É uma capa que o primeiro-ministro teima em não despir. Pouco antes da conversa de Paulo Trigo Pereira com a VISÃO, António Costa mostrou-se “confiante” num regresso da situação económica portuguesa à realidade pré-pandemia, já em 2022. Para isso, defendeu aos microfones da TSF, bastaria que se tomassem as “opções certas”. Certo? Sentado em frente ao ecrã do computador, numa entrevista à distância, através da plataforma Zoom, o ex-deputado revela-se menos confiante: “É possível, mas esse é o melhor cenário.” Todas as outras projeções são menos otimistas. Trigo Pereira antevê “desafios enormes” na preparação do Orçamento do Estado para o próximo ano – agravados pela saída de Mário Centeno do Ministério das Finanças – e aponta o caminho: “não” à austeridade, mas um “sim” incontornável ao congelamento de salários e pensões e ao aumento de alguns impostos já no “orçamento suplementar” de junho e até ao final do próximo ano. Depois, crise política e eleições antecipadas.
Ana Gomes pode, afinal, participar numa corrida a Belém. Já tinha manifestado o seu apoio, mas acredita que esta candidatura tem condições para avançar?
Deve haver uma candidatura no espaço socialista que possa colocar coisas de novo na agenda e evitar que haja uma grande fuga de votos de pessoas que não votam em Marcelo Rebelo de Sousa para André Ventura.
Ana Gomes conseguiria estancar esse voto populista?
Embora eu apoie pessoas e programas, penso que ela estaria em condições de apresentar um programa eleitoral consistente e cumprir essa função de uma candidatura que devia existir na área socialista. As declarações de António Costa, de implícito apoio do PS à candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa, deixaram um vazio.
António Costa já disse que é “óbvio” quem vai ganhar essas eleições. Ana Gomes lutaria por que resultado?
Se for candidata, além de colocar na agenda política alguns temas importantes e de questionar Marcelo Rebelo de Sousa sobre os mesmos – por exemplo, a questão do combate à corrupção, que é essencial e em que o Presidente poderia ter tido uma postura mais proativa do que teve no passado –, acho que conseguirá superar a fasquia dos 10%, sobretudo se tiver o apoio do Bloco de Esquerda. Poderá ficar, até, perto dos 15 por cento.
O resultado está, portanto, fechado à partida.
Estou convencido de que Marcelo Rebelo de Sousa irá ganhar estas eleições. Mas o que está em jogo não é apenas o próximo Presidente da República, é a reconfiguração de todo o espaço político português para as próximas eleições legislativas. O resultado das presidenciais vai ser determinante para a reconfiguração do espectro partidário nas próximas legislativas; por isso é que elas são tão importantes.
Que reconfiguração prevê?
Vai depender de quem forem os candidatos. Se Adolfo Mesquita Nunes for candidato da direita – e eu penso que é um excelente candidato –, isso evitará o colapso do CDS e dar-lhe-á um balão de oxigénio. Caso o CDS não tenha candidato ou tenha um muito fraco, esse colapso poderá acontecer. E há a questão do Chega. Não havendo um candidato forte à direita e um candidato minimamente forte na área do PS, o debate ficará polarizado entre Marcelo, de um lado, e os descontentes do sistema, do outro. E isso daria um excesso de votos a André Ventura.
E, para o PSD, o assunto está arrumado?
Havendo uma candidatura à direita, como a que referi, o PSD terá muita dificuldade em apresentar um candidato autónomo, e penso que não o fará. Marcelo Rebelo de Sousa é do PSD, não vejo o PSD a apresentar outro candidato presidencial e não tem essa obrigação estrita, porque, no fundo, tem um candidato. Mesmo que a uns agrade mais e a outros, menos.
Na semana passada, assistimos a um outro facto político à porta da Autoeuropa: as declarações do Presidente da República sobre o Novo Banco, que visaram Mário Centeno. O ministro pode passar das Finanças para o lugar de governador do Banco de Portugal?
Já defendi que sim. O novo governador deve ter um perfil forte, com um currículo muito bom, deve ter sensibilidade para os assuntos políticos mas ser independente do poder político – penso que também cumpre esse requisito – e ter experiência internacional. Porque o próximo governador tem assento no Conselho de Governadores do Banco Central Europeu, no qual se vão tomar medidas muito importantes para Portugal nos próximos anos. Ele tem esse perfil e tem um único conflito de interesses sério, que é o Novo Banco. Aí, deve pedir escusa em decisões que envolvam a instituição. É a única reserva, mas não é suficiente para pôr em causa a escolha.
Os episódios da semana passada não o fragilizaram nessa pretensão de suceder a Carlos Costa?
Definitivamente, não. Todos estiveram mal neste episódio, mas quem esteve melhor, entre os que estiveram mal, foi Mário Centeno. Só esteve mal porque não informou atempadamente o primeiro-ministro de que algo que estava previsto no Orçamento do Estado e que ele tinha poder para fazer já tinha sido feito: a transferência dos 850 milhões de euros. O primeiro-ministro devia ter conhecimento de que a transferência prevista já tinha sido feita.
E quem esteve pior nesse episódio?
Foi Marcelo Rebelo de Sousa, porque fez uma conversa em frente às câmaras como se estivesse em reunião privada com o primeiro-ministro. Imiscuiu-se na relação entre primeiro-ministro e ministro das Finanças e, sobretudo, interferiu na execução orçamental do Governo.
Essa ingerência foi um acaso?
Dou o benefício da dúvida ao Presidente. Uma hipótese é ter sido um lapso. Outra é querer enfraquecer Mário Centeno, para tornar atrativo outro candidato ao lugar de governador. Ou quis apoiar explicitamente António Costa, dado que essa é a sua relação preferencial. Mas devo lembrar que não é a primeira vez que o Presidente tira ou quer tirar o tapete a Mário Centeno. Aconteceu o mesmo com os SMS de António Domingues [polémica em torno da anterior administração da Caixa Geral de Depósitos].
Com a saída do ministro das Finanças, o substituto já está no Governo?
Não faço ideia de qual seja a solução.
Siza Vieira daria um bom ministro das Finanças?
As Finanças não precisam apenas de um bom ministro. Precisam de uma boa equipa de ministro e secretários de Estado, e estou um pouco preocupado com a nova equipa. Os desafios vão ser enormes. O desafio do Orçamento do Estado para 2021 vai ser enorme. E não acredito que seja possível fazer uma equipa de Finanças tão boa como a que vai sair.
Preferia que o resto da equipa fosse reconduzida?
É impossível, porque os secretários de Estado têm de ter a confinança do ministro. Mas esta equipa foi a mais qualificada de sempre nas Finanças e teve um muito bom desempenho.
Formar uma equipa nova, neste momento, comporta demasiados riscos?
Esta equipa vai terminar o seu mandato, independentemente de quem possa passar para as novas funções. O que digo é que é essencial que haja a melhor equipa possível, porque os desafios que se vislumbram para 2021 e anos subsequentes são muito grandes. Se António Costa não escolher um ministro que, por sua vez, escolha uma equipa muito boa, vai ter problemas sérios no futuro. E Portugal também os terá.
A que desafios se refere?
Este ano, vamos ter o maior défice e o maior rácio da dívida pública da história da democracia portuguesa. Veja a herança que terá o próximo ministro…
O Orçamento do Estado para 2021 dependerá, em grande medida, da solução que a União Europeia vier a definir para responder à crise. Qual seria o desenho ideal do programa de apoios, tendo em conta as pretensões portuguesas?
Daquilo que já está decidido, [sabemos que] o programa “Sure”, de apoio às empresas e trabalhadores, vai financiar o layoff. E que a possibilidade de acesso ao Mecanismo Europeu de Estabilidade vai até ao máximo de 2% do PIB. Há ainda as linhas de crédito do Banco Europeu de Investimentos. Estas três componentes são empréstimo. O que está para ser decidido é o Fundo de Recuperação, e estou convencido de que grande parte do Fundo de Recuperação vai ser sob a forma de empréstimo e não subvenções.
Com o impacto que isso terá nas contas públicas.
Para ser sob a forma de subvenções, teria de vir do Orçamento da União Europeia, e a UE só tem capacidade para dar subvenções se tiver mais recursos. Esses recursos podem vir de impostos adicionais – sobre o digital, as transações financeiras, o carbono –, e eu acho bem que se avance nestes três impostos. Mas eles nunca chegarão a montantes significativos de subvenções. Por isso, estou convencido de que o fundo será sob a forma de empréstimos. E por uma razão adicional.
Que razão?
É que os empréstimos de programas de dívida contraída pela União Europeia que já existem são os chamados back-to-back loans. São empréstimos garantidos pelos Estados-membros, que serão pagos novamente à União Europeia, e essa é a garantia dos empréstimos. Se a emissão de dívida for, em parte, para financiar subvenções, essas subvenções têm de ser garantidas pelo orçamento europeu. E não estou a ver a Alemanha e os países do Norte a quererem dar muitas garantias para essas subvenções.
António Costa dizia que, em 2022, poderemos estar na situação em que estávamos em 2019. Acredita nesse horizonte?
É possível, mas é o melhor cenário. Todos os outros são piores do que esse.
É o irritante otimista a falar?
Já sabemos que a recuperação económica em 2021 vai depender de quando a vacina para a Covid-19 estiver disponível em massa. Portanto, depende de algo que não sabemos. A recuperação económica em 2021 vai ser menor que a recessão de 2020. Vamos entrar em 2022 pior do que saímos de 2019. Isso, seguramente. Se, em 2022, conseguiremos estar melhor ou não, depende das medidas que forem adotadas até lá.
O cenário que temos pela frente é este: 21 mil milhões de riqueza nacional perdida em dois anos, uma dívida pública para lá dos 130% do PIB e o desemprego nos dois dígitos. É possível ultrapassar a crise que se avizinha sem austeridade?
O relançamento da economia depende de vários fatores. Entre os quais, o consumo privado, que representa dois terços do PIB e que vai cair substancialmente este ano, porque os portugueses vão poupar substancialmente neste período. Vão ter um comportamento semelhante ao que tiveram em 2012, quando houve cortes nos salários e pensões e em que, apesar disso, a poupança aumentou. Mas relançar a economia pressupõe, também, relançar o consumo privado. E por isso é que sou contra medidas de austeridade, que entendo por cortes de salários e cortes de pensões.
Qual é a fórmula mágica, então?
Não há fórmulas mágicas. Defendo um congelamento de salários e pensões já no orçamento suplementar e, também, no orçamento para 2021. Deve haver um congelamento para estabilizar as expectativas dos agentes económicos e não lhes criar – e agravar – aquele receio que os portugueses já sentem neste momento, de sair à rua, de ir a lojas, de consumir. Temos de relançar a procura interna e isso não se faz com cortes de salários e pensões.
Mas…
Obviamente, alguns impostos vão ter de aumentar. E o principal candidato é o Imposto sobre Produtos Petrolíferos, porque, para o consumidor, a descida do preço do petróleo compensará a subida do imposto. Haverá aumento de impostos, mas não vejo necessidade de agravamento fiscal sobre o rendimento e não acho desejável que haja um agravamento da tributação das empresas. Também não há condições para descer nem um nem o outro.
Com as dificuldades que antevê na preparação do Orçamento do Estado para 2021, para onde deverá o PS virar-se em busca de apoio parlamentar?
Fui e continuo a ser contra o facto de o PS não ter feito nenhuma aliança preferencial a seguir às eleições. A estabilidade política só se garante de uma maneira: com apoio parlamentar a um governo. Não havendo esse apoio maioritário, estamos sempre sujeitos a geometrias políticas variáveis que não dão estabilidade. A aliança que faria mais sentido era com o Bloco de Esquerda mas, seja qual for, um governo deve ter a sua maioria política assegurada.
Não tendo uma maioria garantida, como vai o PS gerir o processo no final deste ano?
O que antevejo é que o orçamento de 2021 irá passar. Para isso, basta uma abstenção do PSD ou do Bloco de Esquerda. Vai passar porque quase ninguém está interessado numa crise política no inverno de 2020. O único interessado nisso é o Chega. Marcelo não está, porque tem eleições passados três meses. E António Costa, mesmo que ainda tivesse alguns dividendos políticos, porque o PS é o único partido que está à frente nas sondagens, ainda assim não me levaria a crer numa crise política. PSD, Bloco de Esquerda, PCP, CDS, todos eles perderiam com umas eleições antecipadas este inverno. Não acredito numa crise política no inverno de 2020, mas já acredito, com alguma probabilidade, numa crise política no inverno de 2021.
Quando estiver para ser votado o orçamento do pós-pandemia.
Porque, entretanto, já tivemos um ano difícil. Já se saiu da Covid, esta coisa excecional que amedronta toda a gente e que dá mais poder ao Presidente e ao primeiro-ministro. O efeito político da Covid vai até ao final de 2020, mas já não vai existir no final de 2021. Nesse momento, o que teremos são as consequências de uma forte contenção orçamental, que terá de existir, e vários tipos de descontentamentos sociais. Portanto, vamos chegar ao final de 2021 com sondagens a mostrar um panorama muito diferente do atual. Nessa altura, não sei se não haverá uma crise política. Com a agravante de que já não teremos a equipa de Mário Centeno nas Finanças.