A rapidez de discurso de Ana Alcobia, diretora do Time Out Market, contrasta com a serenidade de Luísa Amorim, CEO da Quinta Nova, numa manhã quente de outono em Lisboa. Estamos, como sempre, no Martinhal Chiado, parceiro da Girl Talk, para uma conversa sobre marcas e consumidores. E cedo houve uma conclusão que se tornou óbvia: os clientes querem hoje mais surpresas, estão mais disponíveis para pagar por produtos com selo nacional e uma marca só sobrevive se se mantiver fiel aos seus princípios.
“Trabalho num mercado onde proliferam marcas todos os dias, mais do que os cogumelos”, ri-se Luísa Amorim. “O consumidor não vai beber todos os dias o mesmo vinho. E cada vez tem mais expertise. É salutar que trabalhemos, nós produtores, uns com os outros, porque as pessoas querem experiências diferentes”, nota, quando questionada sobre como se lida com a concorrência num setor que vê nascer centenas de marcas todos os anos. “Até podemos estar a falar de um consumidor que possa pagar €150 ou € 200 por uma garrafa de vinho, mas numa refeição mais ligeira quer beber um de €5 ou de €10. E pode apetecer-lhe vinhos de várias regiões”, exemplifica. Portanto, nada como saber exatamente qual a essência da empresa e da marca que se criou, para se ter a certeza de que os anos não levam a um desvio do caminho. “Costumo dizer que, no setor dos vinhos, uma marca precisa de 15 anos para se assumir: aos cinco somos invisíveis, aos 10 já começamos a aparecer e aos 15 já devemos ter uma marca estruturada e reconhecida no mercado. Se não, não estaremos a fazer um bom trabalho. Ou estaremos a trabalhar para aquecer”, resume a empresária.
Para Ana Alcobia, uma da principais características do momento atual é o facto de Portugal ter conseguido posicionar-se num patamar mais elevado daquele em que estava há 10 ou 20 anos. Usando o Time Out Market como exemplo, salienta como o trabalho conjunto de empresários e setores tem conseguido elevar o preço dos produtos nacionais. “Lisboa mudou muito, Portugal mudou imenso e acho que a união entre as pessoas de cada um dos setores está a fazer com que a marca Portugal passe lá para fora muito mais solidificada e com outro tipo de estrutura. Acho que parte do problema era mesmo essa falta de união”, nota. “Hoje em dia toda a gente reconhece que um cozinheiro receber uma estrela Michelin é importante para todos os outros. E note-se que o Time Out Market Lisboa foi uma construção totalmente portuguesa, antes de ser comprado pelo grupo Time Out, e acabou de ganhar o prémio inovação nos prémios da restauração, em Londres” – uma vantagem para todo o País. “Imagine-se um estrangeiro que chega a Lisboa e já consegue ter uma refeição confecionada com uma técnica incrível, e tem um vinho espetacular a acompanhar… será por causa disso que volta a comprar a marca. É por isso que volta a Lisboa. Tem de haver uma experiência muito diferenciadora”.
A primeira marca portuguesa
Com uma empresária do mundo dos vinhos e outra muito ligada à gastronomia, foi quase impossível não falar daquela que é considerada a primeira grande marca vínica portuguesa – depois do Vinho do Porto – que é o Mateus Rosé. Uma marca com quem todos os produtores e empresas têm muito a aprender, admitem as executivas. Ana, no entanto, deixa um alerta: “Todas as marcas de vinho deviam fazer um workshop com o Mateus Rosé, mas o problema é que esse foi o posicionamento do País durante muitos anos. E isso não pode acontecer”. Ou seja, o produto está colocado corretamente e consegue vender exatamente no seu posicionamento, mas o problema é que Portugal deve estar concentrado num segmento mais elevado, consideram.
No entanto, salientam, é um perfeito exemplo daquilo que uma marca deve ser e fazer: manter-se sempre fiel aos seus princípios, à sua essência, e não defraudar as expetativas dos consumidores.
Consumidores mais exigentes?
Numa altura em que as redes sociais e os influenciadores fazem grande parte da divulgação das marcas, os desafios alteram-se significativamente para quem tem de as comunicar. Para além de as vontades se alterarem mais rapidamente – também porque todos os ciclos são agora mais curtos – há uma dificuldade acrescida, que é a do surgimento dos consumidores-críticos, muitas vezes pouco independentes. Para Luísa Amorim, as redes sociais “são uma dor de cabeça (risos)”, porque o vinho é um produto que precisa de ser experienciado para poder ser apreciado, e apesar de “visualmente poder funcionar muito bem, o mundo do vinho é sempre muito mais forte e comunicar presencialmente. Além de que as redes sociais acabaram por colocar o consumidor ao nível do especialista, mas sem saber muito…”, lamenta.
Ana concorda, mas mostra-se mais otimista: “Acho que isto é cíclico. Claro que é sempre assustador saber que uma rede social consegue mover quase toda a opinião do mundo. No entanto, acho que as pessoas vão passar a descredibilizá-las, tal como descredibilizaram os media numa certa altura”, nota. “Acredito que vamos voltar a ter necessidade de ter ótimo jornalismo, profundo. Acho que é uma evolução natural das coisas”, acrescenta . E se os anúncios televisivos que passavam em prime-time se transferiram entretanto para o Instagram, a verdade é que Ana acredita em novas mudanças: ”As pessoas vão voltar a dar uma importância gigantesca a opiniões profissionais”, porque foram os especialistas quem viajou, conheceu e estudou o suficiente para afirmar se uma marca é ou não boa, se cumpre ou não o seu propósito.
“Tem de haver independência, e mais uma vez isso é um problema das redes sociais e dos influenciadores que são pagos […] Uma coisa é quando sou influenciador e sou independente – e quase todos eles começaram assim. O problema é quando começam a ser pagos para dizer que aquele restaurante é bom e que aquele vinho é maravilhoso”. Se a experiência dos seguidores não for boa, o mais certo é não voltarem a acreditar nas publicações daquela pessoa, que baseia as suas opiniões apenas na sua experiência – e no que recebeu em troca. E a diretora do Time Out Market aproveita para deixar o aviso: “Mas se eu não pago para ler notícias, também não posso esperar que haja um crivo gigantesco nos media. Estou sempre a dizer à minha filha mais velha, que tem 12 anos: no dia em que não te pedirem nada para te dar uma informação, estás a pagá-la de alguma forma. Ou estás a receber má informação, ou os teus dados estão a transitar para alguém para depois receberes imensa informação que não pediste. E acho que é importante as pessoas terem consciência disto”.
Conhecer para vencer
Tal como pedem especialistas ‘a sério’, as responsáveis recordam que também faz parte das suas funções, enquanto gestoras de marcas, terem um conhecimento muito profundo sobre aqueles que são os seus mercados, os seus consumidores e os desafios que têm pela frente. Em jeito de exemplo, Luísa recorda a compra da Quinta da Taboadella por parte da sua empresa, em 2018. A aquisição implicou a aposta numa região totalmente nova para a equipa da Quinta Nova, que do Douro estendeu o passo para entrar no Dão. “Para estarmos em comunidade na região, fizemos dois trabalhos: perceber o que é que os colegas faziam, e onde é que a génese da região estava e onde podíamos fazer a diferença. Depois foi uma imensidão de trabalho e de pensamento – que sem ele não há vida”, resume. “Temos de perceber a terra onde estamos: o ar, o solo, o que as pessoas comem, como vivem, a envolvência cultural…são meses de estudo para criar uma marca. É isso que nos vai fazer diferentes da quinta vizinha. Mas se estudarmos a base, nunca vamos perder a essência. A alma do projeto”, garante.
Ana concorda, e lembra que apesar de muitos já nem usarem o nome Mercado da Ribeira para indicar o edifício onde se ergue também o Time Out Market, esse nunca foi o objetivo da marca. Aliás, “gostamos de posicionar o Time Out Market como aquele que está dentro do Mercado da Ribeira, e não queremos que as pessoas deixem de o fazer. Continuamos a ter os nossos vizinhos do mercado, de quem gostamos muito e de quem gostamos muito de cuidar, e é através deles que continuamos a ter um ADN que nos permite mostrar de que é que Lisboa é feita”.
Para ambas as responsáveis é claro que o turismo foi fundamental para dar a Portugal o protagonismo de que hoje todas as marcas gozam, mas é também bastante óbvio que o mercado nacional não pode ser descurado, pelo que garantem que essa é outra regra de ouro para quem quer ter uma marca vencedora. E o que significa isso? Ter uma marca que consegue inovar-se, manter-se fiel aos seus princípios fundadores, garantir qualidade e ganhar a confiança dos seus consumidores.
Para Ana, a inovação é talvez a parte mais fácil de garantir uma vez que “faz parte da génese do projeto ter sempre coisas novas a apresentar. Foi nesse pressuposto que o Time Out Market nasceu: conseguir antecipar tendências e perceber o que o consumidor quer a seguir. Temos vários espaços de restauração que ganharam as suas estrelas Michelin depois de os escolhermos…é isso que queremos continuar a fazer”.
Para Luísa, inovar nos vinhos pode parecer menos óbvio para quem os consome, mas é claro como água para quem os faz. “Basta pensar que uma vinha que há dez anos tinha 30 de idade, hoje tem 40. Só isso obriga-nos a agir, a fazer alterações que garantam que mantemos o perfil de um vinho, mas que ele responde àquilo que são os gostos do consumidor, hoje”. E isso não significa ir atrás de qualquer tendência, mas sim fazer produtos novos com os pés bem assentes nos seus princípios fundadores. “Isto não é uma fábrica de bolos. Mas temos de ser fiéis àquilo que é a expressão máxima da colheita. O consumidor também está a espera destas diferenças, mas que tem um perfil que ele conhece”. Em jeito de exemplo, conta a sua experiência quando decidiu produzir o primeiro vinho rosé. “Numa altura em que os rosé eram considerados vinhos para mulheres, por serem muito frutados, decidimos que queríamos um rosé estruturado, que seguiria o mesmo perfil dos nosso Mirabilis, por exemplo, um branco muito apreciado pelos homens. Mantivemo-nos fiéis ao nosso perfil e foi um sucesso”.
Em agenda
Como habitualmente, o tempo foi curto para tudo o que poderia ter sido dito, mas parte dele foi reservada para temas que preocupam as executivas. Luísa Amorim pediu uma atenção especial ao interior do País, sobretudo numa altura em que tantas decisões estão a ser tomadas ao nível governamental, sobre aplicação de verbas e sobre estratégias para reavivar a economia. “Felizmente o interior tem tido um desenvolvimento cada vez maior, em termos turísticos”, adianta. “Esta questão pandémica levou a que muitas pessoas optassem por novos projetos no interior, mas é preciso renovar estas culturas, colocar lá pessoas mais jovens. Há muita matéria-prima, muita beleza e muitas oportunidades, mas faltam muitos recursos, a vários níveis. Acho que é um tema sempre importante, mesmo em termos de sustentabilidade para o País”.
A empresária recorda que “as pessoas, os turistas estrangeiros, hoje vêm a Lisboa ou ao Porto mas reservam dias para o interior. Temos um Alentejo lindíssimo, um Douro incrível, um Dão que ninguém conhece…temos cada vez mais estrangeiros que querem experiências genuínas”, acrescentando que seria lamentável não aproveitarmos essa procura para dinamizar essas regiões.
Já Ana Alcobia pediu para reforçar uma questão que lhe é particularmente cara: a ausência de mulheres em cargos de topo. “Apesar de a nossa conversa na Girl Talk não ser sobre isso (risos), quis reforçar esta questão: estamos em pleno século XXI, estou praticamente a fazer 20 anos de carreira, e chego à conclusão de que as mulheres continuam a ter imensos obstáculos para chegar ao topo”, lamenta a executiva.
“Desde fundos de investimento até à própria política, acho que ainda há um gap gigantesco naquilo que é a contratação de mulheres ou a oportunidade para estarem em cargos de topo. Gosto sempre de dar o exemplo da necessidade que as mulheres que estão presentes na política, por exemplo, terem de ser sempre muito sérias, ter um ar super formal, de não se poderem rir. Começa a ser constrangedor. Desde Manuela Ferreira Leite até à Mariana Mortágua – e isto com todo o respeito -, vão duas ou três gerações e diferentes quadrantes políticos, mas parece que a postura tem que ser sempre aquela muito fechada. Já não faz sentido”, nota.
“E isso aplica-se às empresas. Todo o lado emocional que finalmente pode ser dado pelas mulheres em cargos de topo e elevada importância, acaba sempre por ser retirado de campo porque lhes é dito que não podem ser emocionais, que não podem ser ligados às coisas quando a inteligência emocional vai ser o futuro das empresas. Hoje em dia trabalho com um fundo de investimento e às vezes dizem-me que eu sou muito emocional. Eu gostava de vos dizer que o Cristiano Ronaldo é o único jogador da bola que eu conheço que chora quando leva um cartão vermelho, e não é por isso que deixa de ser o melhor do mundo. O lado emocional transporta-nos para o vestir a camisola, a entrega aos projetos, e acho que as mulheres têm uma capacidade grande de poderem mostrar que esse lado emocional não é minimamente prejudicial, que tem capacidades exatamente iguais às dos homens para a gestão. Temos de acabar com a questão da meritocracia, porque acho que não vamos lá com ela. Infelizmente”, reitera. “As mulheres têm claramente a mesma capacidade e é inacreditável que no século XXI eu ainda tenha que dizer uma frase destas”, conclui.
Do outro lado da sala, Luísa anui apenas.
Artigo publicado inicialmente na edição n.º 451 , de novembro de 2021, da revista EXAME