“O maior problema da Dielmar é fundamentalmente um enorme problema de falta de gestão”, lê-se no relatório da auditoria realizada em 2019 por uma empresa independente, e à qual a EXAME teve acesso. O documento alega que a empresa têxtil não cumpriu com as contrapartidas previstas no apoio dado pelo Estado, que detém uma participação de 30% na empresa agora declarada insolvente.
Questionado pela EXAME, o Ministério da Economia não quis comentar a situação da empresa e remeteu para as declarações públicas do ministro, Pedro Siza Vieira, quaisquer questões sobre a Dielmar. No mesmo sentido, não foi possível entrar em contacto com Ana Paula Rafael, até ao mês passado CEO da agora insolvente Dielmar e cuja única manifestação pública sobre o assunto foi feita em comunicado enviado às redações.
A empresa de Alcains, criada em 1965 e cuja insolvência foi declarada no dia 3 de agosto, deixa na rua mais de 300 trabalhadores e, segundo Siza Vieira, um prejuízo para os contribuintes na ordem dos €8 milhões, se se confirmarem as piores previsões. A companhia têxtil era o mais importante empregador da região, garantindo o sustento de dezenas de famílias. E apesar de o presidente da Câmara de Castelo Branco já ter referido que haverá “uma mão cheia” de interessados na Dielmar, a EXAME sabe que não há qualquer proposta concreta ou declaração de interesses oficializada.
As consequências da pandemia da Covid-19 na atividade da empresa foram apontadas como a causa para a apresentação à insolvência, há duas semanas, da icónica marca para o setor do vestuário no País. Mas a verdade é que os problemas já vêm de trás.
Uma década de alavancagem
Entre 2010 e 2013 a Dielmar beneficiou de empréstimos com garantias do Estado na ordem dos €1,3 milhões. No meio deste processo, em 2011, o erário público entra no capital da Dielmar, através do Fundo Autónomo de Apoio à Concentração e Consolidação de Empresas (FACCE), com uma injeção de €1,5 milhões, à qual acresceram cerca de €700 mil em suprimentos. No entanto, esta entrada do Estado não previa qualquer presença no Conselho de Administração da empresa.
Estávamos em pleno pico da crise financeira internacional, e a Dielmar tinha sido afetada como tantas outras companhias em Portugal. Com Ana Paula Rafael ao leme desde 2008 – a advogada é filha de um dos fundadores da têxtil de Alcains – a Dielmar decide então reforçar o seu processo de internacionalização, e ainda em 2010 compra a rede de lojas Wesley, ao mesmo tempo que intensifica a sua presença no País através de lojas próprias.
Em 2015, numa entrevista à FORBES Portugal, a CEO da empresa referia que a faturação já tinha recuperado para níveis pré-crise, mas que era “impossível aumentar os preços”, uma vez que a conjuntura económica não o permitia. Na altura a marca exportava para 25 países e apostava na publicidade com embaixadores como a Federação Portuguesa de Futebol ou o Estoril Open para levar mais longe o nome da empresa.
Problema? “Internacionalmente, a reputação da Dielmar é nula. Não estou a falar de uma questão de qualidade, que não é isso que está em causa”, conta à EXAME fonte próxima da empresa. “O problema é que em Portugal temos a perceção de que a Dielmar é um nome forte no exterior, e a verdade é que isso nunca foi assim”, remata. E documentos a que a EXAME teve acesso revelam que uma das opções que penalizou fortemente as contas da companhia foi precisamente a de vender uma grande parte das coleções abaixo do seu preço de custo.
Já no ano passado, numa entrevista à EXAME, Ana Paula Rafael referia que os confinamentos intermitentes nas várias geografias onde tinham presença estava a matar a empresa, e pedia uma intervenção do Estado. Mas a verdade é que a sangria vinha de muito antes: segundo as últimas demonstrações financeiras disponíveis (que remontam a 2018), o passivo da Dielmar era de €13 milhões, acima dos €12,5 milhões de faturação que garantia na altura. Já nessa época, os prejuízos ascendiam a €816 mil euros, um cenário que já tinha sido visto em 2017 e 2016, pelo menos.
Estado estuda sair do capital da Dielmar em 2018
A ausência de uma estratégia, em conjunto com o agravamento consistente dos resultados negativos ao longo dos últimos anos – em 2018 os capitais próprios da empresa ainda eram positivos, mas segundo declarações do Ministro da Economia essa situação já não se verificava em 2019 – terão levado à decisão do Estado de sair da empresa, ainda no final de 2018, sabe a EXAME.
O ministério liderado por Pedro Siza Vieira decidiu então usar da cláusula de salvaguarda do contrato entre a Dielmar e o FACCE, que permitia sair da estrutura da empresa uma vez que a organização não tinha cumprido a maior parte das recomendações da Deloitte, entidade que ao longo de vários anos tinha reportado problemas de gestão e dificuldades financeiras. O apoio através do FACEE obrigara a Dielmar a contratar uma das big four, e a escolhida foi a Deloitte, que recomendou, entre outras coisas, que a administração garantisse uma gestão mais profissionalizada da empresa e que alienasse uma série de ativos imobiliários para fazer face aos prejuízos. Também fazia parte das recomendações da auditora uma mudança na estratégia seguida pela empresa, nomeadamente o facto de haver uma excessiva concentração de vendas num número reduzido de clientes: os três principais representavam, em 2019, cerca de €3,6 milhões ou 39% das vendas.
Estes números seriam confirmados por uma auditoria independente realizada já a pedido da tutela, e aos quais se juntaram alguns outros para os quais vale a pena olhar.
Por exemplo, o documento dá conta de inventário no valor de €7 milhões – sobre os quais “os auditores não dão opinião” e aponta para o facto de que “o ativo fixo tangível, os financiamentos obtidos e o resultado líquido negativo encontram-se subavaliados em €1,8 milhões, €2,8 milhões e €250 mil, respetivamente”, enquanto “os diferimentos passivos se encontram sobreavaliados em €384 mil sem considerar os efeitos fiscais”.
A juntar-se às contas, estão ainda as considerações sobre os órgãos administrativos da empresa. O documento dá conta de um “excesso de processos manuais” e de “um excesso de regras, procedimentos, ordens, emails enviados e recebidos sucessivamente para a estrutura” que contribuiria para uma cultura de responsabilização.
Os auditores depararam-se ainda com situações como o facto de os reportes de gestão mensal não incluírem demonstrações financeiras e informações consolidadas de gestão e consideraram que as demonstrações financeiras apresentadas anual e mensalmente contêm erros e / ou omissões materialmente relevantes relativas a ativos fixos tangíveis, participações financeiras, inventários, clientes e financiamento obtidos.
E vão ainda mais longe quando consideram que é sua “profunda convicção que, se não fosse uma exigência do FACCE, não existiria mesmo um orçamento anual da Dielmar”.
Aponta-se também uma “anormal rotação dos seus quadros, fruto de uma ausência de estratégia de RH e gestão errática da Administração”, que não tomariam decisões estratégicas por não terem “uma única ideia clara sobre qual é e qual deve ser a estratégia da empresa”, lê-se ainda. Os gestores, consideram os auditores, não estariam focados em objetivos e em resultados, e realizariam demasiadas reuniões “para crítica pessoal”.
A EXAME sabe também que durante os últimos dois anos saíram da estrutura quatro importantes diretores de departamentos, em conflito com a administração e que as chamadas guerras familiares se terão agravado de forma consistente ao longo dos últimos anos.
E apesar da intenção de venda de alguns ativos imobiliários, do encerramento de lojas e da tentativa de escoar inventário, a Dielmar acabaria por sufocar por falta de dinheiro, numa altura em que a Covid acabou por ser uma vantagem: durante 2020 a empresa recorreu ao regime de lay-off simplificado que o Governo disponibilizou às empresas, o que acabou por mitigar o impacto nos trabalhadores.
Para além de o Estado ter fechado a torneira a “uma empresa que não tem salvação”, nas palavras de Siza Vieira, também a banca deixou de conceder crédito à organização, que acumula dívidas de cerca de €6 milhões junto do setor.
Contas feitas, e as linhas com que a Dielmar se cosia eram mais frágeis do que seria desejável para uma empresa que durante a última década sempre foi apontada como referência entre as PME.
A EXAME tentou também esclarecer junto do Estado a razão pela qual não houve uma intervenção mais ativa da empresa, uma vez que estavam identificadas as dificuldades e falhas na gestão, e com os prejuízos a crescer, mas o Ministério da Economia manteve-se num sepulcral silêncio.
Estado entra, empresas perdem gás
O caso da Dielmar não é único, e faz-nos recuar mais de 10 anos no tempo, quando o grupo Aerosoles, então o maior fabricante de calçado nacional, entrou com estrondo num pedido de insolvência, depois de várias injeções de capital por parte do Estado. Na altura, o Jornal de Negócios referia que apesar de a AICEP e o IAPMEI – as entidades envolvidas na tentativa de salvação do grupo – não confirmarem os números, as contas apontavam para cerca de 50€ milhões de dinheiro públicos perdidos.
Mais ou menos na mesma altura, a centenária Vista Alegre atravessava também um período particularmente difícil, e já contava com a participação da Caixa Geral de Depósitos e da Portugal Ventures na sua estrutura acionista, numa tentativa de colmatar os prejuízos que não deixavam de se acumular. Antes da OPA da Visabeira, em 2009, a CGD e a Portugal Ventures chegaram a acumular participações globais na ordem dos 22% na Vista Alegre, detida por aquele grupo. A Visabeira acabaria por, através de dispersões de capital em bolsa ou de compra direta, conseguir esvaziar essas posições, e garantir ao Estado um encaixe que impediu que a conta fosse passada aos contribuintes.
Contactada pela EXAME, fonte oficial do Ministério da Economia escusou-se também a comentar a ausência de mecanismos de controlo que parece existir nas intervenções que o Estado faz através dos vários veículos existentes para apoiar as empresas nacionais. Algumas fontes do setor ouvidas pela EXAME referiram que a forma de funcionamento do Banco de Fomento, que entrou mais recentemente no mercado, poderá vir a colmatar essa ineficiência.
As linhas de apoio às empresas que entretanto foram criadas para fazer face à pandemia e a aplicação do Plano de Recuperação e Resiliência recentemente aprovado poderão ser um bom teste para perceber se Portugal conseguirá fazer mais e melhor na utilização dos dinheiros públicos quando se trata de auxiliar empresas relevantes para a economia.