Artigo publicado originalmente na edição 434, de junho, da revista EXAME
Toma, Moody’s.” Não era o insulto que se esperasse ouvir do Zé Povinho quando a personagem foi criada em 1875. Mas a atuação das agências de rating, na última crise de dívida soberana, causou tanta indignação popular que motivou uma edição especial da caricatura saída da imaginação de Bordallo Pinheiro. As peças esgotaram rápido e o célebre braço cruzado chegou aos escritórios da primeira entidade a cortar a nota de Portugal para lixo em 2011. Um pouco por toda a Europa, o papel das três gigantes das notações financeiras foi alvo de críticas durante a crise de dívida soberana. Era a gota de água, depois de terem também falhado na crise financeira de 2008.
Mas, apesar das regulações e das recomendações criadas desde então, volta a temer-se que estas entidades ensombrem ainda mais a crise do “Grande Confinamento”. Com Estados a aumentar a despesa para fazerem face aos danos económicos provocados pelas pandemias e com muitas empresas confrontadas com uma seca súbita das suas receitas, não há muitos ratings que resistam. Aliás, o ritmo dos cortes acelerou em março. Segundo um levantamento da Bloomberg, só no primeiro trimestre, a Standard & Poor’s cortou 280 ratings de empresas, a Moody’s 180 e a Fitch baixou cerca de 100 notações. Essas decisões ocorreram principalmente em março. Já as melhorias de notação foram bem mais raras. Mas os cortes não se ficam pelas empresas. Também as dívidas soberanas de Estados como o Reino Unido e a Itália já tiveram descidas nas suas avaliações, refletindo a maior despesa e a menor atividade económica provocadas pela pandemia. Para Portugal, também já se percebeu que o mais provável é haver uma inversão no caminho de recuperação do rating que vinha a ser trilhado.
O timing das decisões de rating precisa de ser calibrado de forma muito cuidadosa
Steven Maijoor, presidente da Autoridade europeia dos valores mobiliários e dos mercados
Os analistas da Fitch esperam mesmo “um número recorde de descidas de ratings soberanos em 2020”. Salientam, num relatório divulgado no final de abril, que “os governos estão a centrar-se mais na resposta imediata [à pandemia] dos que nos custos financeiros” e defendem que “é importante para os investidores terem um modelo para que possam avaliar quais os países mais bem posicionados, numa perspetiva de finanças públicas, e quais os que têm maior probabilidade de terem de fazer ajustamentos nos próximos anos para corrigirem as contas públicas mais pressionadas”.
Apesar de se ter tentado tirar poder e influências às três grandes agências, as suas notações ainda contam muito nos mercados financeiros, principalmente quando retiram o selo de grau de investimento, passando a nota para especulativa ou para o famoso “lixo”. Regra geral: essa decisão força os investidores mais conservadores a venderem esses ativos, já que têm limitações ao dinheiro que podem alocar nos ativos mais arriscados. Dado esse poder, tem-se discutido se estas entidades fazem apenas uma avaliação do risco, em linha com o ciclo de crédito, ou se são pró-cíclicas e acabam por deitar mais lenha na fogueira.
A Comissão Europeia concluiu que, “durante a crise de dívida da Zona Euro, alguns países enfrentaram vendas em massa abruptas e custos de financiamento mais altos, após a descida da sua notação de crédito”. E agora, com Estados e empresas confrontados com um choque económico súbito, quer-se evitar a repetição dessa história.
“O timing das decisões de rating precisa de ser calibrado de forma muito cuidadosa”, afirmou o presidente da Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA), o supervisor que vigia as agências de notação financeira na Europa. Citado pela Reuters, Steven Maijoor defendeu que estas entidades deveriam ter em conta os crescentes riscos para a qualidade de crédito dos diversos emitentes e que evitassem agir de forma pró-cíclica. Por outras palavras: devem fazer a sua avaliação de risco, mas sem tomarem decisões precipitadas que causem um efeito de bola de neve nos mercados.
A ESMA garante que aumentou a interação com as agências de rating. Tem em curso modelos para avaliar os possíveis impactos das decisões destas na estabilidade financeira e está constantemente a partilhar essas informações com as autoridades dos diversos países. Já do lado das agências, saem estudos a tentar demonstrar que as suas decisões não extremam o andamento dos mercados de dívida.
“Apesar de os ratings terem sido historicamente pró-cíclicos na medida em que estavam correlacionados com o ciclo de crédito, isso não significa necessariamente que as alterações de rating amplifiquem os efeitos cíclicos”, afirmou a Moody’s num estudo divulgado em meados de maio. Ainda assim, avisa que “é possível que, devido à atual quebra relacionada com o coronavírus, se verifiquem mais descidas em vários níveis nos ratings para graus especulativos, dada as quebras extremas da atividade económica e da procura”.
O peso das três grandes
O mercado de notações de crédito continua a estar altamente concentrado
> As três grandes
As norte-americanas S&P Global Ratings, a Moody’s Investors Service e a Fitch Ratings controlam o mercado de notação financeira. Detêm, juntas, uma quota de 92,1% na Europa, segundo dados da Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA). Apesar de esta concentração de poder ter causado preocupações na última crise, as três grandes continuam a dominar o mercado. A S&P detém 42%, a Moody’s mais de 33% e a Fitch tem um peso de pouco mais de 15%.
> A quarta agência
O Banco Central Europeu guia-se pelas avaliações de quatro agências de rating. Além das três grandes, inclui também a DBRS. A agência canadiana, que manteve Portugal ligado às compras do banco central durante a crise de dívida soberana, tem uma quota de mercado de apenas 2,46% na Europa. Ainda assim é a quarta maior entidade de notação financeira a operar no Velho Continente.
> As outras 22
Além de S&P, Moody’s, Fitch e DBRS, há mais 22 agências com atividade na Europa. Mas, entre todas, não vão além de uma quota de mercado de cerca de 5,5%. A ESMA quer incentivar emitentes a contratar agências que tenham menos de 10% de quota de mercado, mas, dado o elevado peso das três grandes, esse objetivo pode ser difícil de atingir. Note-se que nenhuma destas 22 é considerada pelo BCE.
> Presença portuguesa
Uma das agências a operar na Europa tem influência portuguesa. A ARC Ratings surgiu de uma parceria entre a Sociedade de Avaliação Estratégica e Risco e outras empresas internacionais. Tem uma quota de 0,15% no mercado de ratings europeus.
Bancos centrais tentam fintar ratings
Não são apenas os investidores a seguirem as avaliações de risco das agências de rating. Os próprios bancos centrais fazem depender os ativos que entram nas suas operações de política monetária dos ratings concedidos por estas entidades. O BCE, por exemplo, exige que as garantias que são entregues nas suas operações de financiamento tenham pelo menos um rating de grau de investimento por parte de uma das quatro agências que segue (as norte-americanas Moody’s, S&P, Fitch e a canadiana DBRS). Também os títulos de dívida que podem beneficiar dos programas de compra têm de seguir essa condição. A dependência que os bancos centrais têm das avaliações de risco destas entidades privadas tem suscitado algumas preocupações.
A legislação aprovada após as crises financeira e de dívida teve como objetivo limitar essa influência. No entanto, passados vários anos, o BCE, por exemplo, continua a contar apenas com a opinião daquelas quatro agências para fazer a avaliação de risco dos ativos elegíveis para as operações de política monetária. E isso levanta problemas. Em 2015, por exemplo, Portugal sentiu na pele os receios dos investidores de que a DBRS pudesse baixar a notação para lixo. Isso fez disparar os juros da dívida nacional, já que nesse cenário o BCE poderia ter de deixar de comprar dívida nacional.
Agora, na crise do “Grande Confinamento”, o alvo das agências tem sido a Itália, que já sofreu vários cortes de rating e está cada vez mais perto de cair para um terreno visto como “lixo” pelos investidores. O BCE tem anunciado reforços nas aquisições de dívida, para impedir uma nova crise no euro e conter os juros italianos.
Mas, em teoria, se Itália perdesse o grau de investimento, as regras não permitiriam a compra de obrigações do país nem que estas fossem recebidas como colateral. O país ficaria totalmente desprotegido face à ferocidade dos investidores, o que poderia ter consequências catastróficas. O mesmo aconteceria nos bancos e noutras entidades da Zona Euro que têm beneficiado das compras do banco central. No entanto, numa decisão sem precedentes, a instituição liderada por Christine Lagarde anunciou que os instrumentos financeiros, que até 7 de abril tinham grau de investimento, continuariam a ser aceites como colateral mesmo que viessem a perder esse estatuto e se tornassem “anjos caídos”. É uma espécie de moratória do rating. Para já, contrariamente à Reserva Federal dos EUA, o BCE ainda não anunciou que estes ativos poderão vir a integrar os vários programas de compras. No entanto, os analistas não duvidam de que o BCE possa tomar esse passo, caso seja necessário.
Para já, essa flexibilização das regras de rating por parte dos bancos centrais tem evitado males maiores, mas o mais provável é que, nos próximos tempos, a onda de cortes de rating continue, pondo à prova o nervosismo de investidores e de quem precisa de ir ao mercado para se financiar.