Inovação em saúde não significa necessariamente reinventar a roda. Às vezes, mesmo em problemas médicos complexos, a solução que se procura pode estar em velhos remédios. Isto é verdade para a Covid, por exemplo – em que vimos recentemente que uma substância já antiga, usada no tratamento da lepra, pode ser eficaz nesta doença nova – mas também em patologias como o cancro. Só que testar medicamentos, sobretudo a conjugação de várias de moléculas, pode ser uma tarefa hercúlea, tendo em conta a infinidade de combinações possíveis. E é aí que entram os sistemas de Inteligência Artificial, em particular os modelos desenvolvidos pelo programa Facebook AI, que promove o desenvolvimento desta área, em colaboração com universidades e institutos de investigação. “É impossível fazer a triagem sem ferramentas de machine learning”, diz o cientista de dados daquele instituto alemão, Fabien Theis, durante a conferência de imprensa de apresentação do trabalho. “Foi daí que nasceu a colaboração com Facebook AI”, avança. A tecnologia, apresentada esta semana, foi testada para o tratamento do cancro e permite transformar uma tarefa que pode demorar vários anos num processo que dura cinco horas no máximo.
Esta ferramenta, a que chamaram Compositional Perturbation Autoencoder (CPA), estará disponível para toda a comunidade científica, tendo os resultados sido publicados, para já, numa revista sem revisão pelos pares, a bioRxiv. “Toda comunidade científica será capaz de utilizar o CPA, mesmo quem não seja perito em IA”, garante o investigador do Facebook IA, David Lopez-Paz, que reforça a disponibilização gratuita da interface de programação, ou API, e do pacote Python.
De uma forma simples, explica-se na página de apresentação do projeto, o CPA parte do conhecimento prévio acerca do efeito individual de uma molécula num tipo de célula para extrapolar para a combinação de várias substâncias. “Digamos que os dados contenham informações sobre a forma como as drogas afetam diferentes tipos de células A, B, C e A + B. A partir daí, o modelo pode aprender o impacto individual de cada medicamento, num tipo específico de célula (ou seja, em diferentes tipos de células) e, em seguida, recombinar para extrapolar combinações de A + C, B + C ou mesmo como A + B interage com C + D.”
Ou de outra forma, como ilustrou Lopez-Paz, o sistema analisa as células vestidas com um outfit completo para depois as despir e voltar a vestir com uma fatiota diferente. Num caso concreto, seriam necessários vários anos e muitas experiências feitas com células para testar diferentes combinações e dosagens de cem moléculas. Agora, graças a esta ferramenta, os cientistas conseguem testar in silico (em simulador) em apenas um par de horas e selecionar os melhores resultados como hipótese para validação e seguimento in vivo.
Sobre o programa desenvolvido, os cientistas explicam que se trata de uma estratégia baseada no ‘raciocínio composicional’, em que a aprendizagem do sistema acontece por camadas, da mais simples e elementar para a mais complexa. “Antes de aprendermos a multiplicar temos de aprender a somar ou antes de avançarmos para a confeção de um banquete convém aprender a estrelar um ovo primeiro”, compara Lopez-Paz. As aplicações desta área da IA podem ir muito além da biomedicina, viajando até ao estudo da linguagem, por exemplo
A expectativa dos cientistas envolvidos neste trabalho é de que toda a comunidade faça uso da ferramenta, acelerando o processo de descoberta de outras formas de tratar velhas, e novas, doenças, ao identificar combinações ótimas de medicamentos. Uma recomendação que é na verdade um apelo, deixado por Fabien Theis: “Queremos criar uma comunidade de utilizadores porque o CPA só funciona se houver dados.”