Pela segunda vez em pouco mais de uma década, a União Europeia encontra-se numa encruzilhada. O comissário europeu para a Economia, Paolo Gentiloni, falou mesmo numa “crise existencial”. À medida que se vão dissipando as dúvidas sobre a dimensão inédita da recessão que se avizinha, torna-se também claro que da resposta europeia dependerá a sobrevivência da União.
A divisão vincada no seio da UE não esperou para se fazer notar: países como a Alemanha, com maior poder de fogo orçamental e menor nível de endividamento, têm sido capazes de aproveitar a flexibilização das regras europeias para apoiar a economia e fazer face ao choque provocado pela pandemia, ao passo que noutros (como Itália, Espanha ou Portugal) a pressão dos mercados financeiros e dos juros da dívida pública dificulta uma resposta semelhante. Basta ver a disparidade, em termos proporcionais, dos pacotes contracíclicos aprovados na Alemanha e noutros países.
Depois de dois meses de propostas inconsequentes a tabelar entre Eurogrupo, Conselho e Comissão, Alemanha e França avançaram para uma proposta de Fundo de Recuperação em antecipação da reunião da Comissão da próxima semana: 500 mil milhões, aparentemente distribuídos através da chave de coesão e financiados por dívida emitida pela Comissão. Os problemas são vários, as incógnitas são ainda mais, mas o interesse já é algum.
A primeira questão é o montante. Fica muito aquém dos 1,5 triliões da proposta espanhola, ou seja, a proposta é tributária da ideia de que os Estados-membros com margem orçamental deverão compensar as insuficiências dos restantes. O problema deste raciocínio é que os diferenciais de investimento tenderão a agravar as assimetrias entre as economias do centro e da periferia refletidas nos já hoje insustentáveis desequilíbrios macroeconómicos. A inserção da proposta no âmbito do MFF assegura uma regra redistributiva mas o montante global teria de ser muito superior para a compensação ser suficiente.
A segunda questão tem a ver com a natureza do financiamento. O fundo é apresentado como financiamento a fundo perdido suportado por dívida emitida pela Comissão, mas não se percebe se os recursos próprios serão a garantia dessa emissão ou serão de facto o a fonte de financiamento da sua amortização. O documento apenas fala de um plano de repagamento obrigatório. Não diz como se assegurará esse pagamento: orçamentos nacionais, recursos próprios da União ou emissão monetária, assumida ou disfarçada. A questão dos prazos pode ser relevante se estivermos a falar de prazos muito dilatados que permitam uma parte da amortização seja feita por desvalorização. Mas essa perda terá de ser assumida por alguém. Esse alguém é o BCE.
A terceira questão tem a ver com as condições de acesso a este fundo. O documento franco-alemão utiliza expressões do jargão de Bruxelas com ressonâncias preocupantes como “finanças públicas saudáveis”, que remetem para o paradigma das políticas procíclicas que produziram um desastre económico na última crise europeia. Esta expressão ressurge agora, contra a corrente dos novos tempos, espera-se que apenas por força do hábito.
A quarta e última questão é a da viabilidade política. Não foi preciso esperar muitas horas para chegarem as primeira reações dos países incorretamente designados como frugais. As obsessões são as do costume: o financiamento tem de se basear em empréstimos e tem de estar associado a macrocondicionalidade, obsessões perigosas e contraproducentes. Acresce que um dos melhores elementos da proposta franco-alemã, que é uma modesta agenda fiscal, enfrentará enormes resitências de vários Estados-membros, a começar pela Holanda. Claro que o peso político da França e da Alemanha conta muito. E todos sabem, bravatas e lições de moral à parte, que não há União Europeia sem Itália e Espanha. Mas primeiro é preciso perceber o que é afinal proposta franco-alemã. Se é para valer, ou mais um número de ilusionismo.