Se tem no telemóvel uma daquelas aplicações de corrida, já deve ter recebido um alerta do género “há 10 dias que não corre, mexa-se!”. Nessas alturas, talvez lhe apeteça atirar o telemóvel ao chão. A culpa não é da app, mas custa ouvir. É mais ou menos esse o papel do Conselho das Finanças Públicas: ser um desmancha-prazeres. “É óbvio que o CFP nunca foi uma entidade confortável para ninguém, nem é suposto ser essa a nossa imagem. O nosso papel é sinalizar os riscos, mesmo que isso pareça exagerado”, aponta Luís Centeno, diretor dos serviços técnicos.
Num País conhecido por acumular sucessivos défices, a missão do CFP é avaliar a razoabilidade dos cenários económicos do Governo e o cumprimento das regras orçamentais europeias, assim como a sustentabilidade das Finanças Públicas do País. É uma espécie de grilo falante no ombro do ministro das Finanças.
Nascido em 2012, no pior período da crise portuguesa – com a economia a afundar 4% e o desemprego quase a tocar nos 18% –, o conselho vai no seu oitavo ano de existência e no seu terceiro governo, um marco visto como importante dentro da instituição. Dar boas e más notícias aos dois lados da barricada é importante para a imagem de independência do CFP.
É óbvio que o CFP nunca foi uma entidade confortável para ninguém, nem é suposto ser essa a nossa imagem. O nosso papel é sinalizar os riscos, mesmo que isso pareça exagerado
Luís Centeno
Carlos Marinheiro está lá desde o início, quando os membros do Conselho Superior só tinham uma “salinha” cedida pelo Banco de Portugal, ainda sequer sem corpo técnico. Era a “fase startup” do CFP. A seu favor tinha a sua experiência anterior como membro fundador da UTAO, entidade responsável pelo apoio técnico aos deputados na área orçamental, onde ingressou em 2006.
Um grupo independente de técnicos a avaliar a gestão orçamental do Governo? Portugal não estava muito habituado. “Foi complicado, porque havia circunstâncias muito particulares. Maioria absoluta [do PS] e depois o período de crise financeira. Lembro-me de que, quando apresentámos o parecer sobre o OE 2009, houve uma reação gélida de alguns deputados”, recorda Marinheiro. O executivo de José Sócrates apresentaria um retificativo logo a 15 de janeiro.
O arranque do CFP enfrentou desafios semelhantes. Mesmo depois de acabar o programa da Troika. Na primeira metade da legislatura anterior, quando o controlo das contas ainda era uma incógnita, as suas conclusões eram recebidas com alguma hostilidade pela esquerda. Isso mesmo era assinalado pela OCDE, num relatório publicado no ano passado, no qual o trabalho do CFP era analisado. “A criação do conselho durante o período da Troika significa que pode ser erradamente visto como defendendo uma austeridade imposta externamente”, pode ler-se no documento. “Por isso, o valor do CFP nem sempre é reconhecido por aqueles que se opõem à austeridade orçamental.”
Em conversa com a EXAME, a autora do relatório, Scherie Nicol, explica que “os partidos de esquerda não sentiam que podiam confiar na instituição”. “Como não acreditam na austeridade, desacreditavam e estavam frustrados com o conselho”, acrescenta. “Estas divisões políticas criam dificuldades a uma instituição independente.”
As pessoas reconhecem que o CFP não é um ator político e não quer entrar na luta política. Não é essa a sua função mas sim informar a decisão política
Carlos Marinheiro
À esquerda, chegaram a ouvir-se pedidos de extinção do CFP – difícil de antecipar, uma vez que a legislação europeia obriga à existência de uma entidade independente de fiscalização das contas – e até o PS admitiu rever o modelo da instituição. À medida que a urgência orçamental foi desaparecendo (pré-coronavírus), a hostilidade também parece ter-se reduzido. “As pessoas reconhecem que o CFP não é um ator político e não quer entrar na luta política. Não é essa a sua função mas sim informar a decisão política”, sublinha Marinheiro.
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Para Mariana Mortágua, esta menor tensão deve-se apenas “à perda de peso político e menor relevância” do conselho, assim como ao facto de “ter falhado” nas suas previsões no arranque da legislatura anterior. Com uma nova configuração política à esquerda desde 2015, o órgão terá perdido influência. O Bloco de Esquerda mantém a proposta de o extinguir. “Sempre fomos contra a criação do CFP. Na legislatura anterior, apesar de alguns choques, o PS deixou claro que não iria acabar com ele”, afirma, lembrando que nem o BE nem o PCP fazem perguntas aos representantes da entidade nas audições na Assembleia da República.
[Menor tensão entre a esquerda e o CFP] deve-se à perda de peso político e menor relevância [do Conselho]. Sempre fomos contra a criação do CFP
Mariana Mortágua
Ajudar os astrólogos
De facto, ao longo dos anos, algumas das previsões do CFP falharam. Um risco sempre presente para quem coloca o pescoço no cepo das projeções. Luís Centeno assume os erros com humor. “Os economistas existem para que os astrólogos não tenham tão má fama e nós assumimos essa condição”, reconhece em tom de brincadeira. Mas lembra: “Nós queremos que as coisas corram bem, mas temos de ser exigentes na afirmação daquilo que pode correr mal.”
Tanto como as projeções ou avaliações propriamente ditas, as reações negativas à esquerda eram motivadas por algumas declarações de Teodora Cardoso, que esteve à frente da instituição nos primeiros sete anos. Em 2017, por exemplo, falou de “um milagre” do défice do ano anterior, o que deixou o PS e o governo em polvorosa.
Ironicamente, esta sua capacidade de fazer títulos de jornais foi também o que permitiu ao CFP receber tanta atenção mediática desde o arranque. “O CFP recebe muita atenção da Imprensa”, aponta Nicol. “Tem que ver com vários fatores, como a crise orçamental que o País atravessou, mas está muito relacionado com o perfil de Teodora Cardoso.”
Esta é uma fase de transição importante para o CFP. No último ano, o conselho já contou com Nazaré da Costa Cabral ao leme. Com um background jurídico e um perfil muito mais discreto, a atual presidente da instituição reconhece que “existem estilos diferentes” e elege como desafio do CFP “ser uma instituição reconhecida pela sua credibilidade, independência e seriedade por todo o espetro político-partidário e por toda a sociedade portuguesa”.
Instituições independentes como o CFP nasceram para tentar replicar a experiência dos bancos centrais – governados por independentes – na área orçamental. Os seus defensores dizem que é importante para eliminar a tendência otimista das projeções orçamentais (a literatura parece sugerir isso); os seus detratores criticam aquilo que consideram ser uma tecnocratização de uma área que pertence à política.
A presidente do CFP garante que não pretende “substituir a democracia por formas de ‘expert-ocracia’”. Porém, há a noção de que esse é um caminho estreito. “Temos de fazer isto sem entrar na discussão de opções políticas. Isso não é nada fácil”, diz Luís Centeno. “Como cidadãos, temos sempre opinião, mas temos de ter um grande cuidado em perceber se aquilo que estamos a discutir não é a forma concreta da medida política, relativamente à qual há sempre alternativas.”
Não pretendemos substituir a democracia por formas de “expertocracia”
Nazaré da Costa Cabral
Além disso, a equipa do conselho sabe que, quando faz uma previsão, pode estar também a interferir na realidade. “Provavelmente, a maior dificuldade que tenho quando estou a fechar um relatório é ter a certeza de que estamos a usar bem a melhor informação disponível. Uma previsão ou uma análise é, em si mesmo, um facto económico. Condiciona os agentes, condiciona os incentivos”, acrescenta Centeno. “A maior dificuldade está dentro de nós.”
No caso de Luís Centeno, ela também poderia estar à mesa de jantar. Irmão mais velho de Mário Centeno, a ligação familiar poderia colocá-lo numa posição desconfortável no trabalho, onde é o responsável pela “gestão da fábrica de relatórios”, ao fazer a ponte entre o Conselho Superior e a equipa de 11 técnicos. A solução foi deixar as contas públicas à porta de casa. “Falamos do Benfica, dos filhos, da saúde da mãe”, diz à EXAME. De economia? Nunca. “Dantes falávamos. Desde que o meu irmão é ministro, não. Sabíamos que no dia em que passássemos essa barreira, estava tudo estragado.” E não foi estranho? “Ao início foi um pouco esquisito, mas toda a gente percebeu. Às vezes uns amigos mandam umas bocas, mas tudo bem.”
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Um especialista em cada esquina
Com mais ou menos solavancos, é difícil não classificar os primeiros oito anos do CFP como um sucesso institucional. O conselho é bem-visto fora de portas e compara bem com os seus irmãos no resto da Europa, seja no seu grau de independência, seja na eficácia.
“Num período relativamente curto de tempo, o CFP tornou-se uma instituição independente conceituada que produz análises de elevada qualidade sobre as Finanças Públicas em Portugal”, considerou a OCDE. À EXAME, Nicol nota que “é um dos [conselhos] mais independentes que encontrámos na UE e na OCDE. A legislação está desenhada para proteger a sua independência”, refere.
É um dos [conselhos] mais independentes que encontrámos na UE e na OCDE. A legislação está desenhada para proteger a sua independência
Scherie Nicol
Ainda assim, a OCDE avisa que o processo de nomeação da liderança devia estar ainda mais blindada à interferência política, sugerindo o envio da lista de nomeados pelo Banco de Portugal e Tribunal de Contas ao Parlamento para avaliação prévia, antes da decisão do Conselho de Ministros.
Com uma base sólida, o CFP planeia expandir a sua ambição este ano. A novidade principal é um ciclo de conferências em parceria com universidades de todo o País. “Queremos divulgar o papel do CFP e ajudar a disseminar conhecimento, não apenas em Lisboa”, explica Nazaré da Costa Cabral. A primeira foi na Universidade de Coimbra e debateu-se o crescimento e a produtividade nacionais. Lançaram também o blogue Contraciclo – análise económica de temas que não cabem necessariamente nos relatórios – e estão a esticar a abrangência da sua análise. “Recentemente, publicámos um relatório sobre contratos-programa entre o Estado e os hospitais-empresa, que é um pontapé de saída para uma análisemais global que queremos do SNS”, aponta a presidente.
Desejavelmente, o CFP poderia também dar um contributo importante para a elevação do debate orçamental português, muitas vezes pouco informado ou focado em questões paralelas. “O nível está mais elevado do que no passado, mas fica prejudicado por o orçamento ser um pouco opaco e por ir parar a questões acessórias”, aponta Carlos Marinheiro. “Por exemplo, tem havido muita discussão sobre as cativações. Elas foram um assunto em 2016. Mas nos anos seguintes estão ao nível [histórico].”
O nível [do debate económico] está mais elevado do que no passado, mas fica prejudicado por o orçamento ser um pouco opaco e por ir parar a questões acessórias
Carlos Marinheiro
Entre a equipa do conselho, acredita-se que a instituição já faz parte do ADN do processo orçamental. Paradoxalmente, o passo seguinte seria os seus avisos serem menos necessários. “O ideal seria que cada português fosse quase um especialista em contas públicas. Sonho com o tempo em que as contas públicas sejam um não assunto”, confessa Marinheiro. Até lá, o grilo vai continuar a falar.
Nota: Este texto foi publicado originalmente na EXAME de abril de 2020. Parte das entrevistas foram realizadas antes de a OMS ter declarado a Covid-19 uma pandemia.