“Tenho em mim todos os sonhos do mundo.” A frase de Álvaro de Campos, um dos heterónimos do escritor Fernando Pessoa, é uma inspiração para contar as histórias de empresas portuguesas que lideram a nível mundial. Têm nelas o sonho que lhes permitiu conquistar o mundo. Assim acredita Carlos Coelho, presidente da Ivity Brand Corp. “É preciso fomentar a cultura do risco e do sonho. Primeiro a poesia, depois a economia. E o que faz as empresas nascidas em Portugal chegarem à liderança mundial são os sonhos.”
Dos exemplos mais conhecidos e de maior dimensão, como são os da Corticeira Amorim, da Navigator ou da Sovena, passando pelas tecnológicas Outsystems (desenvolvimento de soluções móveis) ou WeDo (software de garantia de receita e gestão de fraude), até casos mais surpreendentes, como os de empresas que, a partir de Portugal, conquistaram o mundo no fabrico e comercialização de botões (Louropel), chávenas de café (Cup & Saucer), mochilas de servir bebidas e snacks aos consumidores (2east), cadeiras para bicicletas (Polisport) ou fatos de banho para competição (Petratex).
Pedro Santa Clara, professor e responsável pelo projeto do novo campus da Nova SBE, destrinça os exemplos das grandes empresas, como a Sovena (azeites), a Corticeira Amorim (cortiça) ou a Navigator (papel de escritório premium) das restantes. “Estão muito ligadas a recursos naturais em que Portugal tem muita vantagem, como os olivais, a cortiça e a madeira [pasta e papel].”
Já nos casos menos conhecidos, que estão à margem dessa vantagem, “o que é notável é que atuam em ultranichos, como o fio técnico para as telas usadas na indústria da produção de papel (Filkemp) ou os caiaques (Mar Kayaks). Parece ser tudo fruto do empreendedor que entra no mercado”. Nestes sectores de ultranichos “não deve haver gigantes”. Mas nos casos das empresas tecnológicas, “essas, sim, combatem com gigantes”.
O professor sublinha, porém, que é necessário colocar estas lideranças mundiais em perspetiva. “Nenhum destes exemplos é a Zara, nenhum é uma marca global. Com exceção do Cristiano Ronaldo, não há uma marca global em Portugal.” E dá como exemplo a Holanda. “É um país com uma escala geográfica e uma população semelhantes e tem marcas como a Shell, a Phillips e a Unilever”.
“É um paradoxo. Com todo o mérito que estas empresas têm, atuam em pequenos mercados, de nicho, em que empreendedores muito hábeis conseguiram tomar uma posição forte. Mas não temos em Portugal um grande grupo internacional de turismo, nem nenhuma grande empresa industrial ou tecnológica.” O professor da Nova SBE defende que este é o grande desafio da economia portuguesa. “E europeia, aliás”, afirma, recordando um artigo publicado pelo The Economist em 2012, intitulado “Les misérables”. Naquele artigo, lembra, do top das 500 maiores empresas do mundo criadas desde 1975 apenas uma era europeia – a Inditex (dona da Zara). Isto por oposição a mais de 100 criadas na Califórnia (Estados Unidos) e a mais de 100 na China. Referindo as conclusões do The Economist, Pedro Santa Clara aponta que o problema não era não haver startups, era que paravam de crescer a partir de certo ponto, ao passo que nos Estados Unidos têm a capacidade de escalar muito depressa. “Criaram a Uber e rapidamente a tornaram numa empresa mundial”, exemplifica.
O que têm em comum
Em sectores de atividade tão distintos e com dimensões tão diferentes, Carlos Coelho encontra um elo que une estas empresas na conquista do mercado mundial. “É a capacidade que têm de fazer bem várias coisas ao mesmo tempo. É raro as empresas serem bem-sucedidas em duas coisas – em indústria e no marketing/área comercial, por exemplo. O que estas empresas líderes têm em comum é que conseguem conciliar as duas coisas com a mesma facilidade. São líderes na produção e na forma como colocam e comunicam os seus produtos.”
Segundo o especialista, não chega fazer bem. É preciso apostar em inovação, em centros de competências, em redes sociais, em marketing e em recursos humanos que coloquem os seus produtos nos mercados. “Ao fazer, trabalha-se na qualidade, mas ao vender trabalha-se na perceção.”
A este propósito, Ana Teresa Lehmann, diretora da pós-graduação em Internacionalização da Porto Business School, destaca a relevância da tecnologia na estratégia de uma empresa. “A internacionalização não tradicional (a da empresa que já nasce global, olhando para o mundo como o seu mercado) é menos custosa, porque não carece de IDE (ambiente de desenvolvimento integrado) – já que são mercados distintos dos das empresas tradicionais – ao nível dos canais de distribuição, nichos, cadeias de valor globais, entre outros.” No caso das empresas de serviços, é hoje possível conquistar o mundo “quase de borla, de forma intangível, através de uma rede”, defende.
Como chegam ao mundo
Para Carlos Coelho há uma diferença significativa na forma como se alcança o topo do mundo. “Posso ser líder mundial porque tenho um produto diferenciador em que sou único, o que é um trajeto mais solitário, de talento, de algo que mais ninguém descobriu.” Ou, no caso das grandes empresas, há aquilo a que chama de “mundialização da ambição”. Ou seja, “uma marca que vende em mais de 100 países tem, à partida, de ter nascido com esse propósito – nunca viu o território nacional como o seu e não limitou os seus hábitos de trabalho à sua geografia, constituindo-se como um ser multinacional e global. Trata-se de uma certa mundividência, seja por ambição ou por necessidade”.
A Portucel (hoje Navigator), por exemplo, “nasceu com uma produção industrial na Figueira da Foz a uma escala que não seria só para o mercado nacional. Teria de se expandir. Essa forma de trabalhar levou a que se criassem marcas como a Navigator, o que originou uma ambição industrial de crescimento e um aumento da produção. Na altura, há mais de 20 anos, o administrador com o pelouro das vendas nem vivia em Portugal”. Hoje a Navigator mantém a sua localização no país, mas criou uma operação de vendas e uma rede para escoar os produtos.
Para Ana Teresa Lehmann, há duas formas de chegar ao mercado global. O modelo tradicional e o modelo “born global” (ver caixa). O primeiro é um modelo gradualista, que começa a um nível doméstico (em Portugal), passa para uma fase de exportação esporádica e depois evolui para uma exportação sistemática. “Foi assim que a Corticeira Amorim se conseguiu impor no mundo”, exemplifica.
O “born global” é um modelo mais rápido de internacionalização. “É muito alicerçado nas tecnologias, em empresas que ao nascer já estão viradas para fora. O mundo está-lhes no seu ADN”, refere a docente da Porto Business School.
Já a Sovena “é um caso atípico e admirável. Não é uma “born global”, mas teve um renascimento, com dois contextos empresariais distintos, o que lhe permitiu uma mudança de estratégia e de liderança”. Mas também a Corticeira Amorim “nunca seria o que é se não fosse o seu líder (Américo Amorim), que andou a promover o negócio na Rússia quando ninguém se lembrava disso”.
Carlos Coelho acrescenta o exemplo da Sogrape, “que nasceu com o Mateus Rosé a ir pelo mundo, sem vinhas. Começou pelo marketing, pela venda e tornou-se numa multinacional. À medida que o produto ia tendo mais procura, a produção aumentava. Hoje é considerada a Best Winery in the World e a que tem mais regiões em mais países do mundo. É um exemplo de marketing, inovação e vendas, sendo que a operação de produção só veio depois. Consegue ter qualidade de produção associada à notoriedade percebida, e é isto que lhe permite continuar”.
A importância do líder
As empresas micromultinacionais nascem a partir de uma inovação (como a 2east ou a Petratex). “Conseguem fazê-lo a uma escala pequena, porque os seus produtos são diferentes e porque criam uma distribuição que lhes permite vencer a deslocalização”, caracteriza Carlos Coelho, acrescentando que todas nascem sem medo, sem planeamento, com ambições cegas. “É uma grande inconsciência. Mas é porque há um espírito de navegador, que não é de muitos e que durante muito tempo foi reprimido em Portugal (regime do Estado Novo). São lideradas por pessoas mundividentes e a mundividência não depende do território a nível nacional – pode ser na Covilhã ou nos Açores.”
Para o presidente da Ivity, a questão de base está na capacidade daquelas pessoas em fomentar a educação de cultura do mundo. “Para termos mais líderes mundiais, independentemente das indústrias ou serviços onde atuam, é preciso que as pessoas tenham mundo. Se a capacidade de gestão e do sonho for feita de medo – de que este é um país tão pequenino –, é estar a dar uso à geografia da desculpa.”
Mas, forçados pelo exterior, Carlos Coelho acredita que “temos vindo a alterar essa cultura”. Ana Teresa Lehmann concorda que a figura do líder é “muito importante” neste contexto de crescimento a nível global. “É uma geração mais nova, mais viajada, propensa ao risco e preparada tecnologicamente. Não é possível haver uma empresa ‘born global’ sem um empreendedor que não seja do mundo, que não tenha medo de falhar”, adianta, dando como exemplo o português José Neves, que criou a Farfetch, plataforma de venda de luxo online. Avaliada em mais de mil milhões de dólares, é a única startup unicórnio (empresa com um elevado potencial de crescimento em pouco tempo e com uma avaliação superior a mil milhões) portuguesa. A Farfetch é a número dois no mundo. O líder mundial no sector de retalho de luxo online é o grupo Yoox Net-A-Porter, que resulta de uma fusão entre a Net-A-Porter e a rival italiana Yoox. A empresa lusa é número dois, mas, perante o cenário em que os dois gigantes se juntaram, esta segunda posição quase “cheira” a número um. E como disse José Neves numa entrevista à revista Visão: “É em virtude da paixão e da vontade que tenho de construir o meu sonho e com ele construir o sonho de outras pessoas. É esta a minha força.” Como outros, tem nele o mundo como sonho.
Como conquistar e liderar o mundo
Há duas formas de chegar ao mercado global. A empresa pode começar a sua atividade em Portugal e avançar com a internacionalização passo a passo, ou nascer logo de olhos postos no exterior
Tradicional:
- Modelo que assume uma lógica evolucionista da internacionalização da empresa: é uma tendência, não uma fatalidade, em que a empresa não segue necessariamente todo o caminho.
- Expansão geográfica através de uma abordagem gradual e progressiva: não realiza exportações – exportações esporádicas – exportações via agente – subsidiárias comerciais – subsidiárias industriais
“Born global”:
- Internacionalização precoce, rápida e substancial.
- Menores recursos financeiros e outros do que as empresas multinacionais tradicionais.
- Muitas vezes, tecnicamente superior numa determinada categoria de produto.
- Internacionalização via exportação.
- Utilização intensiva de tecnologias de informação e comunicação.
- Formadas, a maior parte das vezes, por empresários fortes (com visão do negócio, impulso internacional – “o mundo como espaço de atuação” – , nível de qualificação elevado e capacidade de persuasão – capacidade de mobilizar outros).
Fonte: Ana Teresa Lehmann, diretora da pós-graduação em Internacionalização da Porto Business School
Este artigo é parte integrante da Exame de Junho de 2017