No ano em que fará 40 anos, Marlene Vieira muda-se para Santa Apolónia, em Lisboa, para um novo edifício com vista para os navios que largam turistas a rodos. Aqui abrirá uma montra com o que de melhor se faz por cá: uma loja de produtos de qualidade, um dessert bar, um restaurante de partilha e um fine dinning – baseado num menu degustação de cozinha criativa com a sua assinatura, apenas ao jantar. Na área exterior, manterá uma horta porque adora o cheiro da terra e isso estabelece-lhe o equilíbrio entre quem já foi, uma menina do Norte, e quem sonha ser, uma chefe de alta cozinha, em Lisboa, com uma Estrela Michelin. Na reforma, vê-se à frente de um hotel-escola, num sítio mais rural. Por agora, é na sua futura casa, numa zona emergente da capital, que damos gás à entrevista que se segue.
A que se deve a aposta tão forte neste novo edifício?
Foi um convite do Porto de Lisboa, que me encheu de medo, mas que nunca pensei em recusar. Não estamos propriamente no Chiado, onde basta abrir a porta e as pessoas entram… No entanto, nunca me habituei a que as coisas sejam muito fáceis para mim, nem costumo negar-me a desafios. Trata-se de um recomeço, numa zona que também está em crescimento. Vamos então fazer uma proposta totalmente diferente.
Como vai ser o seu bar de sobremesas?
Vai ser algo único no País e, tal como foi pensado, poderia estar em qualquer lugar do mundo. Trabalho com um pasteleiro, que é o consultor, mas também gostaria de ter aqui outros chefes para a partilha de experiências únicas. Eu sei fazer sobremesas, mas não ao nível que atingiremos aqui. Haverá um menu degustação de cinco momentos, que não têm de ser necessariamente doces ou com base em açúcar, mas não usaremos produtos que não sejam portugueses… É difícil de explicar, porque se trata de técnicas muito complexas.
Então não vai haver cacau?
Vai, porque fazemos chocolate bom por cá e já adotámos o cacau como sendo nosso, tal como o bacalhau.
Chegou recentemente do festival atlântico gastronómico Saborea Lanzarote, que teve Lisboa como cidade convidada. O que foi lá mostrar?
Pataniscas de bacalhau, um prato bastante tradicional, e uma sopa rica de peixe e marisco. Nestes festivais, estão sempre à espera que levemos alguma receita de bacalhau e também pastéis de nata.
Mas isso já toda a gente conhece. O que se pode mostrar mais, que seja característico da cidade de Lisboa?
Éramos quatro chefes: eu, o Bertílio Gomes, o André Magalhães, da Taberna da Rua das Flores, e o João Sá. Eles levaram pratos diferentes, como iscas, miomba (uma sandes de cachaço feita em banha), feijoada de mão de vaca e ovos verdes.
O João Sá, por acaso, é seu marido… É bom conseguir aliar trabalho e lazer, ou mal se viram?
Normalmente, não trabalhamos juntos, e estas ações são raras. Em 20 anos de carreira (e 14 com ele), aconteceu para aí três vezes, e para promover Portugal.
Além de Lanzarote, onde foram ultimamente?
As nossas viagens são sempre gastronómicas – estamos em lazer, mas a trabalhar e a comer, coisa de que também gostamos bastante. No verão, fomos à Suécia e à Dinamarca.
Não pensaria nesses países como destinos gastronómicos…
O Norte da Europa começa a ser um destino obrigatório pela forma diferente de apresentar a comida e pela originalidade dos produtos.
O que lhe ficou na memória?
Os produtos completamente diferentes dos nossos, como bagas, ervas, folhas. Há uma ligação à Natureza muito forte e isso sente-se no prato. É uma inspiração.
A vossa filha vai a reboque nessas viagens, claro.
Sempre. Ela, com 4 anos, come de tudo. Às vezes, há coisas que não quer arriscar, mas eu apanho-a distraída e ponho-as na boca – não pode pensar muito, tem é de sentir o sabor. E isso faz falta a muitas pessoas: ultrapassar o preconceito, não olhando…
Há algo que não coma, mesmo sem estar a olhar?
Nunca deixo de provar. Mas há uma coisa que não consigo comer, que se chama pepino-do-mar: uma espécie de lesma gigante que vive nas rochas. Os japoneses e os chineses gostam muito disso.
Há competição entre marido e mulher ou evitam falar de trabalho em casa?
Não existe competição, porque temos cozinhas muito diferentes e trabalhamos de forma distinta. Cada um desenvolveu a sua linha e forma de estar. E falamos de trabalho, nem que seja para dar força um ao outro.
Estando juntos há tanto tempo, como podem ser assim tão distintos na cozinha?
As nossas histórias são mesmo diferentes. Estou muito presa às raízes, à forma como a minha mãe e a minha avó cozinhavam. E tento recuperar essas coisas que marcaram a minha infância, através de sabores e texturas, porque é uma forma de estar perto da minha família, que vive toda no Norte. O João arrisca muito mais, porque os pais nasceram em Angola e na casa dele tanto se fazia cozido à portuguesa como muamba.
Onde se conheceram?
No Sheraton do Porto, o único sítio onde trabalhámos juntos. Mas ele não se identificava com a linha da cozinha e acabou por sair muito antes de mim.
Têm ambos uma profissão com horários difíceis. Como se organizam com a vossa filha pequena? Fazem turnos?
Fazemos. No dia em que ela nasceu, fecharam o Avenue e o João estava no Assinatura. Nos primeiros três meses, ele esteve muito no Mercado da Ribeira, apesar de não gostar nada do conceito – aquilo tem muito volume e ele está habituado a coisas mais pequenas. Entretanto, saiu do Assinatura e esteve parado durante os dois primeiros anos da nossa filha, o que me deu oportunidade de montar o Panorâmico e irmos construindo o Sala, que é o restaurante dele. No Taguspark, só trabalhava aos almoços, e ao mercado já só lá tenho de ir duas vezes por semana. Mas era pouco para mim…
Então e agora, como vai ser?
Vamos ter de recorrer a apoio familiar. Já pedi à minha mãe para vir para Lisboa, porque na fase de abertura terei de estar presente todos os dias. Depois, faremos turnos: numas noites, ele não vai poder ir ao restaurante, noutras será o meu caso. Note-se que os chefes não têm de estar sempre presentes, devem gerir isso com a equipa.
A profissão de cozinheiro e dono de restaurante obriga as pessoas a trabalharem enquanto os outros se divertem. Quando despe a jaleca, ainda tem energia para se divertir?
Claro. Somos bichos da noite. A nossa diversão começa lá pela meia-noite, e há que aproveitar essa hora mais calma e silenciosa.
Também foi cozinhar ao Programa da Cristina. Esperemos que não tenha feito arroz com atum…
Seria algo impossível, é demasiado básico para nós. Além disso, não consigo comer atum de conserva, porque esse peixe é bom cru ou quase cru.
Foi fazer doces, não foi? Na altura do lançamento do seu único livro sobre o tema.
Sim, e a minha filhota também foi porque participou em algumas receitas. Já sabe partir ovos muito bem e também lamber as tigelas, como todas as crianças.
A Marlene tem queda para os doces.
Foi por aí que me obrigaram a começar. As mulheres eram muitas vezes atiradas para a pastelaria, porque achavam que as cozinhas profissionais não eram lugares para elas. Estavam muito ligadas à cozinha tradicional…
E estão.
E estão. E logo eu, que só queria estar em cozinhas profissionais de cinco estrelas… Nem nunca me imaginei num restaurante tradicional, a mexer nos tachos.
Em Portugal, quando se juntam cozinheiros de renome, quase nunca há mulheres no grupo…
É uma ferida aberta que tenho no meu peito. Também gostava de ter uma Estrela Michelin, não o vou negar, e vou trabalhar para isso. Sempre me identifiquei com o chamado mundo dos homens, não sou nada vaidosa ou de me arranjar muito, prefiro ser prática. Nunca me senti diferente e continuo a achar que posso fazer exatamente o mesmo que eles. Aliás, a minha vida começou a mudar quando saí de trás de um chefe, depois de trabalhar com o Luís Baena, em 2011, no Manifesto.
O que fez a seguir, para assumir a liderança?
Vi um anúncio para chefe de cozinha, candidatei-me e selecionaram-me. Foi quando abri o Avenue, aos 32 anos, e tive hipótese de apresentar as minhas ideias – tive logo sucesso. No seguimento do meu trabalho, recebi a proposta para abrir a loja no Time Out Market [no Mercado da Ribeira], que era só por convite, com base nas melhores avaliações dos seus críticos.
Em casa, só cozinha por obrigação?
Não tenho aquele romantismo de ir para casa cozinhar, não… O meu marido sempre se responsabilizou mais por essa parte.
É mais fácil cozinhar doces ou salgados?
Salgados. Nos doces temos de ser muito rigorosos. Só podemos roubar um bocadinho no açúcar, mas apenas em alguns casos. No doce de ovos, por exemplo, temos de assumir o ponto e não dá para inventar.
Os nossos doces são muito doces?
São, mas temos técnicas muito boas.
Foi aos 12 anos que decidiu que queria ser cozinheira. Ainda não mudou de ideias?
É engraçado que nunca me arrependi. Foi uma paixão à primeira vista e logo por uma cozinha profissional de estilo francês, quando lá entrei com o meu pai, que ia entregar carne.
Não só decidiu que queria ir para cozinha, como se direcionou imediatamente para aquele tipo de cozinha. Porquê?
Por ser um caos organizado, como se fosse uma orquestra.
Nunca trabalhou numa cozinha tradicional?
Trabalhei uma vez, num fim de semana em que fui ajudar a minha mãe, que cozinhava nesse local. Vi logo que aquilo não era para mim. Estou associada à cozinha tradicional, é um facto, mas aplicada ao fine dinning, com técnicas de excelência. É um grande desafio da atualidade fugir ao desperdício neste tipo de comida. Há que puxar pela cabeça, mas já existem muitas formas de se chegar a pratos com simplicidade, beleza e muito sabor, sem deitar tanta coisa fora.
Onde gosta de ir comer, em Lisboa?
Ao Ramiro, porque vale pelo produto e, além disso, sabem exatamente o ponto de cozedura do marisco. E agora descobri o Bel’Empada, que fica perto da minha casa e tem pratos excelentes, de cariz mais alentejano.
Como foi sair daqui para ir trabalhar em Nova Iorque, com apenas 20 anos?
Fui na sequência do chamamento de um amigo, uma semana depois dos atentados do 11 de Setembro – note–se que nunca tinha andado de avião… Foi muito duro: o ambiente estava péssimo e as pessoas traumatizadas. Mas mantive-me num restaurante de comida portuguesa durante dois anos. Curiosamente, foi lá que conheci a culinária nacional, pois até então estava limitada ao que se comia na minha família – a minha avó cozinhava para 24 pessoas – e às bases francesas que aprendi na escola de turismo.
O que se comia em sua casa?
Cabidela, farinha de pau, rojões, arroz de bacalhau… Mas não conhecia as açordas alentejanas nem o xerém do Algarve.
A questão de “ter mundo” é muito importante para um chefe?
Muito. Todos os anos viajo para um sítio diferente e, lá em casa, temos muitos livros de pessoas que nos inspiram. Mas a parte de ir conhecer e estar nesses restaurantes é fundamental. Não podemos manter-nos fechados na cozinha, temos de nos afastar do elefante para vê-lo melhor.