Num dia era um laboratório vibrante de estudo de novos materiais, no outro um amontoado de destroços. E assim, à velocidade de uma explosão, perdeu-se o trabalho e a dedicação de anos e anos. “O que quer que fosse aquilo em que estivessem a trabalhar perdeu-se”, relata o físico André David, investigador no CERN, a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear da qual a Ucrânia é um estado associado.
Nasceu para promover a paz e assim deverá continuar a ser. O conselho do CERN, Organização Europeia para a Pesquisa de Partículas, criada no rescaldo da Segunda Grande Guerra, juntando num propósito comum nações desavindas, decidiu suspender as relações entre a organização e instituições russas e bielorrussas. Quer isto dizer que os cientistas da instituição deixarão de participar em eventos organizados por institutos russos ou bielorrusssos, de fazer de comités científicos de instituições localizadas em ambos os países sendo ainda suspenso o estatuto de observador de que a Rússia beneficiava. “As sanções são terríveis! É mau para toda a gente”, lamenta o físico e professor do Instituto Superior Técnico Gustavo Castelo-Branco que faz trabalho de investigação com o CERN desde a década de oitenta do século passado. “Nem durante a Guerra Fria houve interrupção da colaboração”, compara, reforçando, no entanto, a inevitabilidade da medida tomada tendo em conta a ofensiva russa. “O CERN é uma instituição onde se vê gente de todo o mundo. Não são políticos, são cientistas, não importa a religião, não importa nada. O único preconceito que há é contra a incompetência. Estamos a pagar um preço muito alto!”
A suspensão da colaboração envolve, por exemplo, a escrita de artigos científicos conjuntos, o envio de material de investigação, nas duas direções. Quer a suspensão, quer a guerra, podem vir a pôr em causa uma das experiências realizadas no CERN – a do detetor CMS, onde se estuda o Modelo Padrão da Física – incluindo o famoso Bosão de Higgs – a matéria negra. Três institutos ucranianos participam, ou participavam, com importante contributo na área dos materiais. Em particular na substituição de uma parte do detetor que deverá ser substituída dentro de dois anos.
Nuno Castro, professor na Universidade do Minho e investigador no Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), também lamenta esta consequência. “Os institutos russos têm uma participação importante, [a suspensão] poderá ter consequências relevantes na Ciência”, sublinha. “O que se está a passar não poderá estar mais nos antípodas da natureza do CERN que teve como lema das comemorações do 60º aniversário: ‘60 anos de Ciência pela paz’”, conta o investigador. “Não reescrevemos a história.”
Parado desde dezembro de 2018 – numa interrupção que deveria ter sido de dois anos, mas que foi prolongada também por causa da pandemia – o LHC (da sigla em inglês para Grande Colisor de Hadrões) deverá entrar em funcionamento no fim-de-semana da Páscoa. Durante estas ‘férias’ prolongadas aquele que é o maior acelerador de partículas do mundo sofreu operações de manutenção e melhoramento que vão permitir recolher mais e melhores dados, esperando-se que venha a ser possível afinar alguns detalhes do Modelo Padrão, como as interações entre o bosão de Higgs e a natureza da energia e da matéria escura que compõe 95% do universo, sendo a matéria visível, aquela que vemos e conhecemos, correspondente aos restantes cinco por cento.