Tivemos o céu azul de inverno, a luz de Lisboa, o Tejo mesmo ali, colado à esplanada do restaurante Darwin, e o brilhantismo do entrevistado. E ainda um sabor agridoce de quem goza os últimos momentos de liberdade na tarde anterior ao início do atual período de confinamento. O que afeta toda a nossa perceção do tempo, como explica o neurocientista da Fundação Champalimaud Joe Paton, numa conversa que começou no cérebro, passou pela Inteligência Artificial, para voltar novamente àquela que continua a ser, de longe, a mais sofisticada das máquinas.
Diz-se que quando a pandemia passar não vamos reter memórias muito precisas do que vivemos durante este período. Qual é a razão para isto acontecer?
Tendemos a pensar no cérebro como um gravador, mas não é assim que funciona. Estamos constantemente a receber informação, demasiada informação, para o cérebro conseguir processá-la por inteiro. Por isso, o que o cérebro faz é escolher o conteúdo informativo, o que é importante para o nosso comportamento. E uma das coisas relativamente à pandemia é que estamos a ser sujeitos a sucessivas situações repetitivas, uma e outra vez: estamos fechados em casa, estamos sempre a fazer a mesma coisa, numa rotina que não se altera, todos os dias. É tudo igual. O que não tem muito interesse do ponto de vista informativo.
Não acrescenta nada ao cérebro?
Exato. Não há nada de novo. Uma das razões por que se diz que não vamos ter grandes memórias deste período é porque estamos a passar por vivências monótonas, em que as coisas mudam muito. Não estamos a formar novas memórias. Cada dia é uma repetição do dia anterior.
O cérebro está aborrecido, é isso?
É uma forma de ver a questão. O nosso cérebro está sintonizado para detetar a mudança, a todos os níveis. O cérebro só retém o que é importante. E isto acontece também para a visão. A informação adquirida é apenas aquela que está mesmo à frente dos nossos olhos, para tudo o resto há mecanismos de preenchimento. Por exemplo, sabemos à partida que o céu é azul. O olho é muito sensível ao movimento e há detetores de movimento muito sensíveis, que fornecem pistas acerca da mudança.
E que papel tem a passagem do tempo na formação das memórias?
O tempo é uma dimensão fundamental para tudo o que acontece no mundo. Para criar uma memória construímos uma narrativa, os acontecimentos surgem com uma certa ordem cronológica, portanto, o tempo é importante para a construção desta narrativa. E também para o estabelecimento de uma relação de causa/efeito. O fator tempo ajuda a determinar se entre dois eventos há uma relação de causa/efeito.
Há algo em comum entre o processo de aprendizagem do cérebro humano e o dos computadores?
Há coisas que são muito parecidas e outras completamente diferentes. Por exemplo, a questão do tempo. O computador tem um relógio digital, portanto tem uma noção praticamente perfeita do tempo, até uma certa resolução. Nós não temos um relógio digital, portanto o nosso processo de perceção do tempo é bastante mais complexo.
Para a aprendizagem, a recompensa é essencial, é uma forma de a estimular. Os computadores não têm esta componente.
Depende do computador de que estamos a falar. Quando treinamos algoritmos de machine learning para fazer uma determinada coisa, fornecemos sinais para o ensinar, que poderemos chamar de recompensa. Por exemplo no reconhecimento facial. Quando estamos a treinar uma rede para o reconhecimento facial mostramos muitas imagens diferentes e podemos perguntar a cada momento: esta imagem é da mesma pessoa ou de outra diferente? Se for a mesma e o algoritmo acertar, dizemos ‘bom’, o que é uma recompensa. Se o algoritmo disser que não é a mesma, castigamo-lo. Dependendo do que fazemos, estamos a fornecer recompensas, ou não. Quando falamos em inteligência artificial geral, como a IA que é capaz de fazer o que os humanos fazem, aí temos de desenhar a nossa função de recompensa. Num robô, por exemplo, o que queremos que ele faça? Que se recarregue sozinho. Então a nossa função de recompensa estará relacionada com isso. E aí ele pode aprender um determinado comportamento que maximize esta recompensa. Portanto, não, o seu computador de secretária não tem um sistema de recompensa incorporado. Mas se estivermos a falar de sistemas como os de robôs humanóides, aí sim, temos de falar em sistemas de recompensa.
Quanto dos sistemas de IA passam pela imitação do cérebro humano?
Na verdade, só uma pequena parte da IA é que está dedicada a imitar o que faz o cérebro humano. A maior parte da IA tem a ver com a resolução de problemas muito específicos. E aqui o importante não é funcionar como o cérebro humano. É atingir determinados objetivos. Ser melhor a classificar, fazer melhores previsões. Ou seja, grande parte da IA não está preocupada com o que faz o cérebro humano. E isso é na verdade uma das questões que nos preocupa aqui. Podemos ter resultados muito melhores se tornarmos a IA menos artificial e por isso, no meu laboratório, estamos a tentar integrar aquilo que sabemos sobre a forma como o cérebro funciona na próxima geração de algoritmos de inteligência artificial.
Como vê as emoções no processo de tomada de decisão? São um empecilho ou pode ser vantajoso um sistema de IA incluir emoções no processo de resolução dos problemas?
Penso que depende daquilo que queremos extrair do sistema de IA. As emoções evoluíram porque são benéficas para nós, como espécie. Somos seres sociais e as emoções representam uma forma de comunicação, ajudam-nos a criar laços. Claramente não são um empecilho para um bom comportamento. Mas é preciso ter em conta o ambiente em que este comportamento se formou. Boa parte da IA está focada em objetivos muito específicos e neste contexto não queremos as emoções a atrapalhar, ou de outro modo, não queremos vieses. Mas é um erro assumir que pelo facto de não termos emoção no sistema não temos vieses. Todas estas abordagens envolvem grandes quantidades de dados, dependem disso. Todos estes dados decorrem de atividade humana e os humanos são parciais. E isto é um problema potencial porque supostamente temos um método objetivo de tomada de decisão que, no entanto, foi treinado com base em dados escritos em avaliações subjetivas. Ou seja, não temos algo objetivo, mas um sistema que reproduz todos os vieses que queríamos evitar.
Mas o viés vem dos humanos, ou seja, foi embutida no sistema?
Exato! Não temos um sistema de IA geral, que aprenda da mesma forma que uma criança absorve o mundo. Isto ainda não acontece. O que temos é certos métodos que funcionam muito bem, a resolver certas tarefas, se lhes fornecermos dados suficientes. E durante sistema de treino tomam-se muitas decisões, como as relativas ao tipo de dados fornecidos. Por exemplo, na análise de currículos. Muitas empresas estão a usar IA para recrutamento. E como é que estes sistemas são treinados? É com CVs de pessoas que passaram a ser trabalhadores. Mas a avaliação relativa ao sucesso está sujeita a vieses humanos. Em decisão clínica, pegamos nos resultados de ensaios clínicos, que são eles próprios enviesados para uma determinada população. No futuro vamos precisar de muita curadoria por parte dos humanos, temos de manter o cuidado e verificar se estamos perante um sistema verdadeiramente objetivo.
Qual a principal diferença entre um sistema de IA e o cérebro humano?
Uma das características principais da inteligência natural é a sua flexibilidade. Podemos aprender uma coisa num contexto e depois generalizar. Isto é extremamente poderoso e a maior parte da IA não faz isso. Um exemplo clássico são os veículos autónomos. Estamos a treinar um sistema de reconhecimento visual para identificar os sinais que vão surgindo, a partir do input de várias câmeras. Pequenas alterações na luminosidade, a queda de neve, tudo isto vai comprometer bastante o sistema visual, enquanto a visão humana continua a funcionar muito bem, adaptando-se às alterações. A maior parte dos algoritmos não tem esta flexibilidade. Outro exemplo, aplicando machine learning à análise de ressonâncias magnéticas. Nem todos os dados têm o mesmo formato, dependem das máquinas, das empresas. Enquanto um médico facilmente salta e interpreta imagens produzidas por equipamentos diferentes, os sistemas de IA têm muito mais dificuldade. Falta a tal flexibilidade.
Como vê a mistura de inteligência natural com artificial, ficará na ficção ou será realidade?
Bem, a verdade é que já está a acontecer. Temos os implantes cocleares, os dispositivos de estimulação para Parkinson. Ou seja, já há vários exemplos. Agora, em termos de aumento de capacidade, em indivíduos saudáveis, penso que vai existir uma forte limitação, não irá acontecer com tanta facilidade, porque implica implantar, dentro do corpo, um objeto estranho e isto é um procedimento médico arriscado. Ou iremos recorrer aos implantes para resolver problemas médicos sérios ou então para que seja generalizado temos de resolver antes as potenciais complicações como infeções, hemorragias. O mais provável é virmos a utilizar dispositivos externos ao nosso cérebro e com os quais aprenderemos a trabalhar.
Também há quem planeie guardar toda a informação que tem no cérebro, para de certa forma fintar a mortalidade. Acredita que venha a ser possível?
Façamos uma comparação simples: um computador moderno tem cerca de 50 a cem mil milhões de transístores na CPU. No cérebro humano há centenas de milhares de milhões de neurónios. Seriam precisos cerca de dez a 20 mil transístores para modelar apenas uma parte de um neurónio, que é uma estrutura tri-dimensional complicada, com capacidade de estabelecer umas dez mil sinapases. Estamos ainda muito longe de conseguir simular toda esta complexidade com a tecnologia de transístores disponível atualmente. E mesmo que conseguíssemos, como iríamos aceder a toda esta informação? É uma ideia gira, mas ainda não estamos nem perto de a conseguir tornar em realidade.
E com a entrada em cena da computação quântica?
Certo! É por isso que me referi à atual capacidade de processamento. Mesmo assim, penso que um modelo perfeito e completo de um indivíduo será muito difícil de atingir. Algo com tendências semelhantes, que capte as diferentes personalidades de um ser humano, isso acredito que venha a ser possível. Sempre tendo em conta apenas uma fração de um indivíduo. Dificilmente conseguiremos reproduzir o indivíduo completo. Mas assumo que possa não ser suficientemente imaginativo (risos).