Há seis meses, tudo parecia encaminhado. Lisboa seria a Capital Verde Europeia, havia um plano para pôr o País a falar sobre o ambiente e José Sá Fernandes até tinha prometido deixar de fumar no arranque de 2020. Depois, veio a pandemia. Dificilmente se dirá que o ano está a ser bom, mas o vereador do Ambiente da Câmara Municipal de Lisboa agarra-se a um otimismo quase crónico que lhe permite ver o lado menos negro destes dias carregados de incerteza. A promessa, essa, cumpre-a todos os dias. Nem sinal de cigarros naquela hora de conversa à boleia do balanço de um tempo adiado – mas não perdido.
Como tem lidado com estes meses?
Há uma máxima que tivemos de pôr logo na cabeça, quando apareceu a pandemia: “Quem quer só o que pode, pode tudo o que quer.”
E isso traduziu-se em quê?
Em força para fazer coisas, para ouvir – fundamental, neste tempo – e para resistir. O que eu aprendi foi por estar a ouvir.
E o que ouviu?
Apesar de não se discutir o ambiente, porque o que interessa é como vamos sair disto, as pessoas disseram: “Que cidade tão silenciosa, que bom não haver ruído, não haver poluição, conhecer jardins que não conhecíamos.”
Ainda consegue retirar algo de positivo desta realidade?
Não lhe quero chamar positivo, porque isto é tão grave que não lhe podemos sobrepor a nossa vontade ou os nossos desejos. Mas observamos uma grande sensibilidade na maioria das pessoas para o que acabei de descrever. Mais importante: o despertar para o problema da saúde pública. Quando falamos de poluição atmosférica e dos seus efeitos nefastos na saúde humana, as pessoas estão mais sensíveis para escutar a Ciência. Querem ouvir os cientistas e, depois, querem que os políticos ajam consoante aquilo que os especialistas dizem mas, também, de acordo com o grau de incerteza que todos sentimos.
Essa é a marca destes dias?
Não sei se sente o mesmo do que eu. Acordo todos os dias com uma incerteza sobre o próprio dia. Como vai ser em termos de relacionamento? Dou-lhe um exemplo dos tempos que correm. Hoje [sexta-feira], é inaugurada a exposição sobre [Gonçalo] Ribeiro Telles e é a abertura da Casa dos Vinte e Quatro. E diziam–me assim: “Oh Zé, não podemos abrir nada agora.” E eu respondi que era esse o problema. É uma obrigação nossa não nos esquecermos das pessoas. Com mais ou menos Capital Verde Europeia, não me posso esquecer do Gonçalo Ribeiro Telles.
É a tal resistência de que falava?
Não nos podemos esquecer das pessoas e, mesmo que de forma muito condicionada, temos de possibilitar algumas visitas a sítios extraordinários da cidade. É bom, neste período, aprendermos com a História, vermos coisas que não conhecemos e lembrarmo-nos de grandes pessoas, como Gonçalo Ribeiro Telles. Esse é o grande “resistir”. E fazermos isto com as todas precauções. Passo a vida a pôr aquela coisa [gel desinfetante] nas mãos, estou viciado naquilo.
Percebo essa vontade de não parar, mas havia exposições, conferências, festas, uma série de atividades planeadas para este ano, no âmbito da Capital Verde Europeia. Que impacto teve a pandemia na planificação que tinha feito?
Foi devastador, no sentido de que algumas coisas não aconteceram nem vão acontecer. Mas, no outro dia, fizemos uma apresentação do lançamento disto tudo. Já não é a mesma coisa, é outra coisa. Tenho imensa pena de que a conferência da ONU sobre os oceanos não se faça, em Lisboa, ou da conferência sobre os transportes públicos na Europa, que também não vai acontecer. Paciência. Não acontece, não acontece.
Como geriu tudo isso?
Muitas das atividades foram adiadas. Esta exposição [sobre Ribeiro Telles] era para abrir há dois meses. A exposição sobre os jardins históricos era para se realizar há dois meses e acontecerá na próxima semana. A abertura do jardim da Caixa Geral de Depósitos abre na segunda-feira – os jardins-surpresa deixaram de ser surpresa. Nunca nos sentimos derrotados.
E nas grandes obras que estavam previstas, qual foi o impacto?
Houve atrasos, mas vão fazer-se. As obras não pararam. Há uma ideia que devemos ter presente: isto vai acabar, a pandemia vai acabar. E, quando isso acontecer, tenho de ter um legado. O que eu, vereador da Câmara Municipal de Lisboa, andei a fazer durante a pandemia? Tenho a obrigação de fazer muita coisa, sempre com a tal máxima presente. A Praça de Espanha, o terreno da Feira Popular, os últimos concursos do plano do Ribeiro Telles, vou ter uma série de jardins abertos. Quando isto acabar, tenho coisas para mostrar.
Este tempo serve também para repensar a cidade?
Aí, se quiser, pode chamar-lhe mesmo uma oportunidade, ainda que a palavra me irrite, face ao que estamos a viver. Aí, a cidade deve ser mesmo oportunista. Temos de trazer pessoas para voltarem a viver na cidade. O mesmo acontece com a cultura. Não há cidade sem cultura. Temos de arranjar um modelo qualquer para não esquecermos a cultura. É por causa dela que as capitais existem. Temos uma série de pessoas que são a força da cidade e que estão, muitas delas, à míngua. Tem de haver outros equilíbrios. Há duas coisas que vão ser absolutamente centrais na discussão ambiental do futuro, depois da pandemia: a saúde pública e a biodiversidade.
Em que medida?
A saúde pública vai ser o grande argumento para discutirmos a poluição atmosférica, as ondas de calor, o ruído, a mobilidade. Será um tema central para o ambiente e que não tem sido. O outro é a biodiversidade, porque isso significa falar de ordenamento do território. O último trimestre da Capital Verde Europeia vai ser muito dedicado a estes dois temas. A semana foi adiada, não se perdeu. Será em outubro e o terá como tema a biodiversidade.
Pegando nessas duas ideias, pergunto: a forma de pensar a cidade – com menos carros, mais ciclovias – era a mais acertada?
Foi óbvio que este era o caminho certo. Agora, temos de acelerar.
Há quem critique a estratégia de retirar carros da cidade. É um problema de comunicação?
A cabeça das pessoas está mesmo na pandemia.
Há críticas anteriores. As políticas estão alinhadas com a vontade de quem vive na cidade?
O problema é que foi introduzida outra questão. As pessoas têm medo de andar de transportes públicos e ninguém estava à espera dessa variável. Se, por um lado, sentimos necessidade de introduzir meios suaves de forma mais rápida, por outro, temos de ter algum cuidado com medidas de restrição de veículos próprios, porque existe este medo real de quem vem de fora de não querer usar os transportes públicos. A política estava certa. A implementação vai ter coisas mais aceleradas e outras que vão demorar mais tempo. Mas é irreversível o que vai acontecer em Lisboa e noutras cidades com mais de 500 mil habitantes, e que é reduzir o tráfego automóvel e aumentarmos os passeios.
E a ideia de que essa política serve mais quem vem de fora e menos os lisboetas?
Esse é o lado em que podemos ser positivos. É que os turistas acabaram. Hoje, é desolador andar na Baixa. Nunca fui contra os turistas, mas sempre defendi que devíamos ter mais gente a viver no centro histórico. Se tivermos mais rendas a preços acessíveis, no centro histórico, será mais fácil atingir esse objetivo e teremos mais pessoas para “curtir” as praças. Atenção que estamos a fazer praças em locais que não são turísticos e que podem passar a sê-lo no futuro. Se conseguirmos trazer pessoas para o centro histórico, as obras vão ser para quem viver aqui. Lisboa estava a perder o pé e agora pode ganhá-lo.
A economia da cidade também estava dependente desse mercado.
Lisboa vai sofrer muito com o facto de não ter turistas. Eles são bem-vindos, mas, a médio prazo, pode ser bom, porque se houver mais pessoas a viver no centro da cidade, continua a haver oferta hoteleira, e o turista vai sentir a cidade mais genuína. Lisboa é das cidades mais bonitas do mundo. Eu quero que os turistas venham cá, mas que encontrem pessoas a viver no centro, e acho que isto é compatível. Este programa das rendas acessíveis foi lançado com atraso, algum património nem devia ter sido vendido. Mas agora temos esta oportunidade.
A realidade de Lisboa, nestes dias, é incompatível com uma vida “normal” da cidade. O que fica para depois?
Os turistas vão voltar; Lisboa vai fervilhar e pode fervilhar. Mas pode fervilhar melhor.
Onde o realismo e o otimismo se cruzam, nesta visão sobre o futuro da cidade?
Em relação ao aeroporto, pode ser irrealismo, admito. Em relação ao resto, penso que estamos no bom caminho. Com estes programas da renda acessível, que a câmara lançou, percebeu-se finalmente que temos de ter gente a viver nos centros históricos, e isso já está a acontecer. Quando vier uma nova vaga de turistas, já teremos mais pessoas a viver no centro. Creio que não estamos a fugir da realidade, temos os pés assentes na terra, porque estamos a executar programas que permitem isto que eu estou a dizer. E, ao mesmo tempo, como estamos a arranjar mais espaço público, isso é bom para recebermos as pessoas que vão viver nestes locais, que, sendo da cidade, vão muito a estes sítios.
Qual o impacto no plano de investimentos?
Não param. As praças, o plano de drenagem… Muitos dos projetos, movidos por questões ambientais, não param. Estou descansado em relação a essa matéria. Mas é verdade que vamos levar um grande chimbalau.
Para o ano, há autárquicas. Vamos encontrar o seu nome nas listas?
Vamos ver… Esta coisa da pandemia… Os atrasos, os adiamentos… É uma conversa que se terá, mas está adiada. Nem estou com a cabeça aí. Estar a relançar a Capital Verde, tentar que as pessoas estejam informadas, que percebam a importância destes temas… Adiei todas as decisões da minha vida.
Fica a sensação de que há, pelo menos, vontade para continuar.
Há sempre um momento para acabar e há sempre desafios maiores ou outros desafios. Há sempre coisas para fazer. Então numa cidade… Agora, há um tempo.
O que ainda tem para fazer?
Estou a tentar, num protocolo com a universidade e com recurso a satélites, perceber onde estão os plásticos no estuário do Tejo, para irmos apanhá-los. Está a ver onde anda a minha cabeça, não é? Há uma série de coisas deste género que podemos implementar na cidade. Portanto, eu podia ficar aqui eternamente, mas não quero ficar aqui eternamente. Há um momento em que isto tem de acabar.
Quando Lisboa conseguiu o estatuto de Capital Verde em 2020 foram também traçadas metas ambientais. A pandemia ajudou a acelerar a concretização desses objetivos?
Sem dúvida. Em julho, já há vários supermercados a instalar painéis fotovoltaicos. Lançámos o concurso da nossa central fotovoltaica que vamos começar a instalar, este ano. Só em fotovoltaico, de repente, dobrámos os megawatts que tínhamos na cidade, este ano.
Há pouco falava em legado. Qual será a sua marca na cidade?
O grande legado são os corredores verdes imaginados por Gonçalo Ribeiro Telles e concretizados pelo José Sá Fernandes – mas, claro, que não o fiz sozinho.
Também disse, numa outra entrevista à VISÃO, que, em 2020, ia começar a “falar mais”, estava a referir-se a quê?
Uma das coisas é o aeroporto. Comecei a falar em 2020, porque uma das questões pró-Montijo era o tempo. Tínhamos de fazê-lo porque não havia tempo. Agora, voltou a haver tempo. Os turistas não voltam todos de uma vez. Temos tempo.
E vontade, há?
Não sei. Mas não me parece. Era uma grande oportunidade. Tirar o aeroporto da Lisboa é uma coisa a dez anos, mas que tem de ser tratada agora. Já viu o que seria termos a área do aeroporto para estendermos a cidade. Mais água, mais jardins, as pessoas sem barulho? Maravilha! prainho@visao.pt
Lisboa vai sofrer muito com o facto de não haver turistas. Eles são bem-vindos, mas, a médio prazo, pode ser bom ter mais pessoas a viver no centro da cidade. Continua a haver oferta hoteleira, e o turista vai sentir a cidade mais genuína