Há coincidências que mudam o rumo de uma vida. Se esta professora do departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa não tivesse ido a uma conferência a Londres, em 2011, talvez não estivéssemos agora a debater o desperdício alimentar no seu pequeno gabinete na Avenida de Berna. No regresso dessa deslocação de trabalho, Iva Pires, que coordena o mestrado e o doutoramento em Ecologia Humana, comprou um livro no aeroporto, para entreter-se na curta viagem até Lisboa. A obra (Waste – Uncovering The Global Food Scandal) era do londrino Tristam Stuart, um acérrimo combatente deste problema, e dissertava sobre o escândalo do desperdício global dos alimentos. Iva Pires sorveu o livro e, quando aterrou em Lisboa, estava determinada em investigar se haveria alguma coisa do género no País. Foi então que percebeu que este era um assunto marginal, mesmo dentro da Academia, e decidiu desafiar a sua colega Sofia Vaz a concorrerem ao prémio Ideias Verdes, que premiava propostas sustentáveis. Apresentaram-se com um projeto para medir o desperdício em Portugal e ganharam. Criaram assim o PERDA, que se manteve vivo por um ano apenas, mas Iva, desde então, nunca mais largou o assunto. “Se cada família não deitar fora uma laranja, o que acontecerá?”, interroga a investigadora, de 59 anos, que acaba de publicar Desperdício Alimentar, com a chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Tempos houve em que éramos mais poupados. Porque nos desleixámos desta maneira?
Durante a investigação para o livro, recolhi cartazes muito interessantes da altura da Segunda Guerra Mundial, em que se apelava a que se mobilizassem os alimentos disponíveis o melhor possível, porque eram escassos. Anos mais tarde, surgiu a Política Agrícola Comum, que resultou num excesso de produção. Ao mesmo tempo, os produtos tornaram-se mais baratos, as famílias aumentaram os seus rendimentos e o peso da alimentação nas despesas baixou consideravelmente – as pessoas passaram a adquirir mais alimentos. E quanto mais se compra, mais propensão há para o desperdício.
O desleixo enquadra-se, então, no contexto da sociedade de consumo?
É fácil consumir, é fácil deitar fora.
Aparentemente, o desperdício não custa nada, porque não conseguimos contabilizá-lo.
Temos muita dificuldade em fazê-lo, de facto. Nos estudos que existem, chega-se à conclusão de que as famílias têm uma perceção muito errada daquilo que desperdiçam. E são elas as que mais esbanjam, ao longo da cadeia alimentar.
É a fase em que o desperdício se torna mais inexplicável, porque as famílias estão a ser as primeiras inimigas delas próprias.
Na verdade, é muito mais fácil gerir o que se aproveita ou não no seio da economia familiar do que num restaurante, por exemplo. Neste caso, a grande dificuldade prende-se com saber quantos clientes terão por dia…
Desperdiçar no contexto familiar é mau para o ambiente, mas em primeiro lugar é mau para o orçamento de cada núcleo, certo?
Em Londres, recentemente lançaram uma campanha em que se alertavam as famílias para a poupança de 50 libras por mês, no caso de desperdiçarem menos alimentos. Muitos estudos indicam que é ao mostrar-se o que se pode economizar que se passa melhor a mensagem.
Esses estudos explicam o desperdício familiar?
Muita gente assume que parte desse problema surge pela tirania da estética, que faz com que as pessoas se habituem a comprar fruta e legumes muito bonitos. Se estes já têm uma manchinha, as pessoas preferem deitar os alimentos para o lixo. No entanto, não podemos esquecer-nos de que este comportamento atravessa toda a cadeia, do campo ao garfo.
O mundo parece dividido em dois: o da abundância e o da subnutrição. Sabemos que é demagógico dizer que não se deve deitar fora comida, porque há gente a morrer à fome. Mas a questão moral acaba por ser importante e deveria influenciar mais as nossas escolhas, não?
Moral e ética. Na verdade, o desperdício alimentar convoca questões ambientais, económicas, sociais e éticas. Torna-se claro que um produto desperdiçado não vai servir para alimentar, de uma forma direta, uma pessoa mas, ao não ser descartado, cria-se oportunidade para que outras possam usá-lo em seu benefício.
Também há desperdício nos países onde existe fome?
É um problema transversal a todas as geografias. Nos países menos desenvolvidos há um volume muito grande de desperdício, mais próximo da produção, chegando a haver uma perda de 40% dos alimentos. Especialmente nos casos em que a janela de venda dos produtos é muito pequena – os agricultores vêm de longe para o mercado e depois nem têm infraestruturas de frio para conservarem os alimentos. O que não se vende num dia, vai logo para o lixo.
Os números globais são impressionantes.
Em 2011, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) apontou uma estimativa – são sempre estimativas – de 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos adequados para consumo humano perdidas ao longo da cadeia. Só na União Europeia, estamos perante 88 milhões de toneladas por ano.
E há tendência para aumentarem?
Não há outras estimativas de comparação, mas os relatórios apontam para que nos países mais desenvolvidos o problema continue a crescer.
Só em Portugal, diz-se que cerca de 17% de todos os alimentos produzidos acabam no lixo. Este cenário não tem melhorado?
Esse valor foi calculado, em 2012, pelo projeto PERDA – não houve mais nenhum update dessa informação. É importante investir na investigação pluridisciplinar para se perceber realmente onde, quando, quanto e porquê estamos a desperdiçar alimentos.
O que se tem feito em Portugal para se combater esta realidade?
Temos uma estratégia nacional de combate ao desperdício, que foi apresentada há duas semanas. Agora, é preciso implementá-la.
Qual é o papel da Comissão Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar?
Com 18 instituições do Governo agregadas, tem por função elaborar uma estratégia que contemple uma série de ações que passam por informar as pessoas, capacitar os intervenientes ao longo da cadeia e monitorizar o desperdício. Todos os Estados-membros têm de fazê-lo e, até 2020, assim conseguir quantificar o desperdício alimentar.
Como se monitoriza o que vai para o lixo?
Não é fácil. E isto ainda mais difícil se torna quando pretendemos quantificar, porque o desperdício ocorre ao longo da cadeia. Como vamos chegar às famílias para saber exatamente como estão elas a desperdiçar? Só com estudos quantitativos, demorados, até para sabermos as razões de tais perdas.
Como fizeram no PERDA?
Desenvolvemos algumas entrevistas e um questionário online.Quanto maior é a família, menor é
o desperdício?
Sim. E os estudos apontam para a falta de competências culinárias dos mais novos que nem sabem, por exemplo, como se guarda uma alface para que se mantenha mais fresca por mais tempo.
De que forma se guarda uma alface para ela se manter mais fresca ao longo do tempo?
Há quem aponte que se pode guardá–la com o pé dentro de água, fora do frigorífico. Outras pessoas dizem para ser acondicionada num saco, no frio. Já tentei das duas maneiras e resultou com ambas. Mas o ideal é mesmo comprar apenas uma alface, em vez de duas, e ir consumindo-a antes que se estrague.
Na sua casa são dois adultos e dois filhos de 20 e 22 anos. Acha que desperdiçam?
Muito pouco. Chegamos ao ponto de congelar as pontas do pão de que ninguém gosta para mais tarde fazer, por exemplo, um pudim de peixe. Guardamos sempre as sobras, e há um dia por semana que comemos todos os restos que existem no frigorífico, mesmo que sejam diferentes. Se cozinho a mais ao jantar, há sempre quem leve a comida no dia seguinte, na lancheira. Se houver muito tomate e se constatarmos que não vamos conseguir consumi-lo, congelo para depois fazer refogados. Esforçamo-nos por desperdiçar quase nada, mas de vez em quando lá vai uma peça de fruta ou um iogurte que passa do prazo.
Se o Reino Unido é um dos países mais avançados neste combate, que exemplos tem para nos dar?
Realmente eles começaram há mais tempo, estão muito mais avançados na quantificação – têm imensos relatórios, especialmente com as famílias (dispõem de um painel em permanência). Já fizeram diversas campanhas de sensibilização para os vários segmentos da cadeia. Por exemplo, tiveram uma que adotou o slogan Love Food, Hate Waste (Gostamos de comida, odiamos o desperdício) e que, ao mesmo tempo, disponibilizava um site de ajuda sobre o aproveitamento.
No final de contas, desperdiçam menos?
Depois daquela campanha em Londres em que falavam do orçamento familiar, houve uma nova prospeção e, realmente, verificou-se uma redução no desperdício das famílias.
Vale mais a pena atuar a montante ou no final do processo, junto das famílias, que são as que mais contribuem para este problema?
Não existem soluções simples, porque se trata de um problema complexo, em que estão envolvidos vários intervenientes com estratégias diferentes. É importante atuar ao longo da cadeia. Há que arranjar uma maneira holística de juntar todos em torno deste objetivo comum – só trará vantagens.
Mas se tivesse de escolher apenas um dos níveis para atuar?
Seriam as famílias, sem dúvida. Dou muitas vezes este exemplo: se cada uma das 4 milhões de famílias existentes em Portugal deitar para o lixo uma laranja por semana, isso significa 16 800 toneladas de desperdício anuais e 25 mil euros que vão fora.
O que pensa sobre as diferentes associações que têm saído do seio da sociedade civil, como a Fruta Feia, a Dar e Acordar ou a ReFood?
É muito interessante que a sociedade civil se tenha organizado ainda antes do que o próprio Governo. Elas resgatam toneladas de alimentos ainda adequadas para consumo humano, dando-lhes uma nova oportunidade. A melhor maneira de lidar com o desperdício é prevenir – e aí as campanhas de sensibilização são muito importantes, mostrando até como se poupa imenso dinheiro. No final da cadeia de produção, é quando um alimento tem maior valor acrescentado: já nos obrigou a gastar água, mão de obra para colhê-lo, recursos para transportá-lo, energia para comprá-lo e consumi-lo.
Já existem vários chefs que se preocupam com esta questão, introduzindo-a nos seus métodos de confeção e até em alguns pratos da ementa.
Isso também é notório nos programas de televisão em que entram chefs conceituados – em quase todos há uma preocupação de utilização da totalidade dos alimentos, reduzindo o que não se aproveita.
Ainda se sente uma certa resistência em pedir o doggy bag nos restaurantes. Porquê?
Trata-se de um estigma associado à falta de comida em casa. Eu peço sempre, e os olhares dos outros não me incomodam minimamente. Toda a comida que vem para a mesa vai obrigatoriamente para o lixo, nem pode ser doada (só os alimentos que ficam na cozinha). Temos um papel muito importante, enquanto consumidores, e este é trazer para casa esses restos e comê-los na refeição seguinte. Incentivo toda a gente a agir desta forma.