A segunda vaga de Covid-19 chegou com muito mais força do que a primeira, o consenso político em torno da reação à pandemia parece ter desaparecido, há maior desânimo e manifestações cada vez mais tensas na rua. O que se passa? Na segunda sessão do dia da “Portugal em Exame”, António Bagão Félix e Francisco Assis debatem as fragilidades da nossa sociedade para lidar com o impacto do vírus e as lições que devemos tirar deste período.
“É muito difícil reagir a uma situação destas. Num primeiro momento, acabámos por beneficiar de o vírus ter chegado a Portugal mais tarde do que a outros países e pudemos observar essas situações dramáticas e reagir com base no medo, que é uma reação legítima, normal e até necessária”, afirmou Francisco Assis, presidente do Conselho Económico e Social.
Contudo, a partir desse momento “foi cometido um erro”, para o qual “todos contribuímos”. “A ideia de que havia um milagre português”, acrescenta. Isso significou que as medidas colocadas no terreno em março foram mais bem recebidas, embora fossem mais restritivas do que as atuais. “Na primeira vaga correu bem a compreensão das medidas e desta coisa que nenhum manual de economia previu, que foi a redução drástica da oferta e da procura ao mesmo tempo”, nota Bagão Félix. Agora, passados oito meses, instalou-se um cansaço. “Não há só incerteza, há imprevisibilidade. Tudo o que seja para lá de algumas semanas, é entrar numa câmara escura e andar sobre uma camada de gelo fina.”
Francisco Assis concorda que “há cansaço”, mas assinala que “há também uma deterioração da situação”. “O que se está a passar na restauração é dramático. Pequenas empresas que estão a atravessar o momento mais difícil das suas vidas”, sublinha o antigo eurodeputado pelo PS.
Contudo, Assis também pede que façamos uma reflexão sobre as dificuldades do mundo ocidental para lidar com as consequências do vírus. Depois de décadas de conquista de direitos, o seu constrangimento e a exigência de deveres pode ter apanhado uma sociedade impreparada. “Um problema que resulta do nosso próprio sucesso.”
Bagão Félix pede-nos para imaginar “uma crise como esta no final do século passado, sem telemóveis e sem tecnologias que nos permitem estar próximos uns dos outros”. “Temos de ser mais pacientes. Às vezes é difícil dizer isto e há situações dramáticas e pessoas a quem não pode ser pedida paciência. Mas a maior parte de nós não tem paciência e persistência. A paciência é a coragem de todos os dias.”
O perigo da polarização
Crises desta dimensão são sempre terreno fértil para populismos e se, no campo do diálogo social entre sindicatos e patrões, Francisco Assis diz que tem havido “elevado sentido de responsabilidade”, outros riscos permanecem vivos. “O problema já existia antes. As democracias têm sempre alguma dose de populismo, que se torna perigoso quando ultrapassa alguns níveis. As crises favorecem isso”, refere.
Ainda assim, o ex-líder da bancada parlamentar do PS lembra que, numa primeira fase da pandemia, os populistas até perderam terreno para as forças mais moderadas. Mas, se a crise não bem resolvida, o problema pode agravar-se.
“Das coisas que mais me assustam é a polarização. As redes sociais têm coisas fantásticas, mas também problemas. São perigosas”, refere Assis, avisando que isso significa que uma responsabilidade acrescida no quadro parlamentar. “É preciso ter algum cuidado. Há uma radicalização da discussão. Praticamente não se debate, desqualifica-se a posição dos outros.”
Bagão Félix vê os mesmos riscos e nota que “hoje, para ser moderado, é preciso ser corajoso”. E está especialmente preocupado com as tendências que observa na comunicação social, com uma “progressiva tabloidização, sobretudo ao nível das televisões”. “Explicar uma ideia num programa de televisão é quase impossível,” lamenta.
O que aprendemos?
E que lições nos deixa esta crise? Assis vê na resposta dada a conclusão de que “o nosso modelo social tem enormes vantagens e de tem de ser preservado”. Porém, “só podemos ter serviços sociais de qualidade se tivermos capacidade económica para a sustentar”, acrescenta, referindo em específico a necessidade de contas públicas controladas para dar respostas mais robustas.
Já Bagão Félix alerta para as nossas principais fragilidades podem ser resumidas em quatro Ds: défice, dívida, demografia e desigualdade. Estas devem formar a “base das políticas públicas”. E sublinha ainda a importância da produtividade. “Se a demografia é o principal adversário do sistema de pensões, a economia através produtividade é o principal aliado”, diz o economista. “E quem diz pensões, diz saúde e educação.” E conclui como sugestão para as políticas públicas: “As medidas devem ser tomadas de forma a não rigidificar o futuro.”