Militante número 2 do Chega, vereador em Sintra e rosto mais visível da oposição interna, Nuno Afonso admite pela primeira vez, em entrevista, que o seu tempo no partido estará perto do fim. “Há limites”, reconhece.
Tal como outros fundadores e críticos da liderança de André Ventura entrevistados pela VISÃO (ver texto à parte), o ainda dirigente nacional não marcará presença na V Convenção que, este fim de semana, decorre em Santarém. O seu afastamento é quase uma certeza, mas o antigo vice-presidente e ex-chefe de gabinete de Ventura na Assembleia da República recusa pactuar com “irregularidades” e participar em algo que, na sua opinião, “só servirá para encher o ego ao presidente.”.
Vai à convenção?
Provavelmente não. Por várias razões. Não aceito que o partido desrespeite os seus militantes de base. Agora que o Chega custa 10 milhões ao Estado e o presidente tem todas as despesas pagas, incluindo carro, portagens, estadias, motoristas, refeições e digestivos, já não precisa deles. Não aceito que lhes chame ratos e traidores, e que sejam perseguidos e ameaçados. As vozes discordantes são apupadas, ameaçadas e ofendidas, como me aconteceu no último conselho nacional. Quando não pode afastar a oposição interna, o André “compra-a” com assessorias, cargos ou lugares. Mas, mais tarde ou mais cedo, deixa toda a gente pelo caminho. Não sei se ele mudou ou sempre foi assim e agora é que se revelou, mas não é o político que eu achava que ele era. O André diz que Portugal ainda vai ser como a Venezuela, mas dentro do partido já é. O Chega tem muitas pessoas com valor, mas não há abertura da direção para aproveitá-las e debater ideias. O partido está fechado na bolha do presidente.
Tendo desafiado Ventura e sendo a face mais visível da oposição interna, não teme que a sua ausência da convenção seja vista como cobardia?
Não é cobardia, é inteligência. O André começou por anunciar uma convenção estatutária para corrigir as irregularidades à luz do último acórdão do Tribunal Constitucional. Depois percebeu que, segundo os estatutos antigos, que estão em vigor, necessitava de dois terços dos congressistas para aprovar fosse o que fosse. E não conseguiria. Por isso, decidiu fazer uma convenção eletiva. Impôs as suas regras num conselho nacional que não é legítimo, eliminou a oposição, e moldou o partido à sua maneira. O próprio partido reconheceu que os seus órgãos não têm legitimidade: tenho um e-mail do presidente da mesa da Convenção [Jorge Galveias] a confirmá-lo. Ora, se é assim, a reunião do conselho nacional de Castelo Branco, que definiu e aprovou o regulamento da convenção, também não tem. Os atropelos foram muitos: alteraram regras para participação de delegados no último dia para a entrega das listas, impossibilitaram o pagamento de quotas durante alguns dias, não cederam os cadernos eleitorais a candidatos incómodos, etc. O resultado só pode ser a impugnação, anulação e repetição da convenção.
Mas o líder até tem formação jurídica. Por que razão isto acontece?
Tudo o que André Ventura tem feito é irregular, e ele sabe-o, mas faz parte da estratégia. O TC demorará mais um ano ou dois a mandar repetir a convenção e, enquanto isso, ele aprova medidas autoritárias e garante o poder absoluto. Fizeram-se inúmeros conselhos nacionais, convenções e alterações estatutárias que valeram zero. Por isso, como a convenção será repetida, não vou gastar dinheiro e perder um fim de semana com a minha filha para participar em algo que só servirá para encher o ego ao presidente.
A situação do Chega ultrapassou os seus piores pesadelos?
Atenção: faz falta um partido conservador. Mas a forma leviana como Ventura aborda os temas e é desrespeitoso para com a Assembleia e os adversários impedem um debate sério sobre questões importantes como a imigração, os apoios às famílias e às forças de segurança. Um partido que ofende e desrespeita tudo e todos nunca conseguirá que se converse sobre as suas ideias e propostas. Tirando os gritos e o apontar do dedo, Ventura não conseguiu nada. Em Sintra, onde sou vereador, consigo aprovar muitas coisas que levo às reuniões de câmara, por exemplo. Mas a postura do Chega na Assembleia é de um populismo vazio e bacoco. Não admito que um líder que, durante 4 anos, pediu mais liberdade e democracia, se assuma agora como fiscalizador e até queira saber em que é que os portugueses gastam o dinheiro.
O Chega é, afinal, o “sistema”?
Sem dúvida. O André critica António Costa em muitas coisas, e com razão, mas tem feito o mesmo. O amiguismo é prática corrente no partido. Além disso, castiga, persegue e afasta todos os que possam fazer-lhe oposição. Expulsou o José Dias, fundador, por delito de opinião. E o partido continua a funcionar de forma ilegal e inconstitucional. As limitações à participação democrática no Chega violam a lei dos partidos. A deriva ideológica e as violações jurídicas fizeram do Chega um partido do sistema igual aos outros.
Em que assenta o poder de Ventura?
Numa liderança totalitária. A direção não serve para nada, ele decide tudo. Decidiu os candidatos a deputados e assumiu publicamente que não escolheu os melhores para o País, mas os que lhe eram mais fiéis. Depois, a degradação da vida interna está à vista: temos deputados que agridem colegas, parlamentares que ofendem outros deputados, um assessor que ameaça jornalistas, outro que fotografa os computadores dos repórteres e ouve as suas conversas, um eleito que ameaçou um assessor de outro partido, um deputado que supostamente agrediu um militante do Chega dentro da Assembleia…Não me revejo nisto. Estar na política implica honra, respeito e responsabilidade. Não quero estar ligado a este tipo de comportamentos.
Mas o Chega é o partido que mais sobe nas sondagens. Como explica isso?
A maioria dos eleitores do Chega não entende o que se passa dentro do partido. Se soubessem o líder autoritário que Ventura se revelou, percebiam o que pode acontecer ao País se alguma vez este homem chegar ao poder. Apesar disso, não acredito que um partido marcadamente personalista e populista atinja os 12 % que lhe dão as sondagens. Mas a conjuntura política é favorável a partidos antissistema e de protesto: todos os dias surgem casos polémicos ligados ao PS e até ao PSD e isso contribui para a revolta popular, embora seja mais demérito dos outros e do clima de impunidade do que mérito do partido. As pessoas não confiam na generalidade dos políticos, mas quando ouvem o discurso simples do André, com algumas verdades, não querem saber se há convicções ou ideologia. Mas a culpa também é do PSD: Luís Montenegro não faz oposição a sério.
Que País teríamos com Ventura no poder ou, pelo menos, a partilhá-lo?
Espero que o PSD não cometa o erro que cometeu nos Açores: aliar-se ao Chega para afastar o PS do poder. Deve deixar ao Chega a decisão de saber se quer manter o PS no poder ou não. Ventura manda castigar, perseguir e expulsar os militantes que o contrariam. Agora imaginem-no à frente do País…
O Chega tem futuro sem André Ventura?
Tudo foi montado para o partido depender exclusivamente dele, lamento ter percebido tarde. Ele decide tudo e não existe partido sem ele. É difícil refundar um partido que está assente na vontade de uma pessoa.
Como vê o seu futuro político?
Tenho família, amigos, trabalho. Até fundar o Chega, nunca tive problemas com a justiça ou com a lei. Ouço rumores preocupantes sobre investigações ao líder e figuras que o rodeiam e não quero o meu nome envolvido nisso. Estou na política de forma séria, não para aquilo em que o André transformou o Chega. Mantenho-me vereador em Sintra, apesar de a direção me ter retirado a confiança política com base em falsidades, mentiras e difamações públicas. Sou militante, não sou independente. Mas admito que isso possa alterar-se a curto prazo.
Dando como adquirido que será afastado da direção na convenção deste fim de semana, vai esperar que o expulsem ou sairá pelo próprio pé?
Duvido que o André tenha coragem para expulsar-me. Daria uma imagem de cobardia, pois afastaria a única pessoa disposta a enfrentá-lo se as regras forem democráticas. Gostava muito de debater com ele em público, mas ele não tem coragem. Portanto, estou mais para sair pelo meu próprio pé. Continuar militante, neste momento, até me prejudica profissionalmente: já tive duas oportunidades de emprego e disseram-me que teria de me desvincular do Chega. Continuo fiel às pessoas que me pedem para não desistir, mas há limites.
Santarém: extrema-direita em peso. Todos os líderes e dirigentes dos principais partidos e movimentos de direita radical populista e de extrema-direita europeus – alguns com vínculos neonazis, como a AfD (Alternativa para a Alemanha) – estarão presentes e farão ouvir a sua voz ao final da tarde de domingo, 29, último dia da convenção do Chega, conforme confirmou o gabinete de comunicação do Chega à VISÃO. Da lista de convidados estrangeiros com direito a intervenções de 5 minutos, no palco do CNEMA, em Santarém, fazem parte Rocío Monasterio (presidente do VOX da Comunidade de Madrid, Espanha), Kinga Gál (vice-presidente do Fidesz, da Hungria), Tino Chrupalla (Presidente da AfD, da Alemanha), Cláudiu Tarziu (Presidente da Aliança para a União dos Romenos, AUR, da Roménia), Boris Kollar (presidente do Nós Somos Família, SME Rodina, da Eslováquia), Tom van Grieken (presidente do Vlaams Belang, da Flandres, região flamenga da Bélgica), Geert Wilders (presidente do VVD, Partido para a Liberdade, dos Países Baixos) e Jordan Bardella – Presidente da Rassemblement National, de França). Com as sondagens a entusiasmar o partido e a oposição interna praticamente “varrida” do conclave pelo facto de, desde logo, ter sido eliminado o método de Hondt na eleição de delegados, André Ventura tem entronização e aclamação garantidas. O resto é com o Tribunal Constitucional, onde já moram vários pedidos de impugnação desta convenção.