A Atomico é uma das principais empresas de capital de risco da Europa – gere mais de cinco mil milhões de dólares em ativos – e nos últimos sete anos tem lançado um relatório que funciona como uma radiografia sobre as startups e os ecossistemas europeus de empreendedorismo. O documento é uma referência no meio, sobretudo para investidores. A mais recente edição do Estado das Tecnológicas Europeias (State of the European Tech, no original em inglês) conta com mais de cinco mil respostas de fundadores, investidores, membros de startups e scaleups europeias (funcionários e executivos), consultores, investigadores, políticos e também jornalistas. E se muitas vezes se ouve a comparação de que Lisboa é a nova Berlim ou até um Silicon Valley na Europa, a imagem da cidade e de Portugal no relatório mostram uma realidade muito distinta. Mas essa realidade também é muito influenciada, pela negativa, pelo timing do relatório e pelo próprio contexto do ecossistema português de empreendedorismo. Explicamos porquê.
Portugal é o 21º (num total de 39 países; dados até setembro) no número de startups per capita – existem cerca de 208 startups por milhão de habitantes, abaixo da média europeia que é de 268 startups por milhão de habitantes. O líder deste ranking é a Estónia, com uma média de 1107 startups por milhão de pessoas.
Portugal é o 23º país (de um total de 45, dados até setembro) no valor cumulativo de capital de investimento recebido entre 2017 e 2021, acumulando 441 milhões de dólares em financiamento. Nesta área de análise, o Reino Unido é líder destacado com quase 75 mil milhões de dólares conseguidos em investimento, seguido de muito longe pelo segundo classificado, a Alemanha, com 32 mil milhões de dólares. Já no que diz respeito ao valor cumulativo de capital de investimento recebido entre 2017 e 2021, per capita, Portugal surge na 24ª posição (de 38 países, dados de setembro), com uma média de 43 dólares investidos por habitante, quando a média europeia é de 269 dólares.
Segundo o relatório da Atomico, as startups portuguesas conseguiram 91 milhões de dólares em investimento no ano de 2021 (dados até setembro), o que até é menos do que os 109 milhões de dólares conseguidos em 2020 e os 142 milhões conseguidos em 2019.
No ranking dos países europeus com empresas tecnológicas avaliadas em mais de mil milhões de dólares, os chamados unicórnios, Portugal aparece na 18ª posição (num total de 28 países, dados de novembro), com duas empresas. O Reino Unido lidera, com 100 unicórnios, seguido da Alemanha, com 51 unicórnios. Já na lista de cidades europeias com mais empresas unicórnio per capita, Lisboa aparece em 13º lugar, num total de 14 cidades que têm, pelo menos, dois unicórnios.
Já noutras listagens, Portugal nem sequer aparece: está fora do top 20 de centros europeus por capital de investimento recebido (dados até setembro); e também não consta na lista de países com maior valorização de mercado em tecnologia, que tem por base a sede das empresas, numa variação analisada entre 2020 e 2021.
Há, sim, uma área na qual Portugal aparece em grande destaque e pela positiva: tem duas startups (Talkdesk, em 6º lugar; Outsystems, em 8º lugar) no top 10 das empresas privadas avaliadas em mais de mil milhões de dólares e com investimento de empresas de capital de risco.
O que se passa, afinal, com os números do país que neste ano se afirmou como a nação dos unicórnios?
É preciso arregaçar as mangas
Sarah Guemouri é coautora do relatório deste ano da Atomico e a especialista em dados de mercado da empresa capital de risco europeia. “As conclusões [do relatório] são uma boa forma de ter a comunidade tecnológica europeia a interagir relativamente a alguns pontos que são destacados pelos dados, mas também de educar e informar os diferentes participantes – fundadores, investidores e políticos”, começa por explicar à Exame Informática, em entrevista por videochamada, sobre o resumo anual que a Atomico faz do ecossistema europeu de tecnologia, startups e empreendedorismo.
Mas é preciso entender algumas especificidades sobre o relatório, Lisboa e Portugal para perceber o contexto de alguns dos números acima citados. Para começar, a maioria dos dados do relatório são até setembro deste ano. Acontece que depois de setembro, Portugal teve alguns acontecimentos de relevo em termos de startups e empreendedorismo. Por exemplo, a Sword Health conseguiu uma ronda de investimento de 189 milhões de euros, alcançando o estatuto de unicórnio, mas estes dados já não contam para o relatório da Atomico de 2021, só serão refletidos nos de 2022. Segundo a plataforma Dealroom, só desde setembro que startups sediadas em Portugal conseguiram cerca de 245 milhões de euros em investimento.
E apesar de Portugal já ter sete unicórnios de ADN português (2 dos quais, Sword Health e Anchorage, alcançaram o estatuto também só depois de setembro), o relatório da Atomico só contabiliza dois unicórnios portugueses. Porquê? “Penso que a lista dos unicórnios é um dos conjuntos de dados mais traiçoeiros de montar, porque existem muitos casos nos quais os fundadores são de Portugal e até tiveram a ideia em Portugal, mas depois tiveram de se mudar, porque foram à procura de capital, queriam estar mais próximos dos investidores, seja lá qual for a razão. E depois estabeleceram as sedes noutros sítios. Para nós, isso não será considerado como Portugal, porque não foi desenvolvido ou construído a partir de Portugal, mas é sempre uma linha ténue de como defines isso”.
Remote (cofundada por Marcelo Lebre, nos EUA) e Anchorage (cofundada por Diogo Mónico, nos EUA) são dois exemplos de unicórnios de ADN português que não entram no ‘totobola’ da Atomico. E há empresas, como a Farfetch, cuja sede principal não é em Portugal – um tema que o Jornal de Negócios detalha inclusive na edição desta segunda-feira. E isso também ajuda a explicar a grande diferença entre o nível de capital conseguido pelas empresas portuguesas no relatório da Atomico (91 milhões) e apenas o valor conseguido por unicórnios de ADN português só neste ano (1,1 mil milhões de euros, segundo o Dinheiro Vivo).
Se estas circunstâncias não pintam a imagem total de Portugal enquanto país de startups e empreendedores, os resultados também têm justificações mais estruturais. Apesar de reconhecer Lisboa como um dos centros tecnológicos mais em voga na Europa – algo que é notório no capítulo dedicado aos recursos humanos, no qual Portugal aparece como o segundo país com o maior crescimento (41%) no número de pesquisas de trabalho tecnológico –, ainda é preciso fazer mais. “O que continuamos a ver, ano após ano, é que a cidade de Lisboa está a destacar-se e também tem sido capaz de atrair mais capital, mas mais importante, tem sido capaz de atrair talento e empresas. Se olharmos para o artigo aprofundado sobre talento e pensarmos em como isso pode impactar o futuro de Portugal, penso que é encorajador”, sublinha a porta-voz da Atomico. Além disso, a capital e o País ainda são pontos de atração recentes, ou seja, ainda estão a amadurecer e não conseguem, para já, competir de igual com outros centros tecnológicos estabelecidos há já largos anos (como são exemplos Berlim ou Paris).
Sarah Guemouri considera, no entanto, que “Portugal ainda está abaixo das suas capacidades” na captação de investimento para startups. E há duas grandes áreas nas quais pode e precisa de melhorar, se tem aspirações a ser uma das grandes capitais tecnológicas da Europa: atrair mais investimento; e atrair ainda mais pessoas de áreas tecnológicas.
“Os governos podem fazer mais e podem colocar em prática políticas mais amigáveis a encorajar que mais pessoas vão para Portugal para trabalhar em tecnologia”, adianta. “Mas também deveria ser investido mais capital no país, seja para tentar fixar uma maior rede de investidores ou ser capaz de atrair mais capital de agências governamentais, há muito que pode ser feito para tentar desenvolver o fôlego do talento e dos investidores”.
Apesar de ter batido o recorde de investimento captado num único ano, de ter mais startups e fundadores unicórnios, Lisboa e Portugal não devem ser vistos de forma isolada, mas sim como parte integrante de um ecossistema europeu e no qual há muitos outros países a dar cartas no empreendedorismo. Ou seja, o país não deve ficar à sombra da fama que criou, mas sim reforçar a aposta na área tecnológica e sobretudo nas jovens empresas, setor que começa agora a dar os seus frutos. Ou como diz Sarah Sarah Guemouri, “existe ainda muito para ser feito em Portugal”.