Talvez não seja óbvio como destino de férias, mas tem captado cada vez mais a atenção de portugueses e estrangeiros. O Príncipe, a segunda maior ilha do arquipélago de São Tomé e Príncipe, tem atualmente cerca de 7 mil habitantes para uma área de 136 km2, o que a torna um incrível reduto natural. As ofertas hoteleiras têm acompanhado a procura, com o grupo Here Be Dragons (HBD) a ser o que mais aposta na ilha, ao estrear, em 2018, a sua terceira unidade: o exclusivo Sundy Praia Lodge, que representou um investimento de dez milhões de euros e que está totalmente escondido pela frondosa floresta onde tenta integrar-se com o menor impacto ambiental possível.
Mark Shuttleworth – o sul-africano que se tornou milionário quando a VeriSign comprou a sua Thawte Consulting e que saltou para as manchetes ao protagonizar a segunda viagem turística ao Espaço – é um dos grandes responsáveis pela nova vida do Príncipe. O CEO da HBD apaixonou-se pela ilha no início dos anos 2000, quando a visitou, e em 2013 o Financial Times escrevia, citando fontes próximas do empresário, que o investimento estimado de Shuttleworth no Príncipe já superara os 135 milhões de euros. Cinco anos depois, o grupo HBD já recuperou a roça Sundy – que transformou num boutique hotel que vai continuar a expandir-se em 2019, abriu o Sundy Praia Lodge, investe no Príncipe Trust, que se dedica a preservar a biosfera da ilha, reabriu a roça Paciência e continua a contratar.
Além de ter garantido também a concessão de várias praias da ilha, para impedir que cadeias hoteleiras as encham de turistas e prejudiquem a fauna e a flora. Tudo isto deverá ter acrescentado vários milhões de euros ao valor revelado pela publicação britânica. Apesar de não ter sido possível confirmar o montante do investimento total – Shuttleworth é avesso à exposição pública –, os projetos falam por si.
Aqui é fácil perceber que o preço da insularidade se paga a vários níveis – não só no alojamento, mas no facto de haver pouca energia, de o acesso ao saneamento básico por parte das populações ser ainda um work in progress, e tudo o que parece essencial no nosso dia a dia europeu aqui é mais do que acessório. Das plantas saem detergentes para a roupa em tempos de maior escassez, composto para adubar a terra, remédios para as dores de cabeça, para o stresse e até para as fases iniciais da malária – praticamente erradicada de todo o território há mais de cinco anos, da terra e do mar sai o sustento, diretamente para a mesa ou através da sua venda. O que falta em roupa e material escolar sobra em sorrisos, o que falta em serviços de saúde sobra em acolhimento. O Príncipe é terra de ilhéus felizes, e talvez por isso nos sintamos tão pequeninos quando os visitamos.
Após o aparecimento do Bom Bom, o primeiro resort de cinco estrelas desta região autónoma e também propriedade do grupo HBD, em 2001, o turismo foi crescendo paulatina e tranquilamente, e com o foco num segmento elevado, que ajuda a travar grandes invasões e a manter aquilo que é o seu principal atrativo: a Natureza praticamente intocada e as praias desertas. Em 2012, o Príncipe foi reconhecido pela UNESCO como Reserva da Biosfera, o que lhe granjeou visibilidade e aumentou responsabilidade. Ali, em pleno golfo da Guiné, a ilha é a casa de cerca de 40 espécies endémicas e 59% da área total é parque natural, que se estende até ao mar.
Daí que uma das atividades favoritas dos turistas – e potenciada por organizações não-governamentais e pelos próprios empresários – seja acompanhar a desova das tartarugas em praias protegidas ou a eclosão dos seus ovos, com as devidas explicações por parte de profissionaislocais que trabalham em estreita colaboração com instituições como a Associação da Tartaruga Marinha. “Troque para a luz vermelha, por favor”, atira o nosso guia em voz baixa, quando chegamos ao extenso areal da Praia Grande. A viagem desde o Sundy Praia Lodge, onde nos recomendaram que não perdêssemos este programa noturno, demorou cerca de uma hora. Não porque seja particularmente longe, mas porque a ausência de estrada e de iluminação obriga a uma condução cuidadosa e lenta. Foram precisas outras duas horas até que uma das tartarugas que chegou nessa noite à Praia Grande decidisse desovar.
Hualton Carvalho, o responsável pelas equipas de proteção e acompanhamento de tartarugas marinhas, conta-nos como o trabalho entre populações, empresas e ONG permitiu travar o desaparecimento das espécies mais vistas no Príncipe: as tartarugas ambulância, ambo ou mão branca e caco ou sada. Estes programas turísticos permitem aos ilhéus perceber que é mais rentável ter tartarugas vivas – os turistas pagam para as observar – do que mortas, para venda de carne. A experiência é um verdadeiro regresso às origens: aqui não há luz elétrica e os únicos sons são o barulho das ondas, das pinças dos milhares de caranguejos que passeiam durante a noite, das barbatanas das tartarugas a fazer o ninho e o clique das lanternas de luz vermelha que, de vez em quando, se acendem para ver como está o progresso da desova.
Recuperação de roças
Chegam ao Príncipe, todos os dias, entre 30 e 60 pessoas – e outras tantas abandonam a ilha. São os números possíveis nos dois voos internos que ligam Santo António, a capital, a São Tomé, na ilha principal. A aterragem e a descolagem são momentos altos, acompanhados pelos olhares curiosos dos principenses, maioritariamente sustentados pelo turismo. Há, atualmente, cerca de oito lugares onde é possível ficar alojado na ilha: três residenciais dentro da pequena cidade, o exclusivo Bom Bom, num pequeno ilhéu desabitado, duas antigas roças de cacau e dois lodges à beira da praia. O preço vai aumentando à medida que nos afastamos da cidade, nos embrenhamos na Natureza e quase nos fundimos com ela. E precisamente quando começamos a sentir-nos incomodados por termos optado por unidades que cobram largas centenas de euros pelo alojamento, percebemos que podemos estar, afinal, a fazer a diferença. O grupo HBD é atualmente o responsável por mais de 600 postos de trabalho na ilha, quase 10% da população.
A roça Paciência, que tal como a maior parte das roças do país estava abandonada desde a descolonização, voltou a funcionar recentemente pela mão de Shuttleworth, que quer promover a sustentabilidade ambiental. A ideia, explicou durante a visita Lina Martins, uma das responsáveis do projeto, é conseguir que esta roça produza praticamente tudo o que é consumido pelas unidades hoteleiras do grupo: frutos, legumes, granolas, sabonetes, champôs, chocolates e óleos de massagem. Isto refletiu-se na criação de postos de trabalho, sobretudo para mulheres.
Uns quilómetros ao lado, a roça Porto Real terá sido recentemente concedida a um empresário francês – cujo nome ninguém parece saber. Facto é que já há secadores novos construídos, prontos para receber cacau, e terrenos que voltaram a ser cuidados porque ele se terá comprometido a comprar, a preço justo, os quilos de cacau que foram sendo desperdiçados nos últimos anos, pois os produtores gastavam mais dinheiro a tratar das plantações do que o que conseguiam ganhar, explica-nos o nosso guia, Inácio. Aos 30 anos, é um dos 160 funcionários que o Sundy Praia Lodge emprega, e um querido conhecido na ilha.
Recebem-no com sorrisos e conversa alegre, mesmo quando tem de adotar um tom de voz mais duro para admoestar as crianças que teimam em pedir doces sempre que veem turistas. “Não vos ensinaram na escola que não se pede doces? Podem pedir o quê? Lápis, cadernos, livros… Não podem pedir doces! Já sabem!”, atira, enquanto fecha a janela do carro. É aqui, na roça Porto Real, que funciona também a Cooperativa de Valorização de Resíduos do Príncipe, onde mulheres transformam em joias garrafas de vidro e em composto o lixo orgânico que recolhem pela ilha. Um projeto criado pela portuguesa Estrela Matilde, apoiado pelo Príncipe Trust e que pretende empoderar mulheres e educar para a sustentabilidade, ao mesmo tempo que permite que mais famílias tenham um rendimento suplementar.
O desemprego é um problema em todo o arquipélago, onde 90% da população tem menos de 25 anos e escasseiam investimentos privados. Não por falta de tentativa, mas porque o retorno é moroso e difícil de garantir. “Imagine que tem de fazer um investimento num hotel. Agora multiplique por três. É mais ou menos isso”, diz em jeito de explicação Lina.
Para Inácio, as contas são ainda mais claras. “O Mark não consegue ganhar, num ano, o que gasta no Sundy Praia num mês. Mas ele gosta da ilha. Põe aqui dinheiro por gosto, não por negócio”, garante.
A finitude do território e as dificuldades de organização das comunidades, após a independência de Portugal, contribuem para este quadro de desemprego e dificuldade de desenvolvimento. “Esta foi a minha casa quando era pequeno”, conta-nos Inácio no momento em que entramos na roça Belo Monte. A sua concessão pertence agora a um empresário holandês, depois de já ter passado por mãos espanholas. O Governo não tem como recuperar os edifícios coloniais e concessiona-os a quem tem possibilidade de os salvar.
E isso significa mais do que restaurar edifícios: é preciso também arranjar uma solução para os seus habitantes, descendentes dos escravos que durante anos fizeram de São Tomé e Príncipe o maior produtor mundial de cacau. Ocupam as antigas sanzalas, muitos deles foram ocupando as casas principais (a chamada “casa do patrão”), os edifícios dos hospitais, os alojamentos dos capatazes. Ter uma roça é dar uma nova vida a estas gentes, maioritariamente dedicadas à agricultura de subsistência. A roça Belo Monte é hoje um boutique hotel que mantém parte do mobiliário original da época da colonização e que emprega vários antigos moradores da roça.
A mesma coisa acontece na roça Sundy, onde foi plantada a primeira planta de cacau de todo o arquipélago, em 1822, e que se tornou parte da História por, em 1919, ter sido aqui comprovada a Teoria Geral da Relatividade de Albert Einstein, por Sir Arthur Eddington. Atualmente tem 12 quartos, divididos entre a Casa Colonial e a Casa da Plantação, mas os planos de expansão já estão em marcha. As antigas sanzalas vão ser transformadas em quartos, e os atuais habitantes ganharam casas novas a cerca de um quilómetro. Quase todos trabalham na roça Sundy, o que significa que continuarão nas imediações, mas há quem diga que o mais divertido e carismático deste espaço poderá perder-se: as dezenas de crianças que todos os dias brincam no pátio principal e que acolhem turistas, levando-os pela mão, pedindo fotografias e contando histórias, vão, provavelmente, passar a brincar mais perto das novas moradias.
Ilha de segredos
Encontrar pessoas no Príncipe não é tarefa fácil. Dividem-se entre a cidade de Santo António, a mais pequena capital do mundo, e as comunidades que cresceram junto às roças. As praias, de águas límpidas e quentes, estão praticamente desertas, estejam ou não concessionadas a unidades hoteleiras. Os caminhos fazem-se quase sem encontrar pessoas – mas as que se encontram são tão afáveis que temos vontade de ficar a conversar com elas o resto do pouco tempo que nos sobra. É esta a maior riqueza da ilha com a qual é difícil não nos encantarmos: as pessoas. Destino seguro e tropical, uma mistura de África e Brasil, que só se torna incómodo porque é impossível deixar para trás as memórias dos tempos coloniais portugueses, ainda tão marcados na pele daquela gente.
O melhor tributo que podemos fazer-lhe é, por isso mesmo, continuar a visitá-la. Deliciarmo-nos com o café acabado de preparar e cuja plantação conseguimos ver da janela, degustar cacau fresco intercalado com mangum (uma espécie de planta-rebuçado), experimentar dezenas de tipos de fruta a cada pequeno-almoço. Perdermo-nos (mas de preferência acompanhados) por entre a densa vegetação, beber vinho de palma, comer peixe acabado de pescar e banana-pão, e deixarmos para trás o relógio. É que, aqui, o que realmente faz diferença é ter tempo e disponibilidade para absorver toda a calma de uma ilha que, felizmente, deverá continuar protegida da chegada de turistas em magote.