Uma economista, uma chef e uma investidora/mentora foram as protagonistas do painel Girl Talk, o segundo da conferência Portugal em Exame. O tema foi o inescapável, a economia em tempos de pandemia, com tudo o que isso traz de perigos mas também de oportunidades.
“A pandemia está a provocar uma enorme disrupção em muitos aspetos das nossas vidas, desde a educação, ao trabalho e até à forma como interagimos com os nossos amigos. E esta disrupção pode ser geradora de oportunidades”, defendeu Cristina Fonseca, partner da Indico Capital esta segunda-feira, 23 de novembro, no primeiro dia da conferência totalmente realizada online.
“Sabíamos que a digitalização da sociedade era uma promessa, algo que tinha de acontecer. Toda a gente concordava, mas não existia um incentivo forte que levasse isso a acontecer. Esta pandemia trouxe, em termos de capital de risco e de tecnologia, a possibilidade de alguns negócios se reinventarem”, explicou.
E deu um exemplo: “Há dois anos investimos numa empresa de saúde mental online e muita gente questionou esta opção. Com a pandemia houve uma aceleração da procura deste tipo de serviços”.
Cristina Fonseca lembrou ainda o forte crescimento que estão a ter as empresas tecnológicas que trabalham nas áreas das entregas. Por outro lado, admitiu que as companhias que trabalham em setores como o turismo ou a hotelaria estão a “patinar”, mas acredita que ainda se irão “reinventar”.
Não é fácil, mas temos de olhar para o lado positivo e atacar as oportunidades que existem, E são muitas
Cristina Fonseca, indico capital
A gestora contou o caso de uma empresa que trabalhava com entregas de refeições em locais de trabalho e que, de um dia para o outro ficou quase sem atividade. “Em apenas três dias alteraram a plataforma e começaram a distribuir essas refeições em casa das pessoas”. Mais tarde, começaram também a fazer este serviço para os restaurantes que na altura estavam com as portas fechadas ao público. “Não é fácil, mas temos de olhar para o lado positivo e atacar as oportunidades que existem, E são muitas”, diz Cristina Fonseca.
É o que tem feito a chef Marlene Vieira, proprietária Zunzum Gastrobar, restaurante com data de abertura em março, em pleno confinamento. “Foi como ter os tachos todos ao lume e alguém desligar-nos o gás”, disse. A solução foi apostar no take-away, algo que não estava no seu modelo inicial, e angariar novos clientes. “Conseguimos fazê-lo e, quando reabrimos em agosto, foram estes novos clientes que encheram as mesas do restaurante. Não compensou o que se perdeu, mas ajudou a manter a marca e a salvar postos de trabalho”.
Marlene Vieira trabalhou com as plataformas durante o primeiro confinamento, mas assim que foi permitida a abertura dos restaurantes, este tipo de serviço “caiu a pique”. Com a nova realidade dos horários da restauração, a chef decidiu criar uma espécie de “grande-pequeno-almoço” aos sábados e domingos. “Está a superar todas as expetativas, mas fomos obrigados a sair a nossa zona de conforto. O que estamos a fazer é adaptar a oferta possível ao horário que temos. E a qualidade é a palavra de ordem neste ano louco”. “Estamos a aprender coisas novas e a conhecer outras estratégias de trabalho. Vamos crescer, mas está a ser muito difícil”, rematou.
Fomos obrigados a sair a nossa zona de conforto. O que estamos a fazer é adaptar a oferta possível ao horário que temos. E a qualidade é a palavra de ordem neste ano louco
MARLENE VIEIRA, ZUNZUM GASTROBAR
Mais solidariedade
Para Sandra Maximiano, professora de Economia no ISEG, não há qualquer dúvida: “Vamos ser obrigados a ser mais solidários. As pessoas perceberam que esta crise não é igual para todos e que tem efeitos muito diferentes em determinados setores ou mesmo em grupos etários. As preferências sociais e as preferências morais não são estáveis ao longo da vida e mudam em função das circunstâncias. E as manifestações da restauração ou da cultura têm trazido essa informação de uma forma mais direta, mostrando as verdadeiras dificuldades que vários setores estão a sentir”.
Para esta professora universitária, as novas gerações, que estão a crescer nesta realidade, “vão perceber melhor a importância da solidariedade inter setorial e inter geracional”.
Desigualdade digital
As oportunidades estão criadas, mas importa saber se a sociedade está preparada para enfrentar esta rápida transformação. Cristina Fonseca dá o exemplo dos “professores que achavam que nunca dariam aulas online e que de repente se transformam em especialistas do Youtube e de plataformas de conteúdos”.
No entanto admite que existem casos problemáticos: “há estudantes que não podem ir à escola porque não tem equipamento digital e há escolas que excluem alunos de aprender porque não dispõem de material tecnológico. A tecnologia ajuda muito, mas temos de ter noção que se não tivermos programas de formação para digitalizar a sociedade, acabamos por excluir algumas pessoas deste processo. E isso é muito perigoso”.
Vamos ser obrigados a ser mais solidários. As pessoas perceberam que esta crise não é igual para todos e que tem efeitos muito diferentes em determinados setores ou mesmo em grupos etários
Sandra Maximiano, professora de Economia no ISEG
Sobre este aspeto, Sandra Maximiano lembra que, em Portugal, ao contrário de outros países, não existia uma boa oferta de programas de ensino online, o que dificultou ainda mais esta transição. “Reduzir as desigualdades da digitalização e capacitação tecnológica da população tem sempre feito parte dos programas dos vários governos ao longo dos anos, mas o processo tem conhecido uma grande lentidão”. E esta desigualdade está bem patente sobretudo ao nível do ensino básico com o que aconteceu no último semestre do ano letivo anterior, em que existiu uma grande disparidade entre alunos. Para Sandra Maximiano, “não é suficiente ter apenas equipamento e ferramentas tecnológicas. Era preciso que as famílias tivessem apoios e incentivos ao nível familiar que pudessem ajudar as crianças a enfrentar este novo sistema de ensino. E isso não foi possível fazer”.
E recorda que foram aparecendo vários projetos, alguns a nível de voluntariado, entre alunos universitários, que foram visitando casas para ajudar algumas famílias e estudantes com dificuldades. “Há uma parte boa nesta pandemia que é este crescimento de solidariedade. Mas é preciso muito mais.”
Para a professora do ISEG, era preciso criar uma comissão que avaliasse as necessidades destas famílias, o que deveria ter sido feito logo na altura do primeiro confinamento, e depois criar incentivos para jovens universitários ou outras pessoas que pudessem levar a cabo estes projetos de ajuda.
Três cabeças, várias sentenças, para ajudar na reflexão sobre este ano tão atípico nas vidas de todos.