obsessão para mim. É como nas artes: admito que alguém seja um grande pintor abstrato, mas tem de saber desenhar bem um cão, de modo que eu olhe para lá e veja um cão… Também admito que alguém escreva de forma muito complexa e supostamente profunda, com pensamentos transcendentais, mas se eu achar que não escreve bem, nunca me convencerá. Saber contar histórias é, para mim, fundamental. E, se vou publicar, é importante pensar em dar prazer aos leitores. Não pode contar só o meu prazer em escrever. Quis fazer um livro que fosse lido.
Pelo que se lê na capa (“Uma história portuguesa para além de ideologias e interesses, do politicamente correcto, dos disparates radicais”), parece haver uma intenção muito definida. Na base da publicação deste livro está a ideia de que a história recente de Portugal está mal contada, para nós próprios e as mais novas gerações?
Acho que Portugal precisa de voltar a ter heróis a sério. Devemos ter orgulho no que somos. E isto não é, de todo, um discurso nacionalista. Trata-se de ter orgulho no meu país. E eu tenho, imenso. Todos os povos são especiais, é verdade, mas nós também somos. Não podemos é achar que os outros são todos muito bons e especiais, mas nós não, ao ponto de termos vergonha. E isso é muito português… Temos de dar à nossa História o lustre que ela tem, mesmo que reconheçamos o que correu mal e o que não foi bem feito. Não podemos é martirizar-nos com isso. Nestas guerras culturais – ou o que quisermos chamar-lhes – que estamos a viver, há coisas que me transcendem e nem sequer consigo compreender…
Os tais “disparates radicais” de que se fala na capa?
Este livro retrata uma época, povoada com personagens de ficção que necessariamente se cruzam com outras reais. Um tempo que aconteceu e que era assim mesmo. Independentemente da guerra, as pessoas tinham as suas vidas… Eu não posso estar a diabolizar um tempo histórico. Essa é uma discussão que está aí, em força, e não faz sentido nenhum. No meu livro, acho que se percebe bem que não tenho grande simpatia pelo Estado Novo – aliás, o meu pai, quando veio de Goa, foi maltratado, era um dos “cobardes” que tinham abandonado o território… Por isso, quando digo “recuperar” o orgulho no que somos, não é nesse contexto. A verdade é que já houve esse orgulho e perdemo-lo. A nossa História recente está cheia de histórias, temos de contá-las.
E acha que, coletivamente, não estão bem contadas…
Estão pessimamente contadas. Tenho tido dois tipos de reações ao meu livro: as de pessoas, mais velhas, que viveram em África dizem-me que era exatamente assim, ou gostam de debater pormenores (já me disseram que, em 1961, quase não havia estradas alcatroadas em Angola…); e as de pessoas que não viveram nada disto e ficam muito supreendidas. Ideologicamente, pessoalmente, até politicamente, acho que temos de ser, cada vez mais, aquilo a que chamo “moderados radicais”. Assumo-me como um moderado radical, alguém que defende a moderação até ao fim; com o mesmo entusiasmo, vigor e pujança com que os radicais defendem as suas ideias. Só assim os moderados podem sobreviver… Cada vez mais me convenço de que essa é a única via correta.
Sente que temos ainda a questão colonial – e, por arrasto, a descolonização – mal resolvida?
Claro que sim. E temos de falar sobre isso, discutir esses assuntos, escrever sobre eles. Mas numa perspetiva de bom senso e de moderação. Um moderado, hoje, claro que não é a favor do colonialismo nem da escravatura. Mas também não é a favor da demonização de quem, na altura, tinha responsabilidades. Era assim o tempo em que as pessoas viviam… Temos é de aferir se a evolução, que decorreu até dessas circunstâncias, melhorou a vida humana. E Portugal foi um dos países que participaram no processo de evolução da nossa civilização, permitindo ultrapassar muitas das idiossincrasias da natureza humana; criando regras, normas de conduta, que se transformam numa moral comum. Não podemos é começar a destruir estátuas à toa e a diabolizar figuras como o Padre António Vieira, o Pedro Álvares Cabral ou o Cristóvão Colombo, porque, na altura, abriram caminho para certos momentos históricos… Os Descobrimentos são uma história muito interessante e levaram-nos àquilo que temos hoje – que é, certamente, muito melhor do que o que tínhamos há 500 anos, independentemente de tudo o que se fez mal pelo caminho. Temos de discutir isso, sim; assumi-lo. E ter orgulho em quem fez coisas extraordinárias. Neste livro, não escondo atrocidades feitas pelos portugueses, o mal que fizeram. Mas também não escondo o que fizeram de bom, e o mal de outros. A realidade é isso mesmo, e não é idealizável. Se há coisa que não é humana, é a perfeição. Resumindo: passámos do exagero do Estado Novo, na exaltação dos feitos dos portugueses, para o exagero de uma pós-cultura… radical. Há propostas de partidos nos dois extremos do espectro partidário que dão soluções sempre demasiado radicais para assuntos muito sérios. Esses temas não podem ser monopolizados por essas forças, não podem ser exclusivos dessas franjas. É preciso assumir todos os temas importantes e tratá-los, sem medo, como moderados radicais: os refugiados, a imigração, a globalização… E se é preciso falar da comunidade cigana, falamos.
Tem esta ligação forte a África, mas é conhecido, sobretudo, como um homem virado para a Europa. Sente que o projeto europeu, tal como o conhecemos, está em risco?
Sinto, sobretudo, que é um projeto pelo qual vale mesmo a pena lutar. E eu vou fazê-lo enquanto puder. Há uma coisa que já aprendemos com a pandemia: tudo pode acabar a qualquer momento. Nada está garantido nem é eterno. Aquilo a que estamos a assistir nos EUA, por exemplo, é uma transformação profunda de uma realidade constitucional que parecia bastante sólida, adquirida… De repente, pode haver ali uma grande mudança [esta entrevista realizou-se antes das eleições]. No meu romance, a dado momento, alguém diz [sobre a independência das ex-colónias]: “Isto é como ver acabar a Igreja Católica ou a União Soviética!” Nos anos 70, ou até mesmo nos anos 80, não me lembro de ninguém prognosticar o fim da União Soviética, ninguém! E era uma realidade que tinha 50 anos… A União Europeia (UE) tem 70. Para o bem e para o mal, a UE esteve, e está, sempre em risco. É tão complexo o que se tenta fazer com a realidade europeia, que essa complexidade provoca, também, fragilidade; e o que é complexo e frágil está sempre em risco de se desintegrar, de soçobrar. Esse risco existe, claro.
Estava a pensar, por exemplo, no Brexit.
O Brexit, paradoxalmente, veio dar força à UE. E eu até já fiz apostas de que haverá acordo… Os europeus conseguiram manter-se unidos em resposta ao Brexit, durante estes três ou quatro anos, e isso era algo de que, julgo eu, o Reino Unido não estava à espera. Ao mesmo tempo que assistimos a processos tendencialmente desagregadores, como o Brexit ou as chamadas democracias iliberais, vemos também o aprofundar de muitas políticas europeias completamente originais. A Europa fez agora uma emissão de dívida com uma procura 13 vezes superior à oferta, o que significa que a UE vai endividar-se em nome de todos. E isso, como sinal da solidez de um projeto, é extraordinário. Portanto, há esse risco, sim, mas também há sinais fortíssimos da vontade de 27 Estados continuarem a trabalhar juntos…
A resposta à pandemia também já teve os seus efeitos…
Sim, claro. Ainda não está aprovada, vamos ver. Mas era uma coisa impensável há uns dez anos. Vejo sinais preocupantes de desagregação – o Brexit, ameaças iliberais, populismos, partidos anti-europeus… –, mas a verdade é que vejo, também, políticas novas muito agregadoras. Há essa resposta solidária à pandemia, e outro exemplo é que vamos ter um procurador europeu em breve, com capacidade para iniciar ações penais nos Estados-membros, outra coisa impensável há pouco tempo…
Candidatou-se a um lugar no Parlamento Europeu nas últimas eleições, como independente pelo partido Aliança. Como viveu essa derrota?
Foram quatro meses em que trabalhei muito e uma das melhores experiências da minha vida. As pessoas não me conheciam, tive de fazer muita campanha e correu muito bem. Conheci muita gente, percorri o País todo… O resultado [2% a nível nacional] acabou por ser bastante bom para alguém que nunca tinha feito política; em Lisboa, chegámos aos 5 por cento. E fomos o partido mais votado dos que não conseguiram eleger. Vejo com pena a evolução do Aliança, que depois também não elegeu nas legislativas, o que tornou tudo ainda mais difícil. Acho que há espaço, à direita, para um partido liberal moderado – aliás, comecei a usar a tal expressão, “moderado radical”, na campanha. Devo dizer que me honrou ser convidado por um partido. Conhecia muito mal o Pedro Santana Lopes, não éramos amigos. Acho que teve coragem ao convidar-me, sabendo como eu sou um europeísta, num partido que tinha muitas pulsões radicais.
Como se percebe melhor agora…
Exatamente. Mesmo sendo independente, tentei sempre sustentar esse lado liberal moderado. Agora, o partido está muito fragilizado, não sei se conseguirá conquistar um espaço na política portuguesa. Acho que teria ganho em ter tido mais tempo antes das primeiras eleições em que participou; devia ter amadurecido mais. O que mais falhou foi a definição de uma identidade clara. O Aliança andou ali meio perdido entre ser mais de direita, mais de centro, mais liberal…
Teve pena de não ser eleito? Foi uma derrota difícil?
Tive pena, sim. A meio da tarde, havia sondagens que falavam em elegermos dois deputados. Sempre estive convicto de que conseguia. Não gosto nada de queixumes em público, mas recordo que a cobertura da comunicação social foi muito, muito má. Tivémos dois debates na televisão daqueles em que estão uns dez partidos e não dá para dizer nada com consistência. Na noite das eleições, confesso que fiquei abalado, mas rapidamente me recompus. Foi uma experiência de vida que adorei.
A escrita é para continuar?
Sem dúvida. Como já disse, toda a vida escrevi… Estou a preparar agora um segundo livro para publicar. É baseado numa figura real, portuguesa, e num acontecimento relativamente recente, mas ainda não posso adiantar mais nada. Está a dar-me muito prazer.