290,4 mil milhões de euros: foi este o volume de negócio gerado pela indústria aeroespacial e de defesa da Europa em 2023. Os mais recentes dados da Associação das Indústrias Aeroespaciais, de Segurança e de Defesa da Europa (ASD Europe), na sigla em inglês, apontam para um crescimento de 10,1%, num setor que corresponde agora a uma ‘fatia’ de 24,6% do mercado global. O número de empregos gerados também acompanhou esta tendência, crescendo 8% face a 2022, para mais de um milhão de trabalhadores, com 76 mil a corresponderem a novos postos de trabalho.
Num panorama marcado por conflitos e tensões geopolíticas, problemas nas cadeias de abastecimento, além de desafios estruturais, onde se incluem a dependência de fornecedores externos e a escassez de mão de obra qualificada, a indústria tem demonstrado a sua resiliência e capacidade de adaptação.
É neste ecossistema dinâmico onde Portugal também se tem vindo a afirmar, com passos significativos ao longo dos últimos anos. “Em 2010 tínhamos um índice de exportação muito ténue a nível nacional”, explica José Neves, Presidente do AED Cluster Portugal, à Exame Informática. Como realça o responsável do cluster português para as indústrias de Aeronáutica, Espaço e Defesa, que nasceu em 2017 com a fusão das três associações que representavam cada um destes setores, “neste momento, o sector já representa 2,1 mil milhões de euros de faturação anual, 20 mil postos de trabalho e mais de 150 entidades”, com uma taxa de exportação na ordem dos 92%.
São várias as ‘engrenagens’ que se movem para alavancar este crescimento. José Neves destaca a capacidade de formação, em particular, com o crescimento da oferta de cursos na área da Engenharia Aeroespacial no Ensino Superior. Depois das Universidades do Minho e de Aveiro se juntarem às de Lisboa nesta área científica, este ano, chegou a vez da Universidade do Porto abrir a sua primeira licenciatura em Engenharia Aeroespacial.
Mas a capacidade de formação também se estende a outra área, “a capacitação de profissionais para trabalhar em chão de fábrica”, ou seja, de pessoas com certificação aeronáutica para trabalhar em fábricas que produzem peças e estruturas aeronáuticas, algo importante para atrair o investimento de empresas estrangeiras à semelhança da francesa Airbus, da brasileira Embraer ou da espanhola Aernnova, que têm vindo a investir no país ao longo dos últimos anos. Esta capacitação reveste-se ainda de grande relevância para reforçar as capacidades de desenvolvimento das empresas portuguesas deste setor, detalha José Neves.
A proximidade com a Europa é outro dos fatores que tem motivado o crescimento. “Na realidade pós-COVID há mais empresas internacionais a investir em Portugal porque verificaram que, com a quebra das cadeias de fornecimento, a proximidade é um fator importante”, indica.
“Sendo um país com capacidade, com formação e elevados níveis de certificação nas empresas portuguesas, Portugal tem todos os ‘checks’ para o investimento internacional.”
— José Neves, Presidente do AED Cluster Portugal
No que toca à componente nacional de crescimento orgânico, o responsável afirma que “tem havido uma estratégia nacional suportada por diferentes governos”, à qual se juntam, por exemplo, iniciativas como o roteiro elaborado pelo AED Cluster para o sector aeronáutico, assim como os esforços reunidos para envolver todos os stakeholders relevantes.
“E quando olhamos para o segmento aeroespacial também temos que falar com um ator muito importante a nível institucional que é o setor da defesa”, afirma José Neves, apontando para as Forças Armadas como um ator com ‘peso’ relevante para o crescimento do AED Cluster. Nesse sentido, o “diálogo próximo” serve, muitas vezes, de base para o desenvolvimento de projetos “em que as Forças Armadas poderão ser o primeiro cliente”.
Em destaque estão projetos em desenvolvimento como o drone ARX da Tekever, a aeronave LUS 222 da EEA Aircraft, além dos equipamentos, sistemas e satélites que estão em produção por parte de outras empresas nacionais para observação da Terra e para comunicações.
Num setor em que os investimentos são enormes, a colaboração assume um carácter fulcral. Veja-se o caso do projeto FLY.PT, desenvolvido por um consórcio de 20 entidades liderado pela Tekever. Com o objetivo de criar o protótipo de um sistema de transporte aéreo pessoal à escala, constituído por um veículo autónomo aéreo e por um veículo autónomo automóvel – numa espécie de ‘táxi voador’ com um sistema intermodal – a iniciativa conta com um investimento de 10 milhões de euros, algo que, como aponta José Neves, não seria possível sem a junção de todas estas entidades para mobilizar o projeto.
Veja mais sobre o FLY.PT no vídeo
“O papel do AED Cluster é de colocar as entidades a falarem umas com as outras a nível não só da indústria e do sistema científico e tecnológico, como também com os atores institucionais, como o Governo ou com as autoridades regulatórias”, realça. “Todos, num conjunto, verificam que podem sair a ganhar”.
O papel de Portugal no Espaço
A cooperação entre entidades, estabelecendo uma ‘ponte’ entre Portugal e a Europa, afirma-se como um dos principais fatores que impulsionaram o desenvolvimento da indústria espacial no nosso país. “O nosso crescimento deveu-se essencialmente à entrada na Agência Espacial Europeia [ESA]”, conta Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa, à Exame Informática. “Por uma razão muito simples: porque foi uma forma de Portugal reservar um budget para este sector”, defende.
Com um orçamento específico numa organização internacional como a ESA, tal permitiu reinvestir em contratos da indústria e projetos de investigação, explica o responsável. “Ou seja, era como se fosse uma política espacial conduzida de fora para dentro”. Recorde-se que Portugal juntou-se oficialmente à ESA a 14 de novembro de 2000, afirmando-se como o 15º Estado-Membro da agência espacial. “Foi a partir daí que Portugal foi qualificando e aparecendo com novas empresas, novas indústrias e novos projetos”.
De zero empresas passou-se para um ecossistema de 80 entidades, entre empresas, institutos de investigação e universidades. “Mas isto deve-se ao investimento público que foi feito”, afirma Ricardo Conde. Embora o investimento privado seja importante, “porque dá uma perspetiva daquilo que é, traz uma certa realidade e um certo pragmatismo para quem quer desenvolver e para quem se posiciona na parte da New Space Economy”, em 2023, situava-se na ordem dos 7%.
“Nós temos de olhar para este setor sempre com uma perspetiva estratégia. Se nós olharmos para aquilo que foi a aposta de Portugal nestes anos, o investimento público foi o que permitiu e o que será o pilar para Portugal ter uma capacidade, uma resposta daquilo que é hoje não só o que se chama a nova economia de Espaço, mas também capacitação nacional em várias áreas.”
— Ricardo Conde, Presidente da Agência Espacial Portuguesa
O setor espacial internacional é não só altamente competitivo, como complexo, numa espécie de “um novo mundo admirável, impulsionado por tecnologia, ambição geopolítica e também pela parte comercial”, nas palavras de Ricardo Conde. Mas num panorama marcado por uma nova corrida ao Espaço, projetos e ideias ambiciosas para dinamizar uma futura economia espacial e receios associados à militarização do Espaço, qual é o papel de Portugal?
“Temos de perceber quem é que nós somos e que Portugal é que temos. Portugal, por exemplo, tem uma extensão territorial enorme. Temos responsabilidade sobre isso. Podemos, através dessa extensão territorial, ter um papel no Espaço? Penso que sim”. A par do potencial para o país de termos “verdadeiramente uma economia digital a funcionar através do Espaço”, a dimensão da ida e retorno apresenta-se como uma oportunidade para um país como o nosso fazer a diferença.
“Nesta economia espacial, cada vez mais vai ser possível – e cada vez mais vai ser um objetivo – termos reutilização. Então nas nossas zonas geográficas, nas nossas ilhas em particular, nós não temos condições para, pelo menos, ambicionar ter um nó, um hub, de retorno do Espaço? Ou de acesso ao Espaço? São estas pequenas coisas onde nós temos de nos concentrar: é onde está a nossa diferença”, defende. É com esta ambição que a Agência Espacial Portuguesa olha para aquele que será o futuro porto espacial de Santa Maria, localizado nos Açores, permitindo dotar a Europa de uma capacidade que ainda não tem e que poderá ser diferenciadora.
Em agosto deste ano foi assinado um novo protocolo de cooperação entre o Atlantic SpacePort Consortium e a NAV Portugal. O consórcio, constituído em 2020 pelas empresas Ilex Space e Optimal Structural Solutions, e ‘incubado’ no ESA Space Solutions Portugal, tem como objetivo desenvolver o porto espacial açoriano. Já em setembro, foram realizados os primeiros lançamentos de foguetões atmosféricos a partir do futuro porto.
Santa Maria será também o local de aterragem do voo inaugural do Space Rider, uma possibilidade que já se ponderava desde fevereiro e que foi recentemente confirmada por Stefano Bianchi, diretor de voo da ESA, durante a inauguração da sede da Agência Espacial Portuguesa em Vila do Porto, na ilha açoriana.
Com lançamento previsto para 2027, o Space Rider é um veículo orbital que, durante uma ‘viagem’ de cerca de dois meses, será usado como plataforma de testes e experiências científicas em órbita, contando com capacidade de retorno e de reutilização.
O projeto ainda está em desenvolvimento e, como aponta o presidente da Agência Espacial Portuguesa, “não sabemos realmente como é que o futuro vai evoluir em termos de tecnologia, mas há uma coisa que nós sabemos”. “Sabemos que nós não podemos ter o mesmo modelo de acesso e retorno do Espaço que tínhamos no passado”, motivo que, na sua visão, sustenta a ambição para tornar Santa Maria num hub europeu de retorno do Espaço.
Visão de futuro
2024 foi um ano ‘em cheio’ para o setor espacial no nosso país, marcando o regresso de satélites portugueses ao Espaço. 30 anos depois do lançamento do PoSat-1, chegou a vez do AEROS MH-1 rumar a bordo de um foguetão Falcon 9 em março. Meses depois do lançamento do satélite desenvolvido num projeto liderado pelo centro tecnológico Ceiia e pela Thales Edisoft, seguiu-se o do ISTSat-1, o primeiro nanossatélite universitário português, criado por estudantes e docentes do Instituto Superior Técnico. Este ano foi também apresentado o PoSat-2, o microssatélite desenvolvido pela LusoSpace, que, no futuro, fará parte de uma constelação de 12 satélites para monitorização do tráfego marítimo.
Por entre oportunidades, que vão além de satélites, também existem desafios. Aqui, Ricardo Conde aponta para questões como “escala, financiamento privado e foco”, assim como a “a ausência de um programa nacional” robusto.
É certo que há no nosso país uma estratégia espacial – chamada Portugal Espaço 2030 – que estabelece objetivos para o desenvolvimento do setor e que deu origem à Agência Espacial Portuguesa como organização criada pelo Governo para a implementar. No entanto, o responsável defende que a criação de um programa nacional, focado na ação e no desenvolvimento por parte da indústria, é fulcral. “Não há um país que não tenha ambição no setor espacial que não tenha um programa nacional”.
Numa perspetiva mais alargada, que contempla todo o setor aeroespacial, José Neves detalha que um dos desafios atuais passa por tornar Portugal num OEM (Original Equipment Manufacturer).
“Nos últimos 20 anos de crescimento tivemos empresas e entidades do sistema científico e tecnológico que só faziam pesquisa e desenvolvimento. Depois, caminhamos para um passo seguinte em que as empresas começaram a ser fornecedoras de grandes OEMs, portanto, entraram na supply chain do setor aeronáutico e espacial”, explica. O passo seguinte, mais desafiante, prevê a existência, em Portugal, “de empresas que façam a integração final do produto e que o coloquem no mercado”.
Entre as empresas que estão já a preparar esse caminho contam-se, por exemplo, a EEA Aircraft, a Tekever, a GeoSat e a Lusospace, cada uma com os seus projetos na área das aeronaves, drones e desenvolvimento de novos satélites, desenvolvendo cadeias de fornecimento nacionais.
Segundo José Neves, o objetivo passa por não sermos apenas fornecedores de outras cadeias, mas sim “nós próprios a industrializar toda a cadeia de fornecimento em Portugal ‘de fio a pavio’”, o que traz mais controlo às empresas na definição de prioridades, objetivos e estratégias, mas também na questão dos salários, afirma o presidente do AED Cluster
De olhos postos no futuro, aumentar a faturação do setor aeronáutico é uma das grandes metas do AED Cluster para os próximos 10 anos. “Estamos a falar em envolver áreas como Advanced Air Mobility, áreas como a Clean Aviation, portanto, uma aviação sustentada com menos emissões carbónicas e estamos a trabalhar para isso neste momento, inclusive com a Clean Aviation Joint Undertaking” a nível europeu.
Ao fortalecer as empresas nacionais, de modo que ganhem mais importância e maior controlo das cadeias de fornecimento, estão também a ser preparadas bases tecnológicas que podem integrar os equipamentos e sistemas de grandes empresas a nível internacional. “Se nós formos bons e desenvolvermos capacidades tecnológicas inovadoras podemos não só ir para este mercado [nacional] como para outros mercados”, indica.
Já na área da Defesa, uma área em que “tipicamente, Portugal ainda compra muito lá fora”, a visão de José Neves é conseguir que o AED Cluster faça “um contributo muito mais forte do que faz hoje a nível de fornecimento” nas Forças Armadas.
No campo do Espaço, para Ricardo Conde, o futuro passa por uma maior utilização de dados espaciais, que tire maior partido da informação recolhida por satélites para impulsionar uma gestão cuidada do território cada vez mais em tempo real e em áreas que vão além, por exemplo, da prevenção e gestão de catástrofes.
Mas, para tal, “temos que nos transformar e a nossa transformação tem de ser ao nível das freguesias, das câmaras municipais, de todos usarmos a tecnologia para, de facto, termos algo mais preciso, mais útil e mais eficiente”.
E, porque sem cooperação não há desenvolvimento, o futuro do setor espacial em Portugal vai passar pelo trabalho em conjunto com entidades internacionais. “Na Europa, não há nenhum país que tenha as condições para ser uma superpotência no Espaço, como os Estados Unidos ou a China. Só em cooperação e a ESA tem sido um pilar neste aspeto”, realça Ricardo Conde.