Ao longo de duas décadas, Nuno Machado Lopes foi escrevendo notas, para seu uso pessoal, das lições que foi aprendendo como empreendedor e mentor de mais de 150 start-ups portuguesas e estrangeiras. Uma matéria-prima que serviu para a escrita do livro Tudo Mudou, Novamente, que não pretende ser um manual completo sobre empreendedorismo, mas que acaba por transmitir uma visão crítica que tempera o atual clima de euforia que se vive em volta da criação de negócios de crescimento acelerado.
O que o motivou a escrever este livro?
Pensei dar um contributo para tornar a experiência dos empreendedores mais equilibrada, tirando partido da minha vivência de 20 anos como empreendedor. E também quis desmistificar Silicon Valley, onde vivi durante algum tempo. Outra motivação resultou da necessidade de valorizar o quanto difícil é criar uma empresa. Isto porque não quero que as pessoas caiam no erro de avançar para a criação de uma empresa por estarem desempregadas. Às vezes é a pior coisa que podem fazer, porque o que precisam é de estabilidade na vida. O empreendedorismo traz tudo menos estabilidade. Esta conversa existe nos bastidores do ecossistema, mas o que sai para fora é uma visão demasiado otimista. Outra ideia que quis demonstrar ser errada é quando se diz que a tecnologia cria emprego. Pelo contrário, destrói emprego. Devemos enfrentar os grandes desafios na sociedade e não mascará-los, nem induzir as pessoas em erro.
Mas hoje é muito mais fácil e menos arriscado criar uma empresa do que era há alguns anos. Há ecossistemas que ajudam a ter sucesso…
Sim, a barreira de entrada é muito menor. Se virmos a coisa de forma linear, hoje é mais fácil. Há mais informação. Criar um site na Internet chega a ser gratuito no primeiro ano. A diferença é que agora há muito barulho e muita concorrência. Daí que hoje seja mais difícil ser empreendedor. Isto porque há mais dimensões. A pessoa sente-se muito sozinha. Por outro lado, celebrar o falhar não é intelectualmente honesto, independentemente de se aprender. Nos EUA até há conferências em que as pessoas vêm confessar os falhanços. É uma ideia que é promovida pelas relações públicas de Silicon Valley. As start-ups que têm sucesso são uma percentagem tão pequena que o empreendedorismo chega a ser uma doença. É muito irracional ir para algo que sabemos que irá falhar. O empreendedor tem momentos de ilusão em que não toma consciência dos riscos que está a assumir.
Este ambiente favorável às start-ups é um contraponto à mentalidade portuguesa conservadora de aversão ao risco?
A questão não se coloca apenas em relação a Portugal. É uma questão da Europa. Deste lado do Atlântico somos mais conservadores que nos EUA. Mas não é uniforme: nos países do Sul da Europa dá-se muita importância à família e isso tem consequências quando embarcamos na jornada do empreendedorismo, pois as primeiras coisas a sofrer são as relações. Em Inglaterra, a pessoa sai de casa aos 18 anos, já em Portugal os jovens ficam às vezes até aos 30 anos ou mais, o que também tem um lado positivo.
Há a ideia de que os Estados Unidos estão sempre a fazer disrupções tecnológicas e a Europa está a travar. Quem está certo?
Como europeu, sinto que é bom haver alguém a olhar pelos meus direitos, não a travar a inovação e a tecnologia, mas a colocar algumas questões. Nas aplicações para telemóveis, vemos esta questão da utilidade versus a privacidade: quanto mais utilidade queremos de uma app, de mais privacidade temos de abdicar. Acho que há um limite. Podemos ser induzidos a abdicar de demasiada privacidade. Por outro lado, instalou-se a convicção de que o empreendedorismo podia fazer disrupções de tudo: leis, regras, princípios. Isso cria um empreendedor que acho que não é saudável para a sociedade. Devemos ter cada vez mais uma voz crítica, porque estamos a entrar num período complexo. Vimos o impacto que teve no mercado financeiro a entrada de peritos em matemática, que criavam produtos cujos efeitos não eram conhecidos. Por isso temos de ter algum cuidado com os produtos tecnológicos, porque não sabemos que impactos irão ter. Vemos uma discussão errada sobre a Uber: o carro limpo e o chauffeur de fato versus o taxista mal-educado e o carro sujo. Essa não é uma discussão válida. Mais importante é saber quando a Uber se torna uma utility e começa a fazer pesquisa por preço e a mudar as regras. E qual é o impacto que pode ter no emprego. Não podemos alhear-nos das consequências do que estamos a criar. Basta ver que para as pessoas que têm mais dinheiro em Silicon Valley a sua maior preocupação é a segurança. Eles têm razão para estar com medo. Já vimos no passado que as sociedades podem explodir a qualquer momento por causa das desigualdades.
Como vê as somas astronómicas que estão a ser investidas no aumento da longevidade em Silicon Valley por empresas como a Google?
Sabemos que essa longevidade não está acessível a todos. Será apenas para os white privileged male (“homens brancos privilegiados”). Viver mais parece ser uma aspiração nobre, mas mais uma vez os beneficiários serão uma pequena minoria.
O que faz tantos empreendedores europeus quererem ir para o ecossistema de Silicon Valley?
A ideia do meu livro é mostrar às pessoas que não há apenas uma alternativa. E, se embarcarem na via do empreendedorismo, dá dicas: em que moldes é que devem fazê-lo e quais as suas expectativas. Se as pessoas quiserem criar uma empresa gigante, um unicórnio, se não é importante ter tempo para si e para a família, para viajar, então direi que sim. Mas têm que ter consciência de que estão a jogar na lotaria. Isto é a diferença entre nós irmos apostar dois euros no Euromilhões, assumindo que estamos a deitar esse dinheiro fora, e aquelas pessoas que jogam sistematicamente porque acreditam que irão resolver mais tarde ou mais cedo os seus problemas financeiros. Não é muito diferente do casino, se as pessoas acreditam que irão conseguir ganhar arriscando cada vez mais. A verdade é que os indivíduos que ganham no casino são aqueles que sabem perfeitamente quais são as probabilidades, quando é que se joga e quando é que se sai. Por isso irrita-me quando se ouve dizer que o empreendedorismo é fantástico quando a pessoa está desempregada, porque se está a criar uma expectativa falsa. E isso pode ser muito perigoso.
Como mentor ou como diretor de Marketing e Comunicação da associação de empreendedorismo Beta-i, o que diz aos jovens empreendedores que acaba de conhecer?
Pergunto-lhes o que querem da vida, mesmo antes de apresentarem a ideia. E qual é a sua definição de sucesso. Quando começo a fazer algumas perguntas a pessoas que são relativamente novas e lhes digo: “Vamos supor que estavas numa empresa que faturava dois ou três milhões de euros e na qual tinhas uma margem de 30% por ano, serias feliz?, normalmente não respondem logo e basta olhar para a cara deles. Começam a imaginar o que é ter esse dinheiro e começam a sentir liberdade de poder viajar e comprar as coisas de que gostam. Mas depois, como estão neste meio, respondem: “Isso é pouco.” O nosso papel não é ouvir o que eles dizem, mas sim perceber o que estão a sentir no momento. Muitas vezes, à medida que a conversa evolui, percebemos que o que querem é criar empresas sustentáveis e com equilíbrio de vida. Por isso defendo que devemos controlar a tecnologia e não ser controlados pela tecnologia. Essas conversas servem para que os candidatos a empreendedores estejam melhor informados, para que tomem decisões conscientes. Quando ia a conferências nos EUA, tinha a sorte de ir para a zona de media, por ter um blogue. Falava com personagens como Elon Musk, fundador da Tesla, e no principio sentia-me muito insignificante. Depois aprendi a nadar na minha pista e assumi que não queria ter a vida deles. A atitude certa é ter objetivos e lutar por eles e, acima de tudo, assumir para mim o que é ter sucesso e felicidade e sentir-me bem com isso, e não estar constantemente a comparar-me com outros.
Com o aparecimento de dezenas de incubadoras em vários pontos de Portugal estaremos a cair no exagero? O empreendedorismo pode ser uma panaceia?
O empreendedorismo tornou-se uma moda, e há alguns perigos que é preciso evitar. Mas é importante salientar o bom momento que Portugal, sobretudo Lisboa e Porto, vive atualmente. Há um boom no turismo, o ecossistema de empreendedorismo está a ter reconhecimento internacional. Isto é positivo, porque se está a dar um rumo ao país. Ainda vamos a tempo de criar o nosso ecossistema, que não é Silicon Valley, mas que estará adaptado à nossa realidade.
Ainda iremos a tempo?
Acho que sim. O nosso ecossistema de empreendedorismo já tem uma parte sólida. Há pessoas com os pés bem assentes no chão. E também vamos ter o Web Summit a realizar-se em Lisboa. É um alinhamento que irá dar os seus frutos. Estou muito otimista. Outro desafio é fazer com que algumas das pequenas e médias empresas (PME) portuguesas já existentes, que nos últimos sete anos sofreram uma crise profunda, consigam tirar partido destes princípios de aceleração. Provavelmente os empresários estão abatidos psicologicamente e desatualizados. Como é que conseguimos tirar o que é bom destes modelos de crescimento rápido e aplicá-lo ao nosso tecido empresarial? Se cada empresa aumentasse uma pessoa e exportasse mais 5% a 10%, haveria uma mudança radical no nosso trajeto. É muito importante apostar em investigação e design e atrair para Portugal mais centros de investigação e desenvolvimento de multinacionais.
Onde têm falhado as empresas portuguesas?
Têm de ser mais eficientes para poderem expandir em mão-de-obra qualificada. Há sectores tradicionais, como o calçado, o azeite ou o vinho, que nos últimos anos têm vindo a ganhar prémios internacionais. Os produtos não mudaram, o que mudou foi a forma de os divulgar e apresentar lá fora. Também penso que os bancos deveriam começar a olhar para o investimento nas empresas de forma diferente. Mais do que analisar a tesouraria, deveriam olhar para o potencial dos seus produtos.
Quais são as fragilidades que identifica nos empreendedores portugueses?
Quando começam a falar comigo, seguem o guião habitual e começam logo com um pitch (apresentação curta). Interrompo e digo-lhes: “Falem-me de vocês.” A conversa acaba por ser mais do que a meia hora prevista em que acabo por fazer perguntas pessoais. Por exemplo, “quanto dinheiro é que tens disponível para o projeto?”, “de quanto necessitas para viver?”. Percebe-se que há indivíduos com circunstâncias muito diferentes. Uns têm capacidade para estar um ano a experimentar. Há outros que acabaram de ter um filho mas que estão apaixonados pela ideia de negócio. Pode ser tão válida quanto a outra (do empreendedor com dinheiro), só que tem meios para sobreviver apenas um mês. Isso permite desenhar um plano em que adiantamos uma verba mensal que será reembolsada mais à frente. Depois deste conhecimento inicial, transmito aos cofundadores que é preciso ter planeamento, metas e objetivos. Uma coisa que não fazem geralmente é um orçamento anual, muito menos o mensal e o semanal. Se pudermos avaliar os nossos desvios semanalmente, conseguimos corrigi-los e aumentar a eficácia.
Há um problema de classe entre os jovens empreendedores? É mais fácil a um de pais ricos criar uma empresa?
Há, de facto, um fosso no acesso ao empreendedorismo, mas a minha experiência diz-me que as pessoas que têm uma maior almofada cometem mais erros no início e os que não têm esse conforto financeiro não cometem esses erros e conseguem criar empresas mais estáveis.
Que área deve um empreendedor ter mais em conta?
É o mental check up. Foi aquilo que aprendi através da retroinspeção. No início, o que vemos é negro e assusta-nos. Começamos a ver as nossas falhas, mas com o tempo começamos a gerir melhor a nossa ansiedade e a ver que o stress não é uma coisa negativa.
Há empreendedores com excesso de confiança e outros demasiado inseguros. Como lidar com essa componente psicológica?
Há pessoas que aparentam ter muita confiança, mas que no fundo são extremamente inseguras. Acabam por ter as maiores quedas e lidam mal com a realidade e com a frontalidade das críticas. As que geralmente estão melhor preparadas para os desafios são as assumidamente inseguras, porque tomaram conhecimento dos seus demónios. A autoajuda pode ser uma forma de ultrapassar estes medos. O recrutamento que se faz é péssimo. As pessoas são recrutadas pelos seus hard skills (competências técnicas) e menos pelos seus soft skills (competências comportamentais). Muitas vezes as roturas acontecem por causa dos soft skills. O empregador deve perceber também que o empregado tem de ter vida própria e pode ter problemas pessoais que afetem o trabalho. Mais vale que vá para casa resolver o problema do que ficar infeliz e a contaminar a equipa.
B. I.
Empreendedor multifacetado
Nome
Nuno Machado Lopes
Vida
O atual diretor de Marketing e Comunicação da associação de apoio ao empreendedorismo Beta-i tem 45 anos. Licenciou-se na Universidade de Londres, esteve dois anos na Bolsa, na City, e percebeu “o que não queria fazer” (trabalhar no sector financeiro). Passou 20 anos no estrangeiro, sobretudo em Londres e em Silicon Valley, onde, como bloguista, conheceu por dentro o maior ecossistema de empreendedorismo do mundo.
Carreira
Em 2006 regressou a Portugal para criar o projeto Paradise Garage, uma pequena sala de espetáculos que ganhou fama internacional. Em 2007 criou o Kreedo, um portal de marketing em tempo real. Em 2008 fundou o restaurante lisboeta Silk Club. Nos anos seguintes criou projetos como a IG Marketing e a Out There Records (editora musical independente). Nos últimos anos, Nuno Machado Lopes tem sido docente no ISGB (Instituto Superior de Gestão Bancária) e na Universidade Lusíada e faz consultoria a empresas na área de social media.
Este artigo é parte integrante da edição de março de 2016