Mas que raio de título é este?”, pergunta, e bem, o leitor. A resposta é “um título encriptado”. “Mas assim não se percebe nada”, responde, novamente bem, o leitor. É justamente aí que quero chegar: a encriptação, uma funcionalidade de segurança e privacidade que já damos como garantida e que tanto apreciamos, está a sofrer um dos maiores desafios da sua existência – e atenção que já há registos de a criptografia ser usada pela civilização egípcia há quase quatro mil anos. E nem me refiro ao fim da criptografia moderna às mãos da computação quântica, aquela que resolverá em apenas alguns segundos ou minutos tarefas matemáticas que os supercomputadores mais avançados da atualidade demorariam milhares de anos a resolver, pois neste patamar já está a ser criada a criptografia quântica, robusta até contra essa tipologia de máquinas.
O grande desafio vem, a meu ver, da pressão do lado político, da segurança nacional e da segurança pública. Altos representantes políticos do Reino Unido, dos EUA e da Austrália já pediram publicamente ao Facebook que não prossiga “com os planos para implementar encriptação ponto-a-ponto nos serviços de mensagens sem assegurar que não há uma redução da segurança dos utilizadores e sem incluir formas para um acesso legal ao conteúdo das comunicações para proteger os nossos cidadãos”.
Dito assim parece um pedido inocente, mas na minha opinião é um pedido contraditório. Do ponto de vista puramente tecnológico não há volta a dar: “Encriptação com backdoor não é uma encriptação”. A frase não é minha, é de Stephan Micklitz, líder de engenharia para a área da privacidade da Google, uma das pessoas mais influentes numa das maiores empresas do mundo no tema da privacidade e que tive a oportunidade de entrevistar no final de 2019.
“Não vamos criar uma backdoor. Não podes dar acesso aos bons sem dar aos maus”, disse-me também Jay Sullivan, por alturas da Web Summit, naquela que é uma frase que não deixa margens para dúvidas. Aos poucos temos assistido a cada vez mais batalhas pela questão da encriptação – o FBI tem pressionado a Apple a dar acesso à informação de alguns iPhone, mesmo quando há registos de que as forças de investigação não precisam da Apple para conseguirem aceder aos smartphones.
Um dos argumentos que tem sido usado por quem pede o enfraquecimento dos mecanismos de encriptação em plataformas de comunicação é fortíssimo: vidas de pessoas, e em específico de crianças, estão em risco por as autoridades muitas vezes já não conseguirem ter acesso ao conteúdo das mensagens. Os dados dão base a este argumento: 90% das denúncias de pornografia infantil que chegaram ao Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Crianças Exploradas dos EUA, em 2018, tiveram origem no Facebook. Foi justamente no Encontro dos Grupos de Especialistas em Crimes Contra Crianças, realizado no ano passado pela Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol), em Paris (França), que o Departamento Federal de Investigação dos EUA (FBI na sigla em inglês) preparou um projeto de resolução, no qual pedia o enfraquecimento dos mecanismos de encriptação e quase atribuía a culpa da exploração de crianças às grandes tecnológicas. O objetivo? Receber o apoio público da Interpol na luta contra a encriptação, o que seria uma grande vitória – mas algo que acabou por não acontecer.
Para ter uma ideia de como se sentem as forças de segurança perante um conteúdo encriptado, basta olhar para o título: não sabe, e talvez nunca venha a saber, o que é que lá realmente está escrito. Podia revelar, aqui ou no final do texto, mas manter o jogo acho que tem mais impacto também para fazer o leitor pensar no tema. Mas o argumento de quem está pela encriptação também é fortíssimo: não é justo expor a segurança e a privacidade de milhares de milhões de utilizadores, que também ficariam automaticamente em risco de se tornarem vítimas de crimes horríveis. Basta olhar para países não democráticos para percebermos que à primeira oportunidade há opositores do sistema, jornalistas, executivos, dissidentes e outras pessoas – basta pensar no exemplo do homem mais rico do mundo, Jeff Bezos – que são espiados assim que há uma brecha em ferramentas online que permita colocar em causa a sua privacidade. A luta pelo direito à encriptação ainda parece estar em modo de cordialidade, no sentido em que ambas os lados da barricada vão trocando galhardetes suaves por forma a mostrarem à oposição que estão firmes nas respetivas posições. Mas quando a tensão entre as partes escalar, estamos preparados para dar uma resposta rápida e firme sobre o caminho que queremos seguir?
Eu estou do lado da encriptação. À medida que vivemos num mundo que “vigia” cada vez mais as pessoas e que só tem tendência a piorar, garantir que as comunicações entre pessoas não podem ser bisbilhotadas por poderes alheios pode muito bem ser o nosso último bastião de privacidade. Sim, podem saber onde estou, que aplicações uso, o que quero comprar e até a pornografia que vejo, mas dá-me descanso saber que não sabem aquilo que estou a dizer.