Há poucos meses surgiu uma notícia que me surpreendeu: os 10 mil passos por dia que os nossos smartphones celebram, não têm significado nenhum. Quer dizer, andar faz bem. Mas não existe nenhum limiar a partir do passo 9.999. Aquele número nasce de uma manobra de marketing, porque o kanji para 10.000 ( 万 ) parece uma pessoa a caminhar. Isso fez-me lembrar de várias situações semelhantes em economia. Existem indicadores e regras económicas que estão connosco há tanto tempo que quase as julgamos leis naturais. O défice tem de ser inferior a 3%, como o planeta não pode aquecer mais de 2 graus face à média pré-industrial. Por vezes, é útil lembrar as origens destes números que idolatramos, para relativizar a sua relevância. Rapidamente se perceberá que eles têm a importância que nós escolhemos dar-lhes e que escolhas diferentes poderiam dar origem a resultados distintos.
PIB, inflação, desemprego, défice, exportação e competitividade são exemplos de conceitos dominam as nossas vidas, mesmo sem darmos conta disso. Economistas, políticos e jornalistas repetem-nos até ao enjoo, mas normalmente não se reflete acerca do seu significado. Damos-lhes demasiada atenção? “Definitivamente atribuímos-lhes demasiada importância”, responde Zachary Karabell, consultor e autor, em resposta às perguntas da VISÃO. “Nas últimas décadas, os governos de todo o mundo têm feito depender o sue sucesso de aumentar o PIB e de coisas como a taxa de empregabilidade e a inflação. Mas num mundo onde grandes empresas podem crescer sem contratar trabalhadores, o PIB pode aumentar sem que a grande maioria dos cidadãos melhore o seu rendimento ou condições de vida.”
Grande parte dos conceitos que utilizamos hoje foram criados para medir a economia do século passado, essencialmente baseada em bens e indústria. O mundo atual traz muito mais desafios a esse acompanhamento, com um peso maior dos serviços e um crescimento gigante do digital. Karabell escreveu em 2014 o livro “The Leading Indicators”, onde conta parte da história dos números mais importantes das nossas vidas. Hoje, argumenta que “devemos reconhecer que essas métricas são limitadas naquilo que nos conseguem dizer” e que “o sucesso de um país não deve ser medido apenas por esses indicadores”. “Devíamos começar a pensar como vamos medir um mundo com fatias cada vez maiores da atividade comercial online e onde muitas das atividades não têm custos, como uma pesquisa no Google ou uma conta no Instagram.”
Uma forma de relativizar a sua importância é recordar a sua origem ou explicar o que está por trás dos conceitos:
Défice: um tecto decidido em menos de uma hora
Hoje, 3% do PIB de défice é um limite tido como indiscutível na União Europeia. Mas de onde nasceu este número? Se acha que ele tem uma grande base teórica, desengane-se. Um artigo do “Le Parisien” de 2012 entrevistava o “senhor 3%”, Guy Abeille, um ex-alto funcionário do ministério das Finanças francês. Ele revela que chegaram ao número em menos de uma hora, no canto de uma mesa, e que o processo “não teve qualquer reflexão teórica”. Em 1981, François Mitterrand queria um número simples para dar aos ministros que lhe vinham pedir mais dinheiro. 1% ou 2% era demasiado ambicioso para a situação das contas francesas, portanto escolheram 3%, também porque “faz lembrar a Santíssima Trindade”. Seria depois Mitterrand a “dar-lhe legitimidade” e o resto é História.
Mais tarde, os economistas teorizaram acerca dele e consideraram-no adequado para manter a dívida nos 60% do PIB. Ambos acabariam por ser integrados no Tratado de Maastricht, assinado em 1992. Os países deixaram de poder ultrapassar os 3%, sob pena de ficarem sujeitos a uma vigilância mais apertada de Bruxelas e, posteriormente, a sanções. Foi para cumprir esse limite que a Europa teve de passar pela dor da austeridade.
Hoje, sabemos que os limites para o défice e para a dívida podem estar desatualizados no atual ambiente económico, de juros muito baixos. Os pressupostos da década de 90 assumiam um crescimento de 3% ao ano e inflação de 2%, com juros de longo prazo em 5%. Hoje, o crescimento esperado é metade desse, mas os juros afundaram drasticamente. “Sob estas condições, um limite de 3% do PIB para o défice é, de facto, bastante frouxo. Se as taxas de juro de longo prazo permanecerem próximas de zero por mais alguns anos, os governos poderão ter défices primários superiores a 2% do PIB sem exceder esse limite”, escrevia há alguns meses Jean Pisani-Ferry, investigador do ‘think tank’ Bruegel e uma das vozes mais influentes da política económica europeia. Além disso, nova investigação académica tem colocado em dúvida se o endividamento público tem sequer um custo orçamental.
PIB: empregadas domésticas, tráfico de droga e gorjetas
O PIB é a nossa medida universal para produção de riqueza. Se está a crescer rápido, é porque a economia está no bom caminho. Se estiver a passo de caracol ou a recuar, é mau sinal. Contudo, o PIB não faz contas à distribuição dessa riqueza (pode uma minoria estar capturar uma fatia gigantesca), nem tem em conta, por exemplo, a poluição de um rio ou a destruição de uma floresta (até pode aumentar mais nessas situações). Mais: o cálculo do PIB não inclui toda a criação de valor. Por exemplo, o PIB não consegue incorporar o trabalho doméstico que faz em sua casa, embora passar a ferro e cozinhar tenham obviamente um valor económico (basta ir ao McDonald’s ou ao Belcanto). Se todos decidíssemos deixar de cuidar da nossa casa de graça e pagar aos nossos vizinhos para o fazer, o PIB dispararia.
A OCDE estimava em 1990, que o trabalho doméstico não pago representava 35% do PIB na Alemanha e 50% na Austrália. Há uma brincadeira que os economistas por vezes repetem: se não quer prejudicar o PIB, não case com a sua empregada. Este é só um exemplo de como as nossas escolhas sobre o que entra ou não no PIB influenciam a perceção da realidade. Em 1987, Itália incluiu atividades ilegais no PIB, permitindo-lhe concretizar o “il sorpasso”, ultrapassando o Reino Unido como quinta maior economia do mundo.
Em 2014, os países europeus passaram mesmo a incluir no PIB a prostituição, tráfico de droga e contrabando (a “economia não observada”). Como se chega lá? Em Portugal, o INE olha para números da polícia, relatórios do Instituto da Droga e da Toxicodependência, da European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction e das Nações Unidas. Analisam o tipo de droga, prevalência de consumo, frequência, preços e pureza. Quanto à prostituição, usam-se dados da polícia ou ONG. Estudos académicos e artigos de jornais também podem ser fontes. A partir daí, aplica-se uma série de hipóteses: número de clientes por noite, número de dias de trabalho, preço médio, etc…
Os institutos de estatística estimam também a produção agrícola para consumo próprio. Ou seja, quanto é que eu plantei em alfaces e tomates no meu quintal (o INE diz que é 0,6% do PIB português). Até as gorjetas entram nestas contas, através de arredondamentos dos preços médios das bandeiradas, entre outras técnicas. São muitas hipóteses, ajustamentos e extrapolações. Não é polémico dizer que essas estimativas podem facilmente falhar o alvo. E certamente que opções diferentes nos dariam outra imagem da realidade.
Inflação: os kiwis e a política monetária
É outro número que parece que está connosco desde sempre, como se fosse uma lei natural. Contudo, ela não existe assim há tanto tempo. Há 30 anos, a Nova Zelândia foi o primeiro país a fixar 2% como o objetivo de evolução anual dos preços. No final dos anos 80, Don Brash vivia do cultivo de Kiwis. Em 1988 saiu da New Zealand Kiwifruit Authority para a liderança do banco central do país, depois de uma década de inflação quase sempre nos dois dígitos. Os sindicatos temiam os efeitos que assumir essa meta poderia ter nos salários. Os patrões também desconfiavam. Mas ao definir o valor, isso permitiu condicionar os aumentos salariais e de preços, dando previsibilidade a trabalhadores e patrões. Foi uma espécie de profecia autorrealizável. E como decidiram que seria 2%? “Foi um valor quase ao calhas”, explicou Brash. Um ex-ministro das Finanças tinha falado em 0% ou 1% e eles simplesmente escolheram um número que lhes desse um pouco mais de margem. Em dois anos, a inflação neozelandesa recuou de quase 8% para os 2% pretendidos. Aos poucos, outros países começaram a imitar este método e estabelecer metas. Hoje, muitos questionam a fixação da meta em 2% e alguns economistas têm proposto valor superiores, como 4%, que deem aos bancos centrais mais margem de manobra. O Nobel da Economia Paul Krugman veio ao Fórum BCE em Sintra propor precisamente isso.
Inflação II: hedonismo na economia
A inflação mede simplesmente a subida e descida dos preços, certo? Mais ou menos. A verdade é que essa lógica convive com ajustamentos, alguns dos quais pouco transparentes. Em 2004, Bill Gross, gestor daquele que chegou a ser o maior fundo do mundo, disse que a forma como se mede a evolução dos preços é uma “fraude”. Por trás da sua argumentação está aquilo a que se chama “ajustamento hedónico”, que procura capturar as melhorias de qualidade dos produtos. Por exemplo, se eu comprar um computador mais rápido do que aquele que uso atualmente, mas gastar o mesmo dinheiro nele, estatisticamente é provável que isso apareça como uma descida dos preços. Isto é especialmente relevante para artigos tecnológicos, mas também se aplica, por exemplo, a roupas. O ajustamento até pode fazer sentido económico, mas afasta as estatísticas daquilo que se passa na minha vida. Não é assim que eu sinto os preços na minha carteira. Há quem defenda que esse tipo de ajustamento leva também a que as estatísticas subestimem sucessivamente a inflação.
Desemprego: não basta estar sem trabalho
Ao contrário do que passa pensar, um desempregado não é uma pessoa que não tem trabalho. Essa é uma das condições, mas está longe de ser a única. Para ser desempregado tem de ter mais de 15 anos, estar sem trabalho, estar disponível para trabalhar e ter procurado ativamente emprego nas três semanas anteriores. No segundo trimestre deste ano, a taxa de desemprego oficial era 6,3%, mas se juntássemos os subempregados (trabalham poucas horas), os desencorajados (não procuraram) e os não disponíveis, o valor disparava para 12,4%. O INE passou a publicar recentemente esse indicador: chama-lhe taxa de subutilização do trabalho (há quem lhe chame “desemprego real”). A forma como está construído o conceito muda a nossa visão acerca da situação do mercado de trabalho.
Comércio: o iPhone é chinês?
Indicadores “convencionais”, como os dados de exportações e importações, têm dificuldades em captar a complexidade das relações comerciais atuais. O método utilizado para atribuir a “paternidade” de um produto é normalmente a lógica “made in”. O iPhone é feito na China, portanto é considerado uma exportação chinesa. Mas o iPhone 4, por exemplo, tinha uma câmara alemã, um ecrã táctil japonês e tecnologia Bluetooth americana. A China dava “apenas” a sua força de trabalho, paga com salários baixos. Embora cada smartphone alargasse o défice comercial entre os EUA e a China, a economia chinesa ficava apenas com 10 dos 401 dólares de valor total distribuído entre os vários países que participavam na cadeia de produção do iPhone 4. Desses 401 dólares, 321 ficavam para a Apple, uma empresa americana (a actualização desses valores em 2018 apenas reforçou estas conclusões). “Devemos ter cuidado com estatísticas de comércio, que têm dificuldades em refletir o país de origem [de um produto]. Um iPhone pode ser “made in China” porque é onde foi montado, mas as suas partes vêm de países de todo o mundo e pode ser invisível nas estatísticas”, diz Karabell. A OCDE tem recomendado que se comecem a utilizar formas mais sofisticadas de medir estes fenómenos, através da observação de “cadeias de valor globais”.
Competitividade: quem é o maior do recreio?
Um dos eventos que os jornais económicos mais gostam de noticiar são os índices de competitividade. É um tema sedutor: tem listas, rankings e classificação de países. Permite sempre fazer o título “Portugal subiu/caiu X lugares”. Mas o que é que isso significa? Provavelmente o índice mais famoso é publicado pelo Fórum Económico Mundial, responsável por organizar o seu famoso evento anual em Davos. O ranking procura mostrar quais são os países mais “competitivos”. Isto é, quem consegue exportar mais, captar mais investimento, iniciar negócios…
O problema é que estes índices têm muitos ingredientes subjetivos. Uma grande fatia dos indicadores não reflete indicadores quantitativos (que se podem medir), mas sim a opinião dos empresários. Além de ser uma visão limitada da sociedade, os resultados dependem das expetativas. Por exemplo, Portugal é o 116º país do mundo com pior classificação na eficiência do sistema legal para resolver disputas, atrás de Mongólia, Congo, Líbano, Cambodja e empatado com Moçambique; está em 40º na protecção de direitos de propriedade, atrás de Marrocos e Malásia; tem apenas os 127º bancos mais sólidos do mundo, empatado com o Haiti e o Zimbabué e atrás de Bangladesh Venezuela e Mali; e por aí fora. Não significa que o exercício não tenha utilidade, mas importa saber as suas limitações para lhe conseguirmos dar uso.
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