Depois de ter sido revelado que os testes em humanos de uma das vacinas anti-Covid-19 que estavam mais avançadas – a da Universidade de Oxford – tiveram de ser suspensos temporariamente para avaliar um eventual efeito adverso num voluntário, chegaram agora informações que relançam a esperança: o CEO da Pfizer anunciou, na última semana, que é possível que, ainda este ano, algumas pessoas comecem a ser imunizadas contra o SARS-CoV-2 com uma vacina inovadora que usa uma tecnologia especial para passar informação às células. O Governo de Donald Trump – que garantiu que teria as vacinas antes das presidenciais de novembro – já tem um pré-acordo com o laboratório para o fornecimento de milhões de doses. E, na semana passada, a Pfizer adiantou que ia alargar os ensaios a voluntários de minorias éticas e com certas doenças, como o HIV. “Mas nada será feito pondo em causa a segurança e a eficácia”, diz Paulo Teixeira, 49 anos, líder da Pfizer em Portugal. Na entrevista à VISÃO, o diretor-geral da farmacêutica admite que a ideia de que a empresa podia estar a apressar a vacina por pressão de Trump foi um dos motivos que levaram a Pfizer a definir, com outras farmacêuticas, um compromisso escrito de que só a eficácia e a segurança os guiam neste processo, seguindo “altos padrões éticos e princípios científicos sólidos”. Paulo Teixeira fala sobre os bastidores desta vacina, que está a ser desenvolvida com a BioNTech (alemã). Na mesma entrevista, a diretora médica da farmacêutica, Susana Castro Marques, explica em que consiste esta vacina injetável, nunca usada até hoje.
O que distingue esta vacina das outras?
Susana Castro Mendes – A vacina não contém nenhuma componente viva do vírus. Contém informação genética para a produção de uma proteína do vírus (proteína da espícula), que este usa para entrar nas células e se replicar. Quando as pessoas recebem esta vacina, o organismo produz anticorpos contra essa proteína. Assim, mais tarde, quando for exposto ao vírus, o sistema imunitário reconhece e já tem anticorpos para espoletar uma resposta imunitária.
A vacina é feita com base numa tecnologia nova?
SCM – É uma tecnologia inovadora que já vinha a ser testada pela BioNTech e pela Pfizer para desenvolver outras vacinas, como uma vacina universal para o vírus da gripe e também vacinas no campo da oncologia.
Como foi possível tanta rapidez na investigação?
SCM – Esta tecnologia não necessita de tempos de cultura de vírus ou cultura celular de vírus. Quando os laboratórios da China forneceram a codificação genética, conseguiu-se, com a tecnologia, isolar a sequência genética e desenvolver várias vacinas candidatas.
Quantas vacinas para a Covid-19 foram estudadas pela Pfizer?
SCM – Na fase inicial, fizemos algo sem precedentes: estudámos em simultâneo quatro vacinas candidatas que tiveram diferentes combinações de doses, de antigénio e da própria tecnologia de RNA mensageiro. E, depois de obter os dados, e em discussão com as autoridades competentes, avançámos com uma dessas vacinas, a BNT162b2.
Está a ser testada em quantas pessoas?
Paulo Teixeira – Nesta fase, foram inicialmente 30 mil voluntários, cujo processo termina na próxima semana. Mas decidiu-se alargar a mais 14 mil, para ter mais diversidade. Os voluntários são dos EUA, Alemanha, Brasil, Argentina e alguns da Turquia.
A vacina pode ser administrada a crianças?
PT – Começou a ser testada em pessoas dos 18 aos 85 e, agora, nos novos voluntários, baixou-se para os 16 anos. Mas não está previsto em crianças.
Já revelou algum efeito adverso grave?
PT – Não temos conhecimento de que se tenha verificado algum efeito grave, para além dos efeitos secundários típicos, como febre e alguma dor da injeção.
O que pensa do episódio da suspensão do estudo da vacina desenvolvida pela Oxford?
PT – Contribuiu para um aumento da confiança, pois revela que, apesar de haver um enorme esforço para encontrar a vacina, isso não está a ser feito à custa da segurança e da eficácia.
Mas têm surgido receios de que haja uma pressão de Donald Trump para ter a vacina antes das eleições.
PT – Por isso, na semana passada, e até no seguimento das notícias dessa eventual pressão de Trump, foi lançado um compromisso das nove empresas com vacinas mais avançadas, liderado pelo CEO da Pfizer, em que assumem claramente que em circunstância alguma irão submeter a aprovação uma vacina que não tenha demonstrado todas as condições de segurança e eficácia. Este compromisso mostra que o que os move não tem que ver com critérios políticos, mas meramente clínicos.
Quantas vacinas da Pfizer foram já encomendadas pelo Presidente norte-americano?
PT – Há um pré-acordo para disponibilizar entre 100 a 200 milhões de doses numa fase inicial e, depois, mais 500 milhões.
E quando é que a Pfizer terá a vacina pronta?
PT – A nossa expectativa é que possamos em outubro apresentar dados sobre a efetividade e segurança e que, caso seja segura e eficaz, possamos submeter a aprovacão até ao final desse mês.
E quando vão colocar doses no mercado?
PT – Estimamos colocar 100 milhões de doses até ao final do ano e 1,3 biliões de doses em 2021.
E na Europa, nomeadamente em Portugal?
PT – A Pfizer e a BioNTech terminaram as conversações exploratórias com a Comissão Europeia, em que se prevê uma compra inicial de 200 milhões de doses, mais uma opção de compra de mais 100 milhões de doses, a serem fornecidas assim que a vacina tenha provado ser segura e eficaz.
Quanto tempo demora a produzir cada dose?
PT – Uma das vantagens desta vacina, que precisa apenas de uma fração do DNA, é ser produzida de forma mais rápida. O ciclo de produção é reduzido e, neste caso, é de cerca de uma semana. Mas já estamos a produzir.
Estão a produzir e a armazenar?
PT – Sim. Desde final de julho que a Pfizer disponibilizou unidades de produção, três nos EUA e uma na Bélgica, que estão dedicadas a produzir a vacina para que, se for aprovada, possa ser logo disponibilizada. Caso contrário, demorava meses. E a Pfizer está a fazer isso por sua conta e risco.
Quanto vai custar cada vacina?
PT – No acordo com os EUA, cada uma custa 19,5 dólares.
E pode ser comprada por qualquer pessoa?
PT – Nesta fase, não está previsto que a nossa vacina possa estar disponível no mercado privado.
A vacina é administrada em quantas doses?
PT – Em duas, com um intervalo de 21 dias.
E terá de ser dada todos os anos?
SCM – Ainda não há dados sobre isso.
PT – Mas sabemos que as mutações do vírus não mudam estruturalmente aquela proteína espícula e, por isso, não muda a resposta da vacina.
Nos ensaios clínicos, verificou-se um elevado nível de anticorpos?
SCM – Os resultados indicam que esta vacina, na dose de 30 µg, induziu a produção de anticorpos neutralizantes contra o novo coronavírus cerca de três vezes superior à de pessoas que tinham sido infetadas com o vírus e recuperaram, o que significa que espoleta uma resposta imunitária robusta.
E como se avalia a capacidade de resposta?
SCM – A uns voluntários foi dada a vacina ativa e a outros, um placebo. Depois, fizeram-se análises ao sangue e mediram-se os anticorpos. E, agora, uma vez que os voluntários estão nos diversos países e expostos à transmissão, vai analisar-se a taxa de infeção do SARS-CoV-2 entre eles.
Como esta vacina não tem o vírus ativo, isso pode levar a que seja mais bem aceite?
PT – Acreditamos que essa perceção pode transmitir confiança adicional. Mas as outras vacinas tradicionais são seguras e eficazes. Não há razão para desconfiança. As vacinas foram um dos principais avanços das últimas décadas e permitiram combater doenças absolutamente devastadoras.
Quando acredita ser possível acabar com pandemia?
PT – A nossa expectativa é que, caso se comprove a eficácia e a segurança, em 2021 consigamos resolver a pandemia.
Os laboratórios farmacêuticos são mal compreendidos?
PT – Sim. A indústria farmacêutica sofre de uma perceção errada, sendo associada só a questões económicas, esquecendo-se o contributo que tem dado para a redução da mortalidade e para a melhoria da qualidade de vida dos doentes.
Esta pandemia mudou alguma coisa?
PT – Veio demonstrar a importância que a indústria tem para a sociedade, para a economia e para as pessoas. As vacinas e os medicamentos demoram, em média, entre 10 a 15 anos, e todos os anos uma multinacional como a Pzifer investe oito a nove biliões de dólares em investigação, e só 8% consegue ser rentabilizada, ou seja, tem resultados produtivos. Por isso, 92% do dinheiro investido é para o lixo.
Mas, depois, ao longo dos anos, recebem muito dinheiro desses 8 por cento.
PT – Sim, claro. Mas, às vezes, pensa-se que a indústria apresenta lucros obscenos e que a única motivação é o lucro, e isso não é verdade.