Os homens que guiaram a economia mundial durante alguns dos momentos mais negros da Grande Recessão estão a abandonar os seus postos. Janet Yellen deu lugar a Jerome Powell na Reserva Federal dos Estados Unidos da América, Pequim surpreendeu ao escolher Yi Gang para ocupar a cadeira de Zhou Xiaochuan e Mark Carney está a meses de terminar o seu mandato no Banco de Inglaterra, tal como Mario Draghi que poderá será substituído pelo alemão Jens Weidmann no Banco Central Europeu. Serão outras as caras responsáveis por manter estáveis os pilares da economia mundial numa nova era de normalização da política monetária. Têm a vantagem de não ter de tomar decisões com a corda na garganta, mas não lhes faltam desafios para ultrapassar, do Brexit ao populismo. Talvez o mais complicado seja saber quando fechar o bar do dinheiro barato.
A dança de cadeiras em quatro dos bancos centrais mais poderosos do mundo surge numa altura de transição. O período excecional de medidas não convencionais criadas para combater a crise financeira e económica está, aos poucos, a desaparecer e a dar lugar a uma política monetária mais parecida com aquilo a que nos habituámos no passado. Com protagonistas diferentes, a mudança será rápida?
“Não devia ser assim. Estas instituições têm comités que tomam decisões precisamente para que não aconteçam mudanças abruptas de política quando ocorre a normal rotação de membros. Ao mesmo tempo, são tantos os novos governadores a ser escolhidos no Fed e, no caso do BCE, quer o presidente quer o vice-presidente vão mudar num curto espaço de tempo. São muitas pessoas à volta da mesa a mudar. Isso deverá alterar o teor das discussões e a resposta a choques futuros, se bem que as mudanças serão provavelmente graduais”, explica Ricardo Reis, professor da London School of Economics.
É verdade Haruhiko Kuroda continuará mais cinco anos no Banco do Japão, mas até os mesmos líderes terão de navegar em águas diferentes. Para Lucrezia Reichlin, diretora de investigação do BCE entre 2005 e 2008, estamos a assistir a uma mudança no perfil de liderança que não representará um corte abrupto com o passado. “Não acho que vá acontecer de repente. Será mais uma tendência gradual de mudança no sentido de perfis mais políticos, o que reflete o facto de os bancos centrais terem expandido o seu campo e a sua atuação e, por isso mesmo, a complexidade do seu processo de tomada de decisão. É certamente algo a que devemos estar atentos, uma vez que pode afetar a sua independência”, avisa a agora professora da London Business School, em declarações à EXAME.
De certa forma, estes banqueiros terão a tarefa mais facilitada. A retoma da economia mundial atingiu um patamar em que gera muito menos dúvidas sobre a sua sustentabilidade. O mundo deverá crescer perto de 4% este ano e o desemprego recuou em blocos como a Zona Euro para valores pré-crise financeira. Os riscos não desapareceram, mas estão mais diluídos.
Isso significa que os bancos centrais podem começar a fazer o caminho de regresso àquilo que se considera ser a “normalidade” monetária. Isto é, reduzir e eventualmente extinguir medidas extraordinárias, como a compra de dívida pública ou de outros ativos; e tirar as taxas de juro dos mínimos em que se encontram atualmente. Contudo, antes de colocar a normalização a todo o vapor, é necessário que a inflação reaja. E, para já, ainda estamos todos à espera. Sentados.
Conduzir a 200 km/h com nevoeiro
A apatia inflacionária que vivemos é precisamente um dos obstáculos que os novos responsáveis terão de enfrentar. Até à crise financeira de 2008, o banqueiro central era visto como um homem imperturbável no topo de uma torre de marfim. Alguém para quem a economia não tinha segredos. “Se quer um modelo simples para prever a taxa de desemprego nos EUA nos próximos anos, aqui está ele: será aquilo que Greenspan [presidente da Fed 1987-2006] quiser, mais ou menos um erro aleatório que reflita o facto de ele não ser exatamente Deus”, escrevia Paul Krugman em 1997.
A incapacidade de prever a maior crise em 80 anos e a lentidão de alguns a reagir mudou bastante essa perceção dos banqueiros centrais. Dobrado o cabo da crise, a imagem de figuras omniscientes não foi reabilitada. Pelo contrário, parece hoje ser mais fácil reconhecer a ignorância. Um dos enigmas que eles não conseguem decifrar é bastante central para o trabalho que têm de desempenhar: se
a economia está a acelerar e o desemprego a cair, porque não avançam os salários e os preços? Para instituições que têm como função principal controlar a inflação, é uma pergunta relativamente importante. Não saber dar-lhe resposta é um pouco como conduzir a 200 km/h numa estrada com nevoeiro cerrado.
“É uma nova constatação. Os salários não estão a responder de forma tão rápida à economia como no passado”, nota Zsolt Darvas, investigador do influente think tank Bruegel. Ricardo Reis prefere ver o copo meio cheio. “Os bancos centrais sempre reconheceram falhas no seu conhecimento. De notar, no entanto, que a “falha” mais recente tem sido a dificuldade de perceber porque é que os bancos centrais têm tido tanto sucesso: a inflação está extraordinariamente estável há mais de dez anos, apesar de inúmeros desafios. “Falhar” pois não se percebe muito bem porque é que se está a ter tanto sucesso não é o pior tipo de falhanço”, diz à EXAME.
Embora limite a capacidade dos bancos centrais para gerirem da melhor forma a política monetária e manterem a inflação controlada, esse mistério poderá ser menos relevante nesta fase de menor urgência. “É um handicap, mas será menos importante do que durante a crise”, nota Darvas.
Fugir ou mergulhar na onda populista
Os outros desafios são menos técnicos e provavelmente mais políticos. No centro de todos está a ascensão do populismo. Os últimos anos trouxeram para o poder — ou para o ouvido dele — pessoas com ideias económicas derivadas da árvore “populista”. O conceito é muito abrangente e pouco informativo, mas neste caso procura referir-se a políticos que pretendem restringir os movimentos de pessoas, mercadorias e/ou capitais, desalinhados com aquilo que se considera ser o mainstream liberal. Essa ascensão observa-se nos EUA com Trump, na Turquia, no Reino Unido (Brexit) e noutros países europeus, como Polónia e Hungria.
Na tentativa de sobreviver à crise financeira de 2008 — que se transformou num flagelo económico —, os banqueiros centrais viram o seu poder expandir-se, ao mesmo tempo que ganhou notoriedade a ideia de que o seu trabalho deveria ter uma dimensão mais política. Hoje, há mais líderes a afastarem-se do (relativo) consenso internacional dos últimos 40 anos em torno da independência dos bancos centrais.
Numa era em que taxas de juro muito baixas e medidas não convencionais convivem com crescimento débil e inflação amorfa é fácil identificar um conflito no horizonte: se o mandato do banco central é controlar os preços, mas eles não parecem reagir perante a queda do desemprego, por que não meter ainda mais carvão na fornalha? Um político desejará ver a economia a crescer mais e os salários a serem reforçados. Na Zona Euro, a preocupação está mais relacionada com a capacidade orçamental de aguentar juros mais elevados (sim, estamos também a falar de Portugal), mas a encruzilhada é semelhante. Ser banqueiro central é tirar o copo de gim das mãos de toda a gente quando a festa está no pico do divertimento. Mas o que acontece quando a economia bebe copo atrás de copo, mas não se embebeda?
“O risco é que o princípio da independência dos bancos centrais seja desafiado. Muita da estabilidade de que gozamos desde os anos 90 se deve a independência e a transparência. [Mas] as duas coisas estão relacionadas, portanto, se queremos defender o princípio da independência, temos de trabalhar na transparência e na comunicação”, alerta Reichlin.
A académica pretende notar que este não é um debate pintado a preto e branco. A discussão é normalmente enquadrada pelos economistas como um retrocesso. Isto é, a contaminação dos bancos centrais pela política é um erro que tornará a política monetária mais errática e suscetível a desastres económicos. No entanto, essa pode ser uma forma simplista de olhar para o problema. Dani Rodrik, por exemplo, admite que algum populismo económico pode justificar-se. De acordo com o professor de Harvard, no atual contexto de inflação baixa e aparentemente controlada, dar demasiada atenção aos preços à custa de mais crescimento abre caminho à deflação. Além disso, embora seja fácil perceber a utilidade de ter instituições isoladas de tentações eleitoralistas, a falta de responsabilização política arrisca criar uma divisão entre os responsáveis e os eleitores. O resultado final pode ser uma reação populista forte, precisamente aquilo que se quer evitar.
Reichlin reconhece que “os parlamentos têm de auditar os bancos centrais, e a comunicação e o diálogo têm de ser reforçados”. Já Darvas é mais claro: “Os bancos centrais não devem ceder ao populismo nem ser influenciados pela política. Deve haver separação de poderes. O banco central tem um mandato: controlar a inflação.”
Berlim contra-ataca
De facto, a função citada por Darvas é a única responsabilidade do BCE (a Fed, por exemplo, também tem como responsabilidade controlar o desemprego). Isso coloca o BCE numa posição tendencialmente mais conservadora. E é precisamente aí, em Frankfurt, que pode ocorrer a mudança mais radical nesta fase de transição. Mario Draghi foi o banqueiro central que fugiu à ortodoxia alemã, arriscando colocar no terreno medidas que Berlim nunca sonhou autorizar, ao mesmo tempo que baixou os juros para mínimos históricos. A sua sucessão não está fechada — sai em outubro de 2019 —, mas o principal candidato é Jens Weidmann, presidente do Bundesbank e conhecido por ter uma visão muito mais conservadora de política monetária, pedindo recorrentemente que os estímulos sejam retirados o mais depressa possível.
[Desde que este texto foi escrito, em abril, foi noticiado que Angela Merkel teria desistido de colocar um alemão nesse cargo, preferindo apontar à Comissão Europeia]
“Tendo Weidmann sido um tão forte crítico das políticas não convencionais do BCE na sua posição de presidente do Bundesbank, é de esperar que estes pontos de vista sejam parcialmente validados se ele for escolhido para presidente do BCE. Sendo assim, e porque se espera que ele seja coerente com os seus pontos de vista, seria de esperar uma retirada dos estímulos monetários na Zona Euro a um ritmo mais rápido do que se for outro o escolhido”, prevê Ricardo Reis.
Para Reichlin, que trabalhou no BCE antes da crise financeira, o banco central “construiu uma identidade e uma cultura fortes ao longo dos anos e isso sobreviverá a uma mudança de liderança”. Ainda assim, reconhece a relevância das lideranças e que, caso a moeda única enfrente uma nova crise, “elas serão importantes”.
O BCE foi criado à imagem do Bundesbank, tendo-se afastado desse perfil apenas nos últimos cinco anos, quando Draghi foi confrontado com um risco real de fragmentação da Zona Euro e fez a sua agora famosa proclamação de “fazer tudo o que for necessário” para salvar o euro. Uma frase normalmente vista como um marco simbólico de inversão da crise do euro, mas que não comoveu muito os alemães. Nem quando se percebeu que a estratégia tinha resultado. “De certeza que ninguém estava à espera de que um copo de vinho e um pacote de batatas fritas me fizesse mudar de opinião”, afirmou recentemente Weidmann.
Obviamente, ainda não se sabe se Weidmann será o escolhido. Paris quererá ter uma palavra a dizer e há outros lugares de topo a abrir, como o de presidente da Comissão Europeia, para os quais Merkel pode querer guardar as munições. Mas a nomeação do espanhol De Guindos para o posto de vice-presidente (para o lugar de Constâncio), assim como a eleição de Mário Centeno para presidente do Eurogrupo, sugere que uma personalidade do Norte da Europa possa ser um candidato mais provável. Se for esse o caso, Portugal e o resto da periferia europeia bem que podem dar os últimos tragos, porque o copo de gim ser-lhes-á rapidamente arrancado das mãos.
É possível que regressemos a um tempo em que os banqueiros centrais não aparecem em ilustrações de jornais com capas de super-homem. Se calhar, isso é colocar a barra demasiado alta. Com mais margem de manobra, os governos devem ser chamados de volta às muralhas onde os bancos centrais ficaram sozinhos como última linha de defesa da economia mundial. “Os bancos centrais têm um papel importante na determinação da inflação e no papel de resgate em caso de graves crises de liquidez. Mas há muitas outras políticas, orçamentais e económicas, que têm um papel muito mais determinante”, sublinha Reis. “Esperar dos bancos centrais que sejam os ‘salvadores’ é condená-los ao fracasso.”
As novas (e velhas) caras da política monetária
Jerome Powell
Reserva Federal dos EUA
Substituiu, em fevereiro, Janet Yellen à frente do banco central mais poderoso do mundo. Guiará a Fed nesta era de normalização, prosseguindo a tendência de subida de juros iniciada no final de 2015. Não se esperam mudanças radicais na política monetária mas, tal como Trump, Powell defende uma redução da regulação sobre a banca.
Yi Gang
Banco Popular da China
Em março, foi a escolha-surpresa para governador do banco central chinês. A instituição não goza de independência face ao Governo, mas ganhou mais poder regulatório este ano. Num país hoje mais preocupado com a qualidade do crescimento, Gang terá de controlar a dívida crescente e limitar o risco, enquanto ensaia uma reforma financeira.
Mario Draghi e Jens Weidmann
Banco Central Europeu
É o epicentro da transição que se vive nos bancos centrais. A substituição de Draghi dentro de ano e meio pode colocar à frente do BCE alguém com ideias muito diferentes daquelas que defende o italiano. Weidmann, tido durante anos como o principal candidato ao lugar, tem pedido uma redução mais rápida dos programas de compra de ativos e pressionado uma subida dos juros.
Haruhiko Kuroda
Banco do Japão
É a única entidade que não está em transição ou a preparar-se para ela. Kuroda foi reconduzido em fevereiro por mais cinco anos, o que sinaliza que, perante uma inflação ainda débil, o Banco do Japão manterá fortes estímulos no terreno, mesmo que outros bancos centrais comecem a recuar.
Mark Carney
Banco de Inglaterra
Tem uma das tarefas mais espinhosas dos banqueiros centrais: gerir as consequências do Brexit. “O banco fará tudo o que puder para apoiar os ajustamentos consequentes”, afirmou no ano passado. Depois de ter sugerido que abandonaria o cargo em junho de 2019, Carney disse em setembro que estava disponível para um segundo mandato.