O Governo agravou ou não os impostos sobre os portugueses? A pergunta tem flutuado na discussão pública depois de termos ficado a saber que a carga fiscal aumentou em 2017 e tem servido de arma de arremesso político. A oposição acusa Mário Centeno de recorrer pela calada aos anestesiantes impostos sobre o consumo. O Executivo argumenta que é a força da economia que está a puxar pela receita. Números divulgados na semana passada, pelo Banco de Portugal, permitem descodificar o que fez subir a carga fiscal. O mais recente Boletim Económico esclarece que as iniciativas legislativas dos últimos dois anos contribuíram para reduzir o peso dos impostos na economia, embora tenham ficado longe de apagar o “enorme” agravamento fiscal de 2013.
Como em qualquer mistério policial, primeiro é necessário encontrar a vítima. Isso aconteceu no final de março, quando foi noticiado que a carga fiscal aumentou em 2017 para o valor mais elevado em, pelo menos, 22 anos. Essa conclusão é verdadeira qualquer que seja o ângulo de análise: no ano passado, o Estado absorveu mais recursos produzidos pela economia.
Ainda que se mantenha abaixo da média europeia, este maior peso dos impostos foi bastante criticado, uma vez que ele ocorre pela mão de um Governo que prometia precisamente desagravar a carga fiscal. Mais: não só é um valor recorde, como Centeno espera que ele praticamente não desça até 2022. “Esta opção de insistir em manter a carga fiscal mais elevada de sempre significa que este Governo e esta maioria de esquerda querem continuar a cobrar aos portugueses uma parte do seu rendimento que nunca tiveram de entregar em impostos”, sublinhou o deputado do PSD António Leitão Amaro.
O ministro das Finanças defendeu-se, apontando que a subida da carga fiscal não se traduziu em menos dinheiro na carteira das famílias. “Não houve um aumento de esforço fiscal de cada português”, afirmou o governante. Acusou o PSD de “iliteracia financeira” e deu como exemplo a receita de IVA, que cresceu mais de 6% no ano passado sem que tenha existido um agravamento das taxas (pelo contrário, até caíram na restauração). “Mas se não houve aumento da taxa de IVA, como aumentou a carga fiscal do IVA? Pelo aumento do consumo, de residentes, mas também do turismo”, argumentou.
Inadvertidamente, os técnicos do Banco de Portugal vestem a pele de Poirot neste mistério económico, esclarecendo, afinal, o que esteve por detrás da subida da carga fiscal. E, neste caso, não encontraram impressões digitais de Mário Centeno. As contas do banco central mostram que a atuação do Governo serviu para diminuir o peso dos impostos, ainda que em 2017 esse efeito tenha sido marginal. As alterações à legislação contribuíram para a subida da carga fiscal, através do aumento de impostos indiretos, desde as bebidas açucaradas e alcoólicas até ao imposto sobre combustíveis. No entanto, foi também aprovado um alívio do IRS (via sobretaxa) e do IVA da restauração, que mais do que compensaram o agravamento anterior. Tudo somado, observa-se um ligeiro alívio.
Agravamento de 2013 resiste
Para chegar a esta conclusão, o Banco de Portugal olha para “receita estrutural”. Isto é, exclui os efeitos do crescimento ou da contração da economia, bem como medidas temporárias (por exemplo, um perdão fiscal). Nessa ótica, verifica-se que a carga fiscal deu dois grandes saltos nas últimas duas décadas, em 2011 e, principalmente, em 2013. O “enorme aumento de impostos” de Vítor Gaspar trouxe subidas de IRS, IRC, IMI e imposto de selo, levando a receita fiscal estrutural a saltar de 34,8% para 37,2% do PIB. Uma descida significativa só chegaria em 2016, mas foi quase totalmente revertida no ano passado.
Mas se a investigação confere um álibi ao Governo, quem é o culpado? Há sempre quatro suspeitos para a evolução da receita estrutural: as já referidas medidas permanentes de política fiscal; a variação automática da receita devido à elasticidade orçamental; a discrepância entre a base macroeconómica da economia portuguesa e a evolução do PIB; e o “resíduo” (onde estão todas as explicações que não as anteriores).
O agravamento de 2017 foi essencialmente provocado pelo “resíduo”, a tal fatia que não faz parte das outras categorias. Porquê? No IRC, por exemplo, os reembolsos caíram em rácio do PIB tendencial e o Banco de Portugal reconhece também problemas de ajustamento e de estimativa em alguns indicadores.
Mesmo sem aprofundar mais os detalhes técnicos, podemos concluir que em dois anos a atuação agregada do Governo aliviou as famílias e as empresas. Contudo, é importante colocá-la em perspetiva. As medidas contribuíram para descer a carga fiscal estrutural em 0,2 pontos do PIB, entre 2015 e 2017. Por comparação, o aumento de impostos de Gaspar aumentou-a 1,79 pontos, seguindo-se mais dois anos de iniciativas que subiram os impostos. A melhoria dos últimos dois anos representa menos de 10% do agravamento dos três anos anteriores (embora 2018 possa trazer um maior alívio com a mudança dos escalões de IRS).
Além disso, embora a atuação do Governo não tenha aumentado a carga fiscal, a sua inação pode ser responsabilizada. Mesmo que a receita esteja a crescer porque o emprego e a economia estão a recuperar mais depressa do que se previa, o Executivo podia sempre descer ainda mais os impostos, de forma a deixar a economia respirar mais. É uma escolha política não o fazer e é também conveniente numa altura em que Mário Centeno e António Costa ainda acham que é decisivo carregar no pedal do ajustamento orçamental.
(Artigo publicado na VISÃO 1315 de 17 de maio)