“Enquanto muitos cidadãos se tornaram pobres de repente, os pobres tornaram-se ricos.” Os trabalhadores pedem agora “vinhos de qualidade e carnes acima do seu nível”, e trabalham “quando lhes apetece e gastam o resto do tempo em tabernas a jogar e a divertirem-se”. Estas frases podiam ser lidas em decretos de regiões europeias no século XIV, fruto da ansiedade que as elites sentiam em relação a uma recém encontrada mobilidade social no pós-Peste Negra.
Estima-se que a peste bubónica tenha eliminado metade da população da Europa, um desastre inimaginável e incomparável com os tempos que estamos a viver. No entanto, no momento da recuperação económica, essa perda de vidas traduziu-se em falta de mão de obra, o que, conjugado com a existência do mesmo número de terras e ferramentas, criou um ambiente favorável aos trabalhadores que sobreviveram. Em “economês”, isso significa que foi destruído capital humano (as mortes pela pandemia), mas não capital físico. Algumas colheitas terão apodrecido, mas se o terreno era fértil, continuará a sê-lo.
Em Florença, por exemplo, os salários duplicaram entre 1350 e 1400. Noutros pontos da Europa, os trabalhadores passaram a exigir melhores condições, como animais para lavrar a terra. Alguns historiadores veem neste período uma queda histórica da desigualdade.
“Pessoas que tinham pouco ou nenhuma propriedade puderam comprar. Talvez ter um campo ou simplesmente um quintal com vegetais, um pomar, ou comprarem uma pequena casa”, explica Guido Alfani, historiador económico na Universidade de Bocconi, em declarações à NPR. “Isto refletiu uma queda significativa da desigualdade de rendimento e de riqueza”, formando uma ilha de maior equidade que durou algumas décadas. Uma raridade nos últimos 700 anos. “É impressionante, porque, depois disso, a única outra ilha está associada às guerras mundiais.”
Esses ganhos podem ser observados de forma indirecta. Ao analisar diferentes camadas de um glaciar, por exemplo, é possível ver que começou a haver menos produção de cereais e mais pasto para animais. As zonas onde está depositado lixo medieval também mostram que a dieta se tornou mais variada e com mais proteína.
Existe algum debate académico sobre se estes foram ganhos reais ou uma resposta a subidas de preços e manipulações monetárias, mas o que não parece haver dúvidas é que as elites ficaram bastante nervosas com estes desenvolvimentos.
“As elites no poder, na Europa, viam a Peste Negra como uma nova ameaça abrupta aos códigos sociais e às estruturas políticas e económicas da era pré-peste. A suposta ‘ganância’ dos trabalhadores e artesãos era uma das ameaças que as elites temiam. De repente, elas viam-se prejudicadas não apenas pelos ‘salários pouco razoáveis’, que os trabalhadores exigiam, mas também por aquilo que viam como ‘novos hábitos’ dos trabalhadores”, escreve Samuel Cohn, no seu estudo Depois da Peste Negra, sobre alterações na legislação laboral na Europa pós-epidemia.
O medo era tão grande que foram aprovadas várias leis que procuravam limitar essa mobilidade. Em Inglaterra, por exemplo, ainda durante a Peste Negra, havia legislação que penalizava tanto o trabalhador que exigisse um pagamento mais elevado como quem lhe desse. Havia leis para proibir o movimento de trabalhadores para que estes não exigissem mais dinheiro ou melhores condições noutras regiões, e foi inclusivamente criado um “salário máximo” (curiosamente, uma proposta que hoje se discute, mas para aplicar aos multimilionários, como ferramenta de combate à desigualdade). Foram também aprovadas uma série de leis sumptuárias, em que se limitava o tipo de tecido ou a cor que alguém podia vestir e a carne que podia comer, tendo em conta a sua posição social.
“Não lhe chamaria uma era dourada”
Helen Lacey, professora de História Medieval em Oxford e parte da equipa do projecto “The People of 1381”, explica que os avanços na capacidade negocial dos trabalhadores existiu, mas que as elites foram eficazes na forma como conseguiram limitar esses ganhos.
Em resposta por email à VISÃO, nota que se há uma lição a tirar destes episódios é a atenção que deve ser dada ao descontentamento das classes trabalhadoras na gestão de uma pandemia. Num próximo artigo, falaremos com uma economista sobre como os trabalhadores vão provavelmente sair da crise provocada pela Covid-19 ainda com menos poder do que já tinham antes.
Como caracterizaria as condições de trabalho antes da Peste Negra, especificamente o poder de negociação dos trabalhadores?
Os historiadores concordam que, antes da Peste Negra, havia um excedente de mão-de-obra na Europa. A população estava no seu pico medieval, portanto com as estruturas existentes, os senhores feudais tinham uma oferta pronta de trabalhadores para trabalhar a terra para eles e poucos incentivos para lhes dar melhores condições de trabalho. Isso significava que o poder negocial era baixo (lembre-se que alguns destes camponeses trabalhavam para esses senhores como arrendatários feudais, enquanto outros eram “livres”). Existiam, claro, fortes diferenças locais e regionais. Algumas zonas da Europa de Leste foram comparativamente menos afetadas, enquanto Itália, França, Espanha e Grã-Bretanha tiveram níveis de mortalidade muito elevados (mesmo nesses países, algumas regiões tiveram taxas de mortalidade mais baixas).
De que forma é que a Peste Negra mudou essas condições?
O principal efeito da Peste Negra foi obviamente a quebra drástica da população: os historiadores estimam que as taxas de mortalidade chegarem a ser de 50% em algumas regiões num curto período de tempo (1348-50). Houve também a repetição de surtos na décadas seguintes, que mantiveram a população em níveis baixos. Segundo a economia da oferta e procura, isto deve ter permitido aos trabalhadores que sobreviveram ter uma posição negocial melhor, mas os governos tentaram contrariar isto ao publicarem leis que mantinham os salários baixos. No longo prazo, contudo, as estruturas feudais foram desaparecendo (embora isto tenha ocorrido a ritmos diferentes em nas regiões europeias).
É um exagero dizer que se iniciou, em termos relativos, uma espécie de “era dourada” do trabalho?
Acho que “era dourada” é demasiado forte, especialmente dado o poder dos governos para manter os salários baixos através de nova legislação. Algumas pessoas beneficiaram ao conseguirem acumular terras e tornarem-se rendeiros. Ao fim de algumas gerações, uma família podia elevar-se à classe média. Mas não, não lhe chamaria uma “era dourada”. Em Inglaterra, a revolta nacional ocorreu em 1381 devido, em parte, às ambições frustradas dos trabalhadores, a quem não foi dado acesso a novos bens, roupas, etc… A ideia de que foi uma “idade de ouro” para as mulheres também já foi refutada.
As elites económicas e sociais pareceram ansiosas com estes desenvolvemos. Foram eficazes nas suas tentativas de travar a subida dos salários ou o acesso de trabalhadores a novos bens?
Sim, as elites ficaram definitivamente ansiosas e, pelo menos em Inglaterra, foram capazes de usar esse poder para passar leis restritivas (legislação laboral e leis sumptuárias). No curto prazo, isto foi muito eficaz, embora no longo prazo pareça que as condições de vida tenham melhorado gradualmente.
Há lições a aprender para lidar com a atual pandemia?
Bom, como é óbvio estamos a lidar com uma situação muito diferente hoje, em primeiro lugar porque a taxa de letalidade da Covid é apenas uma fração da Peste Negra. Mas acho que uma coisa a referir seria um perigo do descontentamento entre as classes trabalhadores se os efeitos da pandemia forem mal geridos. Devem os governos pagar um rendimento universal? Devem eles compensar os pequenos negócios por perdas de rendimento durante os confinamentos? Devem usar abordagens regionais?