Lisboa, provavelmente a cidade portuguesa com mais carros elétricos, tem dezenas de pontos de carregamento da Mobi.E inoperacionais ou obsoletos. Procurar um posto livre pode implicar quilómetros de viagem ou longas esperas nos postos que funcionam. No carregamento rápido explorado pelos privados, há vários postos envoltos em plástico que esperam há vários meses por autorizações para operar. A Mobi.E promete mudar o panorama até ao final do ano. Veja a reportagem em vídeo
Os piquetes de greve podem ter gerado uma súbita corrida às bombas de gasolina, mas no bairro lisboeta do Campo Grande os condutores não têm muitas razões para sentirem o alívio de ter um carro elétrico: há 18 tomadas disponíveis – e nenhuma estava operacional no momento desta reportagem. Há vários carros elétricos estacionados no local, mas apenas pela conveniência do estacionamento à borla. Henrique Sánchez, presidente da Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos (UVE) e cicerone num périplo pelos carregadores da Mobi.E e de operadores privados que não funcionam, situa os mais inexperientes no tempo: «Estes carregadores ainda são da tecnologia de primeira geração; já nem deveriam estar aqui; estão obsoletos».
O cenário já era esperado: a UVE estima que, das mais de 1000 tomadas previstas originalmente para o ecossistema Mobi.E, há cerca de 300 que não estão operacionais. A Mobi.E faz as contas em postos (cada posto pode suportar várias tomadas ou pontos de carregamento) e não refere o número de tomadas que não estão operacionais.
Em entrevista para a Exame Informática/Visão, Luís Barroso defende que, em 2015, o parque de carregadores da Mobi.E estava «completamente abandonado» e que foi «este Governo que incumbiu a Mobi.E de repor o parque em funcionamento – estamos a falar de 404 postos – e, além disso, alargar a rede a todos os municípios do País, com a instalação de mais 202 postos».
Segundo o responsável da entidade que gere as transações e a interoperabilidade da rede de carregadores de carros elétricos, 85% dos 404 postos já instalados estão operacionais. O que corresponde a cerca de 360 postos, sendo que cada um pode ter ligação a várias tomadas. No site da Mobi.E, surge ainda um número de referência: 1250 tomadas dispersas por 50 municípios. Desconhece-se se este número ainda tem correspondência com a realidade.
Apesar das duas formas diferentes de encarar a mesma realidade, não foi difícil encontrar mais postos inoperacionais na capital: junto ao edifício da Câmara de Lisboa, noutra extremidade do Campo Grande, o cenário de blackout energético repete-se com algumas diferenças importantes: nos locais de carregamento há vários veículos do município lisboeta que não estão a carregar baterias, e há ainda um piquete em ação – mas, ao contrário do que se passa com as bombas de gasolina, estes profissionais não estão em greve e têm como prioridade recuperar o fornecimento energético aos automobilistas. Os técnicos confirmam que estão a reativar postos de carregamento que estavam inoperacionais, mas recusam-se a dar informação.
Conhecedor do segmento, Henrique Sánchez recorre a fontes anónimas que lhe garantem que há ordens para ligar um máximo de três tomadas por posto – mesmo que esse posto tenha conexões para oito, 10, 12 ou mais tomadas. O esforço de reativação de postos de carregamento da Mobi.E, que gere a plataforma de carregamentos elétricos à escala nacional, não chega para o animar: «Possivelmente não há potência suficiente na rede para suportar todos os carregadores».
Luís Barroso confirma a restrição de três tomadas por posto, mas garante que é temporária e que se está relacionada com «dificuldades técnicas» que resultam não só da atualização de software e de equipamentos, como também dos trabalhos de recuperação dos postos de carregamento. O responsável da Mobi.E recorda que há o objetivo de requalificar 300 postos da rede que se vão manter nos 3,7 kW e substituir 100 postos por equipamentos que já farão o upgrade para 11 kW e 22 kW.
«Vimo-nos confrontados com algumas dificuldades técnicas e houve que definir prioridades. Como os postos estavam praticamente abandonados, pareceu-nos mais importante prioritizar o (aumento do) número de postos em vez de ter a potência máxima e ter as tomadas todas desligadas». «Estou em crer que nos próximos meses estarão todas as tomadas ligadas», acrescenta Luís Barroso, lembrando ainda que os postos vão ter um novo design que deverá implicar adaptações no ramal que os abastece.
Ainda no Campo Grande e antes de se meter de novo no carro elétrico para dar a conhecer mais postos inoperacionais, Henrique Sánchez tem ainda tempo para mais um apontamento junto a um carregador rápido de 50 kW, de um operador privado, ainda envolto com tiras de plástico: «Deixaram aqui uma multa de estacionamento!», diz o dirigente associativo enquanto tira o comprovativo da multa da EMEL preso a um dos plásticos do posto de carregamento rápido.
O momento caricatural propiciado pela realidade não chega para desviar o dirigente da UVE da questão essencial: por que é que ainda há tantos postos que não dão mais de 3,7 kW… e por que é muitos deles simplesmente não funcionam?
Henrique Sánchez admite que os planos definidos por Mobi.E e responsáveis governamentais possam ter saído gorados ao cabo de uma década de funcionamento: «No início era a Mobi.E que pagava a eletricidade; mas depois esses encargos passaram para os operadores privados que entram no negócio do carregamento elétrico; só que não apareceram operadores para explorar o mercado e esses encargos passaram para as câmaras. Acontece que as câmaras têm recusado esses encargos». Sánchez recorre ainda a uma versão simplificada para explicar o cenário de inoperacionalidade: «Ou não há potência, ou não há quem pague a eletricidade, ou então o posto não foi certificado».
É em busca da terceira causa, que remete para burocracias e autorizações, que o líder da UVE se mete no carro elétrico rumo às ruas largas e quadriculares deixadas pela Expo 98, no bairro que hoje é conhecido como Parque das Nações. Junto a um carregador rápido de 50 kW de um operador privado que permanece inoperacional e envolto em fitas de plástico «seguramente há mais de um ano», lembra a legislação que promete criar um desafio de monta à Mobi.E a todos os operadores privados que alguma vez aspirem a entrar no segmento: o despacho que a Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG) emitiu, em junho de 2019, que define todos os requisitos técnicos que os postos de carregamento têm de respeitar.
Henrique Sánchez acredita que o operador privado que instalou o posto de carregamento no Parque das Nações também poderá ter passado por dificuldades similares ocorridas com outro caso igualmente paradigmático, que envolve um posto de carregamento que, alegadamente, terá estado várias semanas às voltas com os requisitos técnicos até conseguir uma autorização para operar numa bomba de gasolina de Torres Vedras.
Aparentemente, a fiscalização tem incidido especialmente nos postos de carregamento rápidos (PCR), mas essa aparente tendência não impede Sánchez de levar a análise para outro patamar: «Se a DGEG emitiu este despacho com estes requisitos que têm de ser respeitados para ter uma certificação, então somos levados a crer que todos os postos de carregamento da Mobi.E que foram instalados antes deste despacho não estão a cumprir os requisitos técnicos».
Luís Barroso nega que a rede Mobi.E esteja ilegal face ao despacho da DGEG e garante que, «se houver necessidade de fazer algum ajustamento que tiver de ser feito, obviamente, será feito». Mesmo garantindo que o despacho da DGEG se destina aos postos de carregamento rápidos, o diretor da Mobi.E lembra que os 404 postos que foram requalificados e/ou substituídos foram sujeitos «tiveram de ser certificados». «Os novos 202 (que vão ser instalados nos próximos meses) também terão de ser certificados. Portanto estarão sempre dentro da lei», acrescenta Luís Barroso.
Como muitos outros utilizadores de carros elétricos, Henrique Sánchez não se conforma com as palavras da Mobi.E. E retoma os carregamentos rápidos como prova de um ecossistema que não está a evoluir como pretendido: 18 postos do corredor europeu, que são financiados por fundos comunitários, nunca avançaram. O ênfase é ainda colocado nos atrasos de «meses» que são gerados pelas certificações que, alegadamente, impediram que 100 postos de carregamento rápido beneficiassem de uma comparticipação de 50% do custo que está prevista pelo Fundo Ambiental, proveniente da UE.
O diretor da Mobi.E lembra que a regulamentação só saiu em junho – «e nada obsta que este fundo não venha a ser usado (pelos operadores) até ao final do ano». Sobre o corredor europeu, Luís Barroso garante que o primeiro posto, que foi instalado numa área de serviço da Galp em Torres Vedras (e que já foi mencionado neste texto) já recebeu a certificação e que petrolífera, que pretende tem vindo a expandir para o setor elétrico, deverá iniciar a instalação dos 17 postos que faltam.
Igualmente sintomático das dificuldades que os operadores privados têm nesta altura é o atraso que Henrique Sánchez aponta ao projeto da Nissan que previa a instalação de 100 carregadores no país e o investimento de dois milhões de euros. Na Mobi.E, é reiterado o interesse que a Nissan faça o investimento e crie as ligações ao ecossistema – mas também é recordado que essa é uma iniciativa privada, o que remete para a Nissan qualquer tipo de explicação.
Henrique Sánchez e muitos utilizadores de carros elétricos poderão ter dificuldade em encontrar postos de carregamento em Lisboa e no Porto, mas as queixas não os impedem de ver que noutros pontos do país há postos que passam 24 horas seguidas sem um único carregamento. É o mercado desequilibrado que leva à escassez de postos ou é a escassez de postos que gera um mercado desequilibrado. Henrique Sánchez responde com uma estimativa: «segundo estimativas da indústria são precisos sete carregamentos rápidos por dia para um posto se poder pagar».