Foi num dia de temporal em Lisboa que a socióloga Ana Nunes de Almeida, investigadora e presidente do Conselho Científico do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e Maria Antónia Torres, M&A Tax Lead Partner e Diversity Leader da PwC Portugal, Cabo Verde e Angola, se juntaram para falar de desigualdades, gestão, incertezas e do cenário que se adivinha numa sociedade pós-pandemia. As regras de saúde pública impediram o encontro físico mas, entre Lisboa e Porto e a partir de uma sala do Palácio Sotto Mayor e com a ajuda de ecrãs e computadores, as duas responsáveis dissecaram comportamentos e traçaram linhas de futuro.
“Confesso que fiquei um bocadinho encalhada na palavra caos”, começou por revelar Ana Nunes de Almeida, em resposta ao desafio lançado pela EXAME para a Girl Talk deste mês: O que fica depois do caos? “Talvez seja a expressão errada para definir o momento. Vivemos uma crise: uma rutura repentina inédita, imprevisível entre um antes e um depois. Mas o depois que temos vindo a viver, desde que o vírus chegou a Portugal, não tem sido propriamente caótico no seu quotidiano. Caos faz-me lembrar efervescência, bulício, desregulação, confusão… e, pelo contrário, o que temos vindo a sentir – aqui talvez fale da minha experiência e do que vejo à minha volta, que é um meio privilegiado, de académicos – é uma espécie de suspensão daquilo que era a rotina. De contenção e de quietude”, explica.
“Isto não quer dizer que não haja situações caóticas: o que vivemos no SNS, por exemplo. E não estávamos habituados a tanta regulação dos nossos comportamentos, até no domínio privado. O Governo dá-nos indicações de quantas pessoas podemos ter em casa, de quem podemos ver e não ver… Isto há um ano e tal era ficção científica.” A cientista recorda ainda um estudo recente em França sobre as sociedades anónimas da Idade Média, o que pode ajudar a explicar a nossa dificuldade em lidar com a pandemia. “Vivemos numa sociedade de consumo, em que a tecnologia tem tanta importância e a esperança média de vida é de 80 anos, para homens e mulheres… antes, a morte estava no centro da vida, tal como o cemitério estava no centro das aldeias. E as franjas que eram particularmente atingidas pela morte são hoje vistas como lugares onde a morte é intolerável: a de um bebé recém-nascido, a da mãe em atividade de parto. De repente, banalizámos a morte”, exemplifica.
Da ficção científica à distopia
“É quase como se fosse um cenário distópico, não é?”, responde Maria Antónia. “Neste momento, há uma tendência enorme para a polarização. Toda a gente, perante um assunto, concorda ou discorda. É óbvio que estava presente na nossa sociedade, mas acho que isso se agravou porque estamos numa fase de grande incerteza e temos tendência a agarrar-nos a alguma coisa para não estarmos no meio da ponte sem nada. Isto preocupa-me”, admite. A liderar uma equipa em que a média é de 25 anos, Maria Antónia tem tentado perceber como pode ajudar a não aumentar os níveis de ansiedade trazidos pela pandemia. Isso tem passado, entre outras coisas, por um programa de apoio à saúde mental dos funcionários da PwC, com o qual se trabalha a ansiedade e a resiliência. Uma necessidade sentida também por Ana, na universidade, onde vários estudantes, sobretudo, demonstraram precisar de ajuda para atravessarem estes tempos de caos ou de quietude. Para ambas, este apoio tem de passar a ser uma prioridade.
Do lado dos responsáveis, Maria Antónia considera que os desafios são outros: “Posso estar numa situação de não conseguir controlar a vida da minha organização nos próximos tempos. Para um gestor, é quase comparável à morte dos indivíduos. Estamos muito preocupados, porque não conseguíamos fazer um business plan a três anos, mas agora praticamente não o conseguimos fazer para três dias.” E, portanto, avisa, “é preciso mudar a mentalidade de quem lidera as organizações” de modo a lidar com essa imprevisibilidade. “Ora, tendo em conta o que nos ensinaram nas escolas de gestão, que é tudo em redor do controlo, de key performance indicators, de quantificação, tomada de decisões, isto significa uma disrupção enorme para organizações e para os indivíduos. Os líderes estão perdidos e é muito importante dizer às pessoas que it’s ok não ter certezas.”
“Em Portugal, não se ensina as pessoas a pensar”
E enquanto vivemos entre teletrabalho, horas de recolher obrigatório e períodos de confinamento, as redes sociais tornaram-se eco de pensamentos que, antes, a maioria teria pudor em verbalizar. Meios que, acredita Ana, “favorecem muito o pensamento simplista, superficial e assertivo. Acho que temos vindo a perder a capacidade de ouvir o outro, de nos encantarmos com o diálogo. O que eu vejo são muitos monólogos ou conversas dentro do inner circle. E isso é uma perda para o pensamento”, lamenta, alertando para as consequências de uma sociedade que ignora o conhecimento.
As preocupações de Ana são secundadas pela executiva do Porto, a qual puxa a educação para a agenda da conversa. “Eu sei que já foi a luta de várias pessoas – imaginem se não tivesse sido! –, mas devia ser a paixão de todos nós, porque as mudanças na sociedade começam top-down, com cidadãos educados, conscientes e com cultura cívica. No ensino típico português, é-nos dito que ‘a teoria é esta’. Mas lembro-me de que, quando tentava resolver uma equação de uma forma diferente, as notas se refletiam logo. Se começássemos a educar os miúdos para pensar, para discutir, eles percebiam como e porque uma pessoa pensa de forma diferente”, defende.
“Em Portugal, não se ensina as pessoas a pensar”, resume. Para Ana, as mudanças na sociedade acontecem bottom-up, mas, para lá se chegar, o caminho é o mesmo que defende Maria Antónia: uma escola que ensine a pensar, a praticar cidadania e que não penalize quem arrisca fazer as perguntas certas, mesmo que estas ponham em causa os ensinamentos de quem ensina. Com muita investigação dedicada às famílias, à educação e às desigualdades, Ana lamenta que a organização escolar continue a “falhar redondamente”. E isto apesar das alterações profundas na família, sobretudo após 1974.
“Parece que foi abalada por um sismo num País que era considerado católico e conservador. E nós temos muito pouco que ver com os outros países da Europa do Sul nesta questão: basta olhar para o nível de trabalho feminino, por exemplo, sobretudo de mulheres em idade de maternidade ativa, em que os nossos números são muito elevados.” Mas, então, como se explica que, “ao contrário da família, a escola seja um bastião de conservadorismo do ponto de vista da pedagogia, das relações entre os professores e os alunos?”, atira. “Genericamente, vê-se que é um edifício rígido, pensado de cima para baixo, dos adultos para os estudantes. Falham-nos brutalmente experiências de participação dos miúdos desde que eles são pequeninos. Falta participarem, perguntar-lhes, ouvirem-nos sobre como se há de organizar o recreio, como se fazem os horários nas aulas, como as cadeiras e as mesas devem estar separadas. Onde está a voz dos miúdos?…”
A socióloga questiona ainda a falta de autonomia dos mais novos, num País que se tem destacado nos inquéritos europeus quando se pergunta quais as qualidades que os pais gostariam que os filhos tivessem. “Respondem, na esmagadora maioria: ‘Ser obediente, trabalhador e ter respeito pelos outros.’ Os nórdicos querem que sejam criativos, que tenham imaginação. Temos uma cultura conservadora em que se considera as crianças como tábuas rasas que não têm mais que fazer do que guardar informações.” Por isso, ambas as responsáveis defendem alterações profundas nos modelos de educação, pegando em exemplos de colégios, públicos ou privados, que orientam os alunos na procura de melhores perguntas, em vez de os punirem por tentarem encontrar outras respostas para a mesma questão.
A partir daqui será também possível ter líderes mais conscientes das empresas que gerem, das pessoas que lideram e da sociedade onde se inserem. Para Maria Antónia, é também urgente ouvir os mais novos dentro das organizações. “Por uma questão de sobrevivência, tens de ouvir várias gerações, pessoas com diferentes experiências e backgrounds. Se o teu conselho de administração é constituído só por homens, brancos, na casa dos 50 anos, que estudaram numa faculdade de formação de executivos de topo, nunca viveram fora, com todo o respeito, o que vai acontecer é que metade das pessoas vai desinteressar-se”, atira.
No mesmo sentido, referem, é preciso que os governos e institutos públicos tenham noção da falta de diversidade e de pensamento e tentem corrigi-la para garantirem instituições mais bem preparadas e que ponham as pessoas, não as políticas económicas, no centro das decisões. A falta de qualidade em alguns lugares de topo prende-se com a falta de vontade de se ligarem a sistemas que começaram a perder a confiança dos cidadãos, consideram. “Os melhores de nós não se lançam na política”, atira a investigadora do ICS. “Esta está tão desqualificada que os melhores não estão aí. E não acho que o Governo tenha de ser um comité de prémios Nobel, mas tem que ver com a mesma postura do professor na escola.” E ilustra-o com a estratégia de comunicação do Governo para a pandemia, com conferências de imprensa, “longas, lentas, monocórdicas”. “Não se pensa que há alvos que têm de ser atingidos? Recetores com experiências completamente diferentes?”, questiona, apontando a falta, nas comissões de acompanhamento do Governo, de especialistas em comportamentos individuais e coletivos que definam os destinatários da mensagem.
“Vai-se comunicando informação, muito mais do que conhecimento, e nós temos de perceber qual o racional por detrás de cada medida. Eles não podem pensar que estão a lidar com o Portugal dos anos 1960.”
Maria Antónia e Ana pedem ainda que as franjas da sociedade não sejam esquecidas, quando alguns inquéritos – como o Edelman Trust Barometer ou os levados a cabo por Blair Sheppard, autor da obra Ten Years to Midnight – sinalizam que são mais os que se sentem abandonados pelo sistema do que os que se sentem de alguma forma servidos por ele. “Não é sustentável termos tanta gente fora do sistema, sem perspetivas. Uma coisa é termos 15% de pessoas fora do sistema. Outra é ter 15% das pessoas dentro dele”, realça a executiva portuense, enquanto Ana pede atenção para outro número: “Em Portugal, um quarto das famílias vive abaixo do limiar da pobreza. Isto é um número escandaloso! Devia estar chapado à saída do Palácio de São Bento. É indigno! É evidente que os partidos falam disto, mas, na prática, o que fazem para mudar? Nada! Talvez o façam agora por causa da pressão dos populismos, mas possivelmente já vão tarde”, avisa a cientista que partilha com Maria Antónia uma significativa preocupação com o crescimento dos discursos populistas.
“Durante muito tempo, a sociedade organizou-se em pilares em que aquelas coisas básicas da vida quotidiana não estavam acauteladas. Sendo o continente europeu a zona mais rica do mundo, é inconcebível que ele não estivesse preparado, em termos de estruturas, para uma crise destas”, lamentam. “Se os governos não estão a tratar disso, estão a tratar de quê? Os nossos impostos estão a financiar em milhares de milhões de euros a TAP, os bancos, e deixamos a descoberto a saúde, a educação. Nós só temos saída para isto com conhecimento, Ciência e planeamento – e as pessoas ao centro.”