Sábado, André Ventura e o Chega desceram a Avenida da Liberdade com algumas centenas de pessoas, quase todas brancas, para declarar que “Portugal não é racista”. Foi mais um capítulo numa discussão que começa a ganhar fôlego sobre a relação do País com a discriminação racial. No entanto, o debate não se faz colocando uma cruzinha à frente do “sim” ou do “não”. Muitos portugueses não se consideram racistas, mas assumem em inquéritos opiniões que discriminam outras raças. Nalguns casos, esses preconceitos podem ser mais profundos e envolver uma associação automática de sentimentos negativos a diferentes grupos. A falta de reflexão acerca desse preconceito implícito pode contribuir para o empobrecimento do debate e para maior lentidão no progresso.
No dia da manifestação do Chega, o Público divulgou os últimos resultados do mais recente European Social Survey (ESS, de 2018/2019). O estudo concluía que 62% da população portuguesa tem opiniões racistas. Isto é, que responde “sim” a pelo menos uma destas três perguntas: “há grupos étnicos ou raciais por natureza mais inteligentes?”, “há grupos étnicos ou raciais por natureza mais trabalhadores?” e “há culturas, por natureza, mais civilizadas que outras?” Só 11% dos inquiridos respondeu “não” a todas.
Em específico na pergunta sobre a existência de etnias mais inteligentes do que outras, 30,4% dos portugueses concorda com essa ideia racista. Entre os que têm mais de 75 anos, a percentagem dispara para 57%.
No artigo do Público não aparece uma comparação destes novos dados com outros países. Mas no último ESS, Portugal tinha a pior classificação entre os países europeus analisados na categoria de racismo biológico (há etnias mais inteligentes/mais trabalhadoras?); e o quinto maior no racismo cultural (há culturas mais civilizadas?).
E o que dizem as minorias? No Twitter, a politóloga Marina Costa Lobo citava o relatório “Being Black in the EU”, que concluía que 26% dos afrodescendentes portugueses tinham amigos ou familiares que, nos últimos 12 meses, foram alvo de insultos racistas. Fica acima da média de 20% da União Europeia.
Noutros indicadores, como assédio ou violência racista nos últimos cinco anos, Portugal até aparece melhor do que a média, assim como na percentagem de afro-descendentes empregados. Contudo, quando se comparam as condições de vida, verifica-se que Portugal tem uma das maiores diferenças entre os países analisados. Por exemplo, 21% dos afro-descendentes vive em casas sem condições, o que compara com 5% para a totalidade da população nacional.
Preconceito mais profundo
Estes dados resultam de respostas concretas a perguntas sobre experiência diária ou sobre a nossa opinião. Mas nem sempre aquilo que dizemos é aquilo que pensamos e, por vezes, podemos até estar enganados em relação aquilo que achamos ser a nossa visão. Os preconceitos podem ser mais profundos.
Alexander Coutts, professor da Nova SBE, decidiu analisar o panorama global do preconceito em relação a outras raças. Para o fazer, utilizou os dados do Teste de Associação Implícita (IAT, na sigla em inglês), que tenta medir quão rápida é a nossa associação de palavras negativas/positivas a caras de brancos/negros. “Muitas pessoas têm reações negativas a aranhas. Sem pensar, quando vêem uma aranha, vêm-lhe rapidamente à cabeça pensamentos negativos e medo. O IAT tenta medir quão rápidas são estas associações automáticas, de forma a medir a dimensão do preconceito”, explica à EXAME. Pode fazer o teste aqui.
O resultado não é muito animador. Em todos (!) os 146 países do mundo, observa-se um viés pró-brancos. Entre os 3,75 milhões de pessoas que fizeram o teste por todo o mundo, 21% tem um viés forte pró-brancos e 26% um viés moderado pró-brancos. Mais: todas as raças apresentam essa tendência pró-branco, excepto os negros que não apresentam qualquer preconceito implícito pró-negro ou pró-branco.
O teste foi respondido por 2.500 portugueses. Embora o resultado individual de países interesse menos – a comparação depende muito de quem faz o teste -, devemos referir que Portugal está perto do topo de países como maior preconceito (no top 30), com 71% da população a mostrar um viés pró-branco. Isto é, associam de forma mais automática sentimentos positivos a caras de pessoas brancas. A seta vermelha, colocada pela EXAME, assinala a posição de Portugal entre todos os países.
“Comparar a posição exacta no ranking de diferentes países não é o objectivo – os rankings são afetados pelo tipo de pessoa que faz o teste e a precisão depende de quantas pessoas o fazem. Mas o quadro geral mostra-nos que existe um problema sério, ao observarmos um preconceito contra a população negra em todos os países”, refere Coutts.
Porque é que isto é importante? Porque nas nossas vidas tomamos diariamente dezenas de decisões que podem ser influenciadas por estes preconceitos implícitos mesmo que não demos conta que eles existem. Do jornalista que tem de escolher pessoas para falar num artigo a um polícia que pode ter de disparar uma arma. Uma grande fatia desses 71% não se considerará certamente racista e muitos deles talvez até respondam de forma negativa a algumas perguntas do ESS, referido em cima. Mas isso não significa que não sejam influenciados por estas associações automáticas negativas ou positivas na sua tomada de decisões.
“Claro que estas pessoas não são skinheads e muitas delas não se considerariam racistas. Mas o que pode ser mais prejudicial para uma sociedade podem ser aqueles entre nós que não se consideram racistas, mas que têm preconceitos implícitos. São pessoas normais que gerem a contratação de trabalhadores, reportam as notícias e ensinam a próxima geração. O que estes resultados mostram é que são essas pessoas, muitas sem se aperceberem, que podem estar a travar o progresso dos grupos não-brancos”, refere o académico.
Embora esta metodologia do IAT tenha limitações – existe até algum debate sobre a sua utilidade científica – resultados elevados neste indicador correlacionam-se com respostas que evidenciam opiniões racistas. Desde achar que algumas raças são mais inteligentes do que outras, até assumir-se desconfortável com relações com outras raças.
O papel dos media
Alexander Coutts é canadiano, mas vive em Portugal desde 2015. Uma das coisas que mais o tem impressionado neste período de debate mais intenso sobre racismo em Portugal é o papel dos media. Em específico, a forma como tem sido noticiado o movimento Black Lives Matter (BLM) e os protestos organizados no início deste mês.
“Eu imaginaria que os media se esforçassem mais para entrevistar manifestantes e ouvir o seu lado da história, partilhar as suas experiências em Portugal. Quando milhares de pessoas marcham por todo o país, seria importante tentar perceber porquê. Em vez disso, parte da cobertura foi muito literal, descrevendo simplesmente que houve um protesto. Outro tipo de cobertura noticiosa focou-se noutros temas, como cartazes ofensivos empunhados por manifestantes brancos”, sublinha o professor da Nova.
Coutts tem escrito bastante sobre o tema no Twitter. E apontou recentemente a diferença de tratamento entre a manifestação BLM original e a contra-manifestação de André Ventura. À EXAME, o académico nota que “é preocupante ver que tantas discussões em Portugal serem superficiais, em comparação com o debate que está a acontecer nos EUA e acho que os media têm um papel a desempenhar na tentativa de analisar mais a fundo as frustrações de tantas pessoas”. “Em Portugal, discutir racismo parece ser tabu”, acrescenta.
Alexander Coutts respondeu à EXAME por email. Em baixo seguem as respostas completas.
“O que pode ser mais prejudicial podem ser aqueles que não se consideram racistas, mas que têm preconceitos implícitos.”
Qual era o objetivo do paper?
O objetivo do paper era ter uma visão abrangente da preconceito racial implícito por todo o mundo. Até agora, os investigadores têm-se concentrado em pequenos grupos, normalmente apenas num país. Em vez disso, o meu objetivo era dar um passo atrás e olhar para o quadro geral – será o preconceito racial um problema por todo o mundo? Em vez de analisar se os países são melhores ou piores do que a média, a ideia era avaliar até que ponto existe um problema geral.
O estudo tem por base o IAT. O que é que ele tenta apanhar?
Preconceitos implícitos têm a ver com reações automáticas que temos a alguma coisa (ou a um grupo de pessoas) e que pode afetar o nosso comportamento. Por exemplo, muitas pessoas têm reações negativas a aranhas. Sem pensar, quando vêem uma aranha, vêm-lhe rapidamente à cabeça pensamentos negativos e medo. O IAT tenta medir quão rápidas são estas associações automáticas, de forma a medir a dimensão do preconceito. No caso do IAT sobre raça que eu estudo, ele mede quão rápido associamos palavras negativas com caras de brancos vs. negros. Isso pode capturar quão forte ou automático é esse preconceito racial, que os psicólogos mostram estar correlacionado com atitudes racistas.
Que relação podemos estabelecer entre estes resultados e o nível de racismo de um país?
Ao analisar milhares de pessoas que fizeram o teste em cada país, é possível calcular o resultado médio do viés racial para cada país. Uma média elevada é um sinal forte que as pessoas testadas nesse país têm um preconceito racial contra negros. Isso é confirmado ao comparar estes resultados com os inquéritos sobre racismo na Europa. Em média, quanto mais elevado for o resultado, mais atitudes racistas haverá, segundo medem os inquéritos.
Ficou surpreendido por haver um viés contra os negros em todos os países, mesmo quando a maioria da população é negra? O que pode explicar esse resultado?
Não fiquei muito surpreendido por encontrar preconceito em média pelos países, mas foi impressionante encontrá-lo em todos eles. Só quando olhamos apenas para as respostas de negros é que esse viés médio desaparece.
No mês passado, houve notícias sobre o racismo contra negros na China durante a crise do coronavírus e mais recentemente tem havido indignação na Índia acerca de produtos de embranquecimento da pele. Portanto, os sinais existem. É mais difícil dizer o que pode explicar isto – existem contribuições de normas locais, História e globalização. Cada país tem a sua manifestação e história de racismo. Vemos frequentemente racismo nos EUA como extremo, mas os EUA também um outlier noutras formas, como o número de mortes pela polícia. As mortes provocadas pela polícia tornam o racismo nos EUA mais saliente, mas os dados mostram que, em termos de atitudes implícitas, a maior parte dos países até têm um viés racial maior do que nos EUA.
Portugal parece estar classificado bem perto do topo no preconceito contra negros. Como caracterizaria os resultados dos portugueses?
Os resultados colocam Portugal muito alto no ranking, mas não acho que seja importante focarmo-nos na posição exata. Estes resultados devem motivar toda a gente a refletir sobre o problema de preconceito racial de forma mais cuidadosa.
A realidade é que existem diferentes graus de preconceito. Em Portugal, 71% das pessoas que fizeram o teste mostraram alguma forma de viés contra negros. Claro que estas pessoas não são skinheads e muitas delas não se considerariam racistas. Mas o que pode ser mais prejudicial para uma sociedade podem ser aqueles entre nós que não se consideram racistas, mas têm preconceitos implícitos. São pessoas normais que gerem a contratação de trabalhadores, reportam as notícias e ensinam a próxima geração. O que estes resultados mostram é que são essas pessoas que, muitas sem se aperceberem, podem estar a travar o progresso dos grupos não-brancos.
Reconhece que esta metodologia tem limitações. Não nos devemos concentrar em resultados específicos, mas mais em grandes tendências?
Exacto. Comparar a posição exacta no ranking de diferentes países não é o objectivo – os rankings são afetados pelo tipo de pessoa que faz o teste e a precisão depende de quantas pessoas o fazem. Mas o quadro geral mostra-nos que existe um problema sério, ao observarmos um preconceito contra a população negra em todos os países. Se Portugal é nº1 em 150 ou 75º ou até 100º não interessa de uma perspetiva de políticas. Os responsáveis políticos devem tentar investigar e fazer o que puderem para melhorar a situação.
Como se compara este resultado de Portugal com outros dados – e talvez até com a sua experiência de viver em Portugal – qual lhe parece ser a nossa relação com o racismo?
Acho que a maior diferença depois de ter vivido nos EUA é que em Portugal discutir racismo parece ser tabu. Os dados mostram que o racismo é um problema em Portugal, mas ao viver cá é impressionante ver a divisão racial que existe, com uma maioria de brancos em posições de visibilidade (professores, médicos, advogados, jornalistas, mas nos serviços na relação com o cliente); e trabalhadores de ascendência africana em posições como cozinheiros, trabalhadores domésticos e empregos sem visibilidade.
É preocupante ver tantas discussões em Portugal serem superficiais, em comparação com o debate que está a acontecer nos EUA e acho que os media têm um papel a desempenhar na tentativa de analisar mais a fundo as frustrações de tantas pessoas. Cientistas e responsáveis políticos também precisam de dados para estudar o problema. É essencial que Portugal mude as suas leis para permitir que os investigadores recolham dados voluntários sobre etnia.
O que quer dizer com o debate ser superficial? No Twitter, escreveu uma thread sobre como os media portugueses se focam em temas laterais quando cobrem as manifestações Black Lives Matter? Como é que isso pode ser um problema?
Acho que o exemplo dos protestos em Portugal pode ilustrar o que eu quero dizer por superficial. Eu imaginaria que os media se esforçassem mais para entrevistar manifestantes e ouvir o seu lado da história, partilhar as suas experiências em Portugal. Quando milhares de pessoas marcham por todo o país, seria importante tentar perceber porquê. Em vez disso, parte da cobertura foi muito literal, descrevendo simplesmente que houve um protesto. Outro tipo de cobertura noticiosa focou-se em outros temas, como cartazes ofensivos empunhados por manifestantes brancos (nos EUA, cartazes semelhantes já foram usados por grupos extremistas, por vezes para enfraquecer o apoio aos protestos).
Acho que é perigoso, porque pode criar uma maior divisão entre quem está a protestar e quem está a ler sobre os protestos a partir de casa. Quando os media não investigam os motivos de queixa dos manifestantes e até seguem as narrativas que o deslegitimam, não está a ser dado a quem está em casa um racional forte para justificar os protestos. Alguns na extrema-direita usam essa negatividade a seu favor.
Por outro lado, os manifestantes e os assuntos não são abordados. Se este padrão continuar, os dois lado ficarão cada vez mais afastados um do outro e estas tensões apenas se agravarão, e a extrema-direita só se tornará mais popular. Os media são decisivos para impedir isso. Ao dar informação sobre os motivos pelos quais os protestos estão a acontecer e explicar as experiências de grupos minoritários no país, as pessoas terão mais informação para perceber “o outro lado”.