O produto interno bruto (PIB) português avançou 2,3% na totalidade do ano passado, graças a um quarto trimestre surpreendentemente sólido. Tanto na análise em cadeia como numa comparação homóloga, o desempenho da economia nacional nos últimos três meses de 2023 foi o melhor entre os 12 países europeus para os quais existem dados. O crescimento voltou a ficar acima de previsões feitas há poucos meses e insere-se numa tendência de surpresas positivas da economia nacional. Como se pode explicar o desfasamento entre realidade e previsões?
Em conversa com a VISÃO, o ministro da Economia argumenta que “os pressupostos para projeções da economia portuguesa estão desatualizados”. “A economia portuguesa está num processo de transformação. “Há agora uma grande capacidade exportadora, não apenas no turismo, mas na metalomecânica, nos componentes, alimentar, químicos, produtos farmacêuticos. Depois, há uma grande resiliência do emprego, melhorámos muito a transformação de conhecimento em produtos industriais e subimos no ranking de investimento estrangeiro”, explica António Costa Silva.
O governante reconhece que é um processo gradual – “ainda há um grande caminho por percorrer” – mas que “está a acontecer”, referindo fundos do PRR, em específico as chamadas “agendas mobilizadoras” que podem ter impacto estrutural. “Falta-nos criar mais valor e impormo-nos nas cadeias de valor internacionais.”
Alguns dos motivos citados pelo ministro para explicar as surpresas positivas da economia nacional são também referidos pelo departamento de estudos económicos do BPI. A analista Teresa Gil Pinheiro cita “melhorias estruturais evidentes, por exemplo, no incremento das exportações de serviços não turísticos”; mais investimento direto estrangeiro; “aumento da imigração/robustez do mercado de trabalho”; “correção de desequilíbrios, nomeadamente a redução dos indicadores de endividamento”; e uma diminuição dos custos de financiamento do setor privado graças a um ambiente de taxas de juro baixas que durou até perto do final de 2022.
Tudo somado, a economia portuguesa pode ter mudado o suficiente ir superando as previsões de instituições nacionais e internacionais. Os economistas do Montepio destacam “o maior dinamismo do setor exportador”. “Quer estejamos a falar de bens industriais e agrícolas, num processo iniciado nomeadamente durante o período de intervenção da troika e que permitiu uma realocação dos bens da produção interna (então muito deprimida) para os mercados externos. Quer de serviços de turismo, dada a crescente importância do destino Portugal, com cada vez mais visitantes estrangeiros e não apenas nos destinos tradicionais de Lisboa, Porto, Algarve e Madeira, mas agora nas restantes regiões do país e nos Açores.”
Essa maior força exportadora junta-se a um crescimento da população ativa, um emprego em máximos históricos e “o facto de o aumento da qualificação na economia portuguesa poder estar a implicar uma maior acumulação de capital humano e, consequentemente, de produção do país”, acrescentam.
Realidade melhor do que as previsões
Há a possibilidade de o problema estar relacionado com a próprias previsões. Por exemplo, ainda hoje o Conselho das Finanças Públicas (CFP) publicou uma avaliação das estimativas feitas pelo Governo português entre 2015 e 2022. No geral, esse exercício é classificado como “prudente”, mas é identificado um “enviesamento” na previsão do crescimento do emprego, da despesa total e (quando se tem em conta as revisões de dados) do próprio PIB.
É uma história que os portugueses se habituaram a ouvir: o Governo socialista faz certas previsões de evolução da economia e do mercado de trabalho – com impacto nas contas públicas – e, no final do ano, a realidade revelava-se mais cor-de-rosa, permitindo um “brilharete” no défice. Ao mesmo tempo, rubricas da despesa, como o investimento público, ficavam consistentemente abaixo do orçamentando, permitindo, também aí, uma folga.
Embora as projeções das Finanças sejam frequentemente ultrapassadas, este problema vai para lá do Terreiro do Paço. As previsões feitas pela Comissão Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) sofrem do mesmo problema. Se colocarmos lado a lado os valores oficiais e as estimativas publicadas por Bruxelas em novembro acerca do ano que está a dois meses de terminar, verificamos que em todas as vezes a realidade superou a projeção. Nalguns casos por muito.
Veja-se agora o mesmo exercício, mas utilizando o FMI, com os dados que publica em outubro para prever o ano que também está perto de terminar. Mesma tendência.
Este exercício até é “simpático” para quem faz previsões. Estes valores são apresentados já com o ano a decorrer e muita informação oficial disponível. Se, em vez disso, usássemos as projeções feitas antes de começar o ano, os desvios seriam ainda maiores. Por exemplo, para 2023, Comissão e FMI apresentam um desvio de apenas 0,1 pontos face ao número oficial publicado pelo INE. Porém, antes de começar o ano, ambas antecipavam que Portugal cresceria apenas 0,7% em vez dos 2,3% que acabou por registar.
Fazer previsões é um exercício complexo e ingrato. Falhar é quase uma garantia. Contudo, a relevância está na identificação de uma tendência: nos últimos anos, as projeções têm consistentemente subestimado o desempenho da economia nacional. Nem sempre foi assim. Durante o período da crise e do programa de ajustamento da troika, as previsões eram mais otimistas do que a realidade, não antecipando a totalidade do efeito devastador da austeridade na economia e no emprego.
Que impacto para 2024?
Nos últimos meses chegou a estar em cima da mesa a possibilidade de uma recessão técnica em Portugal. Isto é, dois trimestres consecutivos com queda do PIB. Depois de ter caído 0,2%, as previsões dos economistas variava entre os -0,1% e os 0,6%. A maior parte esperava valores positivos próximos do zero. Os dados do INE, publicados ontem, mostraram outra realidade: um crescimento em cadeia de 0,8%.
“A maior dinâmica da economia portuguesa no último trimestre de 2023 ter-se-á devido essencialmente ao comportamento do consumo privado e a um contributo menos negativo da procura externa líquida. Não obstante o INE não ter referido, estimamos também um crescimento do investimento e do consumo público”, aponta o Montepio, que antecipa que “o comportamento mais favorável do consumo privado estará tendencialmente associado à melhor evolução dos serviços”.
Para Teresa Gil Pinheiro, o crescimento de 0,8% “poderá ser explicado não só pelo consumo privado, mas também pela normalização da produção na Autoeuropa, com impacto nas exportações de bens”. Além disso, pode estar a ocorrer uma mudança no perfil de turismo. “A informação relativa às entradas de turistas sinaliza a possibilidade de que a procura nos trimestres considerados menos fortes no setor (1º e 4º) tem vindo a aumentar. Se assim for e se este comportamento se mantiver, terá um impacto positivo nas exportações de serviços e consequentemente no PIB”, acrescenta a economia do BPI.
Esta recta final mais positiva poderá dar embalo à economia em 2024. As últimas previsões variam entre 1,2% e 1,5%, mas o Montepio assume a possibilidade de as previsões voltarem a ser batidas. “Com o PIB a fechar 2023 num nível mais elevado do que anteriormente antecipado, aumenta a probabilidade de um maior crescimento económico, em média, durante 2024, que poderá, segundo as previsões de que dispúnhamos já antes do anúncio da estimativa para o PIB no 4.º trimestre de 2023, atingir 1,8%, acima da generalidade das previsões de entidades oficiais”, adiantam os economistas.
A confirmar-se, seria uma folga importante para o próximo Governo, dando margem para mais medidas ou para diminuir ainda mais rápido a dívida antes da entrada em vigor das novas regras orçamentais europeias.
O campo político é uma incógnita para 2024. As sondagens sugerem que poderá ser difícil encontrar uma solução estável de governo. Portugal pode entrar numa fase de governos minoritários e/ou eleições antecipadas. O ministro da Economia diz que, no seu contacto com investidores, acha-os “sensíveis à instabilidade política”. “A mensagem que passo é: os dois maiores partidos partilham uma visão pró europeísta, de economia de mercado e aberta a investimento estrangeiro”, afirma à VISÃO, admitindo estar preocupado com a concretização de projetos de investimento que ainda não estão no terreno.
Lado lunar do crescimento
As surpresas positivas da economia portuguesa têm permitido uma recuperação da pandemia e obter um crescimento acima da média da União Europeia. No entanto, esse desempenho convive com outros países de dimensão semelhante à portuguesa com níveis de crescimento mais elevados. Quando se olha para o PIB per capita, por exemplo, Portugal tem afundado no ranking europeu, ultrapassado por alguns países a leste. É um dos países com níveis mais baixos de riqueza por habitante.
O Governo tem argumentado que o atraso português nas qualificações e a sua posição geográfica são desvantagens. António Costa Silva também defende que casos muito debatidos como o da Roménia apresentam maior dinamismo per capita devido a perdas de população. Ainda assim, reconhece as dificuldades portuguesas. “Estamos a conseguir fazer crescer o PIB per capita, não tanto como queríamos”, admite, citando obstáculos demográficos, de produtividade e de desenvolvimento tecnológico.
Desafios que fazem parte do legado disputado deste Executivo em relação à economia. Questionado pela VISÃO acerca de como gostaria que fosse lembrado o legado económico destes Executivos socialistas, Costa Silva acha que será conhecido pela resistência à adversidade. “O grande legado foi a resiliência da economia a um mundo de poli-crises, que está a afetar os mercados, com mais tensão política e guerras simultâneas”, resume. “Mesmo nessas circunstâncias, a economia portuguesa – devido a vários governos – está a dar a resposta para sairmos de um modelo de monocultura do turismo.”
Veremos se é em 2024 que as projeções acompanham a economia.